Tempos que foram escola de vida
deixaram marcas que, de quando em vez, afloram à memória de longo prazo, como
um bálsamo milagroso que se coloca sobre uma ferida ainda verde.
Decorria a década de cinquenta do
século passado. Uma cidade com muitos encantos naturais mas com algumas
fragilidades organizacionais. A Capital de Angola que, na época, pelo seu
desenvolvimento e sua concentração de poderes, já gozava de um aforismo -
despropositado e até ofensivo para toda aquela imensidão de Terra e de gentes –
“Angola é Luanda e o resto é mato”, demonstrava, também, que Luanda já era uma
cidade grande.
Uma cidade que, apesar das suas
fragilidades, já gozava de alguns privilégios. Bairros populacionais
organizados com as infraestruturas mínimas, para se viver uma vida com alguma
qualidade e onde já não era necessária a prevenção diária das doenças
tropicais, como acontecia no interior do País. Já não era necessário tomar, de
manhã um comprimido de quinino e à tarde outro de paludrine, como acontecia nas
restantes regiões, principalmente no dito, mato.
Tinha água canalizada distribuída
pelos SMAS (Serviços Municipais de Água e Saneamento) devidamente tratada e nem
sempre fora assim, nem em todos os lugares era assim e a água, preciosa como é
para todos os organismos dos seres vivos era, simultaneamente, a autoestrada de
distribuição, fulgurante, de doenças infecto-contagiosas.
Sendo uma cidade multirracial,
nesses bairros conviviam brancos, pretos, mestiços, portugueses, angolanos,
caboverdianos, umbundos, kinbundos, chicoronhos, malanginos e de muitas outras
etnias, que formavam o todo de uma população, dita angolana, nas suas
diferenças e semelhanças, nas suas afinidades e rivalidades.
Lembrámo-nos do Bairro Operário,
para nós caracterizado por um Bairro Tampão entre a Cidade linda, branca,
intelectual, endinheirada e o musseque que iniciava no Bairro de São Paulo no
seu território mais afastado, e a cidade feia, de pobres operários, brancos,
pretos e mestiços, com casas de adobe ainda que construídas dentro de um certo
urbanismo e com ruas largas, mas sem asfalto.
No centro havia um largo imenso,
espaçoso, sem construções de qualquer espécie e que servia de ponto de encontro
em festas, jogos de futebol, namoros e outros prazeres de homens e mulheres,
independentemente de raça, cor, cultura, credo ou clube.
As ruas mais estreitas eram as
preferidas pelas prostitutas, seus clientes e proxenetas.
No seu conjunto, porque também
tinha as suas lojas – tabernas, tascas, drogarias – onde tudo se vendia e se
comprava, do álcool ao tabaco, da jinguba ao sal, do açúcar ao feijão, da fuba
ao peixe seco para a moamba, do oléo de dém dém (ou palma) ao azeite virgem de
Portugal, até aos tecidos multicolores ou panos que serviam de vestimenta e
ornamento às mulheres, poder-se-ia dizer que era um bairro bom para habitar.
As casas eram de renda barata.
Era perto da parte da cidade onde havia os empregos. Tinha tudo o que era
necessário, com modéstia, para se viver.
O pior eram as rusgas. Polícia
Civil e Militar que, de vez em quando, irrompiam pelo Bairro adentro à procura
de movimentos de subversão ou para recrutamento de jovens para a vida militar,
quando não, para dominar as quezílias que iam aparecendo a troco de tudo e de
nada.
Em contrapartida, Sábados à tarde
e Domingos, quer fosse futebol, quer fossem as rebitas onde pontificavam o
Kizomba e o Merengue, toda a gente se divertia e muitos apanhavam a sua
“cadela” para esquecerem mágoas ou desesperos.
Porque vivemos nas faldas do
Bairro no início da Avenida D. João II ao pé da Farmácia Angola, ainda que
muito imberbe, fomo-nos apercebendo destas vivências que, no mínimo, nos
deixaram muitas saudades. Do tempo mas, sobretudo, da idade que não volta mais.
Zé Rainho.
Sem comentários:
Enviar um comentário