Passada a vida militar retomámos a
nossa vida civil tomando posse como segundo oficial da Administração (3º Bairro
Administrativo), um serviço do Estado que passava documentos de identificação
na ausência destes, atestados, procedia ao recenseamento da população e todas
as outras actividades ligadas à administração pública.
Entretanto e ainda durante a vida
militar tinha feito um concurso público para as Obras Públicas. Um serviço
público de carácter geral que englobava toda a Província Ultramarina. Mal
comparado podia dizer-se que seria um Ministério se o país fosse independente.
Tentava-se preparar o futuro.
Em 9 de Agosto de 1967 nasce a
nossa primeira filha. A nossa Lena. Foi uma imensa felicidade. A primeira
bisneta que o meu avô Ricardo e só ele, todos os outros avós já tinham
falecido, ainda teve a oportunidade de conhecer.
A primeira criança, da quarta
geração, desta família a que nos orgulhamos de pertencer.
Pouco depois da nossa filha nascer
veio ter connosco o nosso cunhado António que ainda chegou a tempo de ser seu
padrinho de baptismo.
Passado um ano fomos chamados para
ingressar nas Obras Públicas e, pouco tempo depois, fomos enviados para Silva
Porto – Bié, no planalto central de Angola. Capital de Distrito tinha a missão
de desenvolver uma imensidão de território que se afirmava pela sua enorme
capacidade agrícola, arroz, sisal, algodão, mas também pelas frutas,
principalmente abacaxi e manga e, também a pecuária, principalmente gado vacum.
Era uma zona de influência da
UNITA, partido político moderado que lutava em armas pela independência mas,
apesar disso, um território muito tranquilo onde se podia andar sem
preocupações.
Chegámos lá no dia 28 de Setembro
de 1968 depois de uma viagem fantástica. Por total e absoluto desconhecimento
do que íamos encontrar programamos a viagem de forma a levarmos algumas coisas
básicas, mas pesadas, pelo que decidimos ir de barco até ao Lobito e ali
apanharmos o comboio da linha de Benguela até Silva Porto. O combóio seguia no
seu trajecto total até à Zâmbia.
A gare do comboio fica a sete
quilómetros do centro da cidade pelo que apanhámos um táxi com as malas de mão,
deixando os restantes pertences ao cuidado do Chefe da Estação e dirigimo-nos à
cidade, particularmente ao Hotel Girão onde nos hospedámos os três, eu, minha
mulher e a minha filha, a família vai junta seja para onde for. Foi assim
quando eu era criança foi quando assumi a minha própria família.
Quando me dirigi à sede das Obras
Públicas locais verifiquei que estava encerrada e apenas um guarda estava de
serviço. Perguntei a razão e fui informado que havia tolerância de ponto pela
tomada de posse do Professor Doutor Marcelo Caetano como Presidente do Conselho
de Ministros em substituição do Professor Doutor Oliveira Salazar que, meses
antes, tinha sofrido um acidente e ficara incapaz.
Como a tarde ainda há pouco
começara resolvi dar uma volta pela cidade para tentar conhecer. Lá fomos os
três dar uma volta a pé. A cidade era pequena e tudo era muito perto do seu
centro onde se situavam os edifícios públicos, Câmara Municipal, Palácio do
Governador Civil, Banco de Angola, Obras Públicas, Hospital, por exemplo.
Também a Igreja que era Sé episcopal, já que a cidade tinha um Bispo no seu
comando religioso.
No dia seguinte apresentei-me no
serviço e fui recebido com bastante agrado e delicadeza. Desde logo o Chefe de
trabalhos que, na ausência do engenheiro, chefe da repartição comandava todo o
conjunto de funcionários, desde a secretaria que contava com três, a secção
técnica com outros três, um dos quais desenhadores, um mecânico e a secção do
trânsito que contava com dois funcionários e mais uma patrulha da polícia de
trânsito que trabalhava em articulação. Falamos de funcionários do quadro de
Obras Públicas e Transportes por que, para além destes havia mais de uma
centena de trabalhadores eventuais, carpinteiros, pedreiros, motoristas e
outros indiferenciados. Portanto, este serviço público, tinha a seu cargo desde
a construção de uma escola ou um posto administrativo até uma estrada com as
suas pontes e viadutos.
Cabia à secção técnica a elaboração
de projectos, concursos públicos e até a execução de obras públicas de pequena
dimensão e monta. Para tal tinha que submeter à Direcção Provincial,
anualmente, um conjunto de projectos e respectivo orçamento para ser
cabimentado no orçamento geral da Província.
Quando cheguei não sabia nada desta
matéria e, como tal, assim me apresentei ao Rosas, o referido Chefe de
Trabalhos, com toda a humildade. Bonacheirão como era respondeu-me que isso era
o que acontecia a todos e o que era preciso era força de vontade para aprender.
Acrescentou, então: é casado, solteiro, veio sozinho, onde está alojado, como
é? Respondi que era casado que tinha uma filha e estava alojado no Hotel Girão.
Disse logo com toda a sua prestimosa atenção: Vamos lá encontrar uma casa para
morar que isto de estar no Hotel não ganha para as despesas.
Assim foi. Fez um telefonema e
passada meia hora estávamos todos a ver uma casa, melhor, um apartamento num
terceiro andar mesmo em frente da Sé Catedral, pertencente a um dos grandes
comerciantes da cidade que era, também, fornecedor de materiais de construção
para a repartição.
O Rosas era uma pessoa muito
conhecida e estimada na cidade. Para além da posição que detinha na repartição,
fora jovem para aquela cidade, ali casara e fizera vida há mais de trinta anos.
Era também presidente do clube Sporting Clube do Bié que, para além da equipa
de futebol, tinha grandes equipas de desporto amador como o andebol e o
basquetebol.
Foi uma experiência extraordinária
para si e para a sua família nuclear. Muita aprendizagem. Já vinha desde os
seus primeiros tempos de vida consciente a máxima aprendida através do pai e
dos avós que “ o saber não ocupa lugar” e já jovem adulto, de um professor de
português, no quinto ano do liceu, outra complementar que era “a faculdade de aprender
é a faculdade de esquecer” e tudo isto fez com que muito rapidamente tivesse
aprendido o básico para desempenhar com eficácia as funções. Com tal agrado por
parte do Rosas que passei a ser seu confidente, seu braço direito e seu pupilo
dilecto, perdoe-se-me a imodéstia.
Entretanto o conhecimento com os
demais colegas, vizinhos, outros funcionários das demais repartições fizeram
com que estabelecêssemos uma rede de amizades e de convivência social muito
interessante.
Outra coincidência que não esperava
foi o encontro, poucos dias depois, com um conterrâneo que estava instalado no
Vouga, concelho limítrofe da cidade, comerciante muito querido e poderoso no
meio, vereador na respectiva Câmara Municipal, a título gracioso, como era
normal na época e nomeado pelas entidades oficiais por ser pessoa conceituada
no meio e que eu conhecia de Luanda por ser visita da casa dos meus pais, o
Senhor João Manteigas. Grande amigo que já era e, cuja amizade, se fortaleceu
com o convívio, no mínimo, semanal.
Poucos meses depois já sabíamos
tudo da vida uns dos outros. Éramos sócios da mesma Cooperativa que nos
fornecia todos os produtos alimentares, para assim, ser mais económico para
todos.
Já toda a gente sabia que a minha
mulher tinha o quinto ano do liceu, tinha trabalhado nos Correios em Portugal
continental e que ali só cuidava da casa e da filha pelo logo, alguém, soube de
uma vaga nos serviços da Administração e o Rosas lá foi indicar a minha mulher
como potencial candidata. Um mês ou dois depois lá foi ela trabalhar como
Administrador, repartição igual aquela em que eu comecei em Luanda.
Ela não gostava muito do trabalho
porque tinha dificuldades em escrever à máquina e porque a maior parte do
trabalho era passar guias para os contratados para as fazendas do Norte de
Angola. Talvez por isso, e porque eu comecei a conhecer o que se passava nos
meandros da função pública local, soube que estavam abertas as inscrições para
o exame de admissão ao Magistério Primário local. Conversámos sobre o assunto
e, pouco menos de um ano de estarmos naquela cidade a minha mulher entrou no
Magistério para tirar o curso de professora primária.
Início de Setembro de 1969 lá foi
para as aulas e eu levava a minha filha Lena, já com dois anitos, mas uma
menina educada, simpática, linda que toda a gente queria apaparicar para o meu
gabinete já que a mãe não a podia ter com ela e eu estava sozinho no meu
gabinete e, consequentemente, ela não incomodava ninguém. Brincava com os
brinquedos e, como atrás referi, era o bijou de todos os colegas. Apesar disso o
Rosas um dia disse-me: Caldeira por que é que a miúda não fica lá em casa com a
minha mulher e a minha filha mais nova? Acanhado, tentei recusar a oferta,
extremamente generosa, dizendo que não queria incomodar. Mas ele insistiu. Vai
para lá de manhã antes do você vir para o trabalho e vai lá buscá-la ao fim da
tarde. Isto não custa nada. Ela brinca com a minha Vanda e com a Isabel (uma
miúda preta sua afilhada e que eles criavam como filha) escusa da sua mulher
andar atarefada na hora do almoço e de você estar preocupado com a miúda quando
precisar de fazer qualquer serviço externo.
Isto foi sair a sorte grande já que
o serviço externo era muito frequente, duas três vezes por semana e a minha
filha condicionava muito quer a minha actividade quer a da mãe.
Lá fomos levar a nossa Lena à Dona
Aurora que a recebeu com extremo carinho. A partir daí a nossa filha foi
tratada como se fosse outra filha do casal e a minha mulher pode fazer o curso
do Magistério Primário com tranquilidade e empenho o que lhe rendeu uma das
melhores notas desse ano (dezasseis) valores havendo apenas outra colega que
obteve igual classificação.
Neste intervalo foi colocado a
Chefiar a Repartição um engenheiro, português, Licenciado no Porto mas nascido
em Cantão, China, filho de pai português e mãe chinesa mas criado em Macau.
Depois de licenciado voltou para Macau onde iniciou funções nas Obras Públicas
locais. Muitos anos lá trabalhou até que um militar que foi lá colocado como
governador lhe moveu um processo disciplinar e o transferiu para Angola e para
Silva Porto. A mulher era chinesa e tinha filhas a estudar em Macau. Este rude
golpe para o engenheiro, que não sabemos se foi justo ou injusto, transformou-o
num péssimo funcionário público. Não queria saber nada do que se passava e tudo
deixou nas costas do Rosas.
Nós lá íamos continuando com as
nossas aprendizagens e fazendo a nossa vida profissional. Como o Rosas
construiu uma moradia geminada de raiz numa zona muito bonita da cidade
alugámos-lhe uma das casas deixando o terceiro andar onde iniciámos a nossa
estada naquela cidade.
O mês de Março em Angola era de
férias escolares e, por isso aproveitei o Março de 1970 para ir de férias para
Luanda aproveitando as férias da minha mulher. Na tarde de 28 de Fevereiro
assisti, na minha secção de trabalho, a um acerto de contas entre o Rosas e o
Zé Luís, aquele comerciante de materiais diversos entre eles de materiais de
construção, amigo pessoal do Rosas e fornecedor das Obras Públicas através de
requisições que eram liquidadas quando o orçamento da Repartição fosse
concretizado em pagamentos pelo Governo-geral. Nesse acerto começou por haver
discordância entre os dois acerca dos valores em dívida e do montante do cheque
passado ao comerciante. O Rosas esclareceu que o Zé Luís estava errado,
demonstrou-lhe o erro e acrescentou que as Obras Públicas ficavam com um crédito
de 150 placas de fibrocimento que ainda não tinham sido fornecidas. A coisa
ficou assim acertada e, entretanto, chegaram-se as dezassete horas e depois de
dar conta ao Rosas do trabalho que tinha em mãos e que era preciso continuar
despedi-me até ao dia um de Abril. Mal sabia eu que seria até à eternidade.
No dia 16 de Março regressado com a
minha mulher e a filha – na altura ainda só tinha a minha primeira filha – da
praia cheguei a casa e tinha um telegrama do engenheiro a pedir-me para
regressar urgentemente porque se dera, no dia anterior a morte prematura e
inesperada do Rosas quando se deslocava, em serviço externo, ao Quando Cubango,
um dos extremos do distrito do Bié, para inspeccionar a construção da
Administração e da casa do Chefe de Posto. Fiquei para morrer. Tive de
regressar de avião porque, entretanto, tinha tido um pequeno acidente com o
carro, do qual não tive nenhuma responsabilidade e o culpado responsabilizou-se
perante a oficina a pagar os estragos e a reparação demorou mais do que se esperava
e ainda não estava pronto.
Já não cheguei a tempo do funeral
mas no dia seguinte lá estava eu junto daquela família, muito querida, a chorar
uma morte cujas causas aparentes, nunca comprovadas, foram as obras na estrada
e o nevoeiro intenso.
A amizade com o casal e filhos
perdurou até à perda sucessiva de alguns elementos nomeadamente a viúva,
passados mais de vinte anos e do filho mais de trinta. Com os sobreviventes
ainda hoje perduram ainda que nos vejamos pouco pois residimos a distância
considerável.
O Rosas deixou a viúva e os filhos
com graves problemas financeiros. Desde logo devido a uma dívida desconhecida
da viúva, junto do já referido Zé Luís, referente à construção da moradia
geminada onde eu vivia e uma outra família. O Rosas contava pagar a dívida com
as rendas que recebia mensalmente dos inquilinos.
A viúva desconhecia totalmente de
quem o Rosas era devedor mas também de quem era credor e também era de muita
gente. Era uma dona de casa a quem não faltava nada porque quando precisava de dinheiro
pedia e era-lhe entregue. Formas de viver em casal da qual eu não comungo mas
que respeito.
No mês de Abril desloquei-me a
Luanda com a viúva e a filha mais velha que, na época teria os seus dezassete
anos, para junto do Montepio dos Servidores do Estado obter a indemnização
devida e a pensão de sangue. Logo ali nos foram entregues cem contos em
dinheiro vivo que aliviou o sufoco da família enquanto esperava os trâmites da
pensão de sangue que demorou cerca de um ano, mas que veio.
Para cumular a desgraça, ainda não
tinha completado oito dias depois de sepultado já o nome do Rosas estava a ser
enxovalhado. O Zé Luís foi ter com o engenheiro e apresentou uma dívida das
Obras Públicas no valor de setecentos contos. O Engenheiro ficou atarantado.
Não sabia nada do que se passava nem queria saber, como já se disse, estava
numa situação de castigado e via-se embrulhado num, hipotético desfalque ao
Estado. Era muito castigo.
Foi ter com o Governador Civil e
deu-lhe conta do que estava a passar. O Governador, um tenente-coronel de
cavalaria que era extramente amigo do Rosas ficou em pânico mas, ao mesmo
tempo, irritado com o comerciante que também era vereador municipal e tudo isso
se conjugava para arrastar o nome do Rosas pela lama. Perguntou ao engenheiro o
que é que poderiam fazer para não enxovalhar o nome do Rosas e ele disse nada
saber porque, desde a primeira hora, tinha dado carta-branca ao Rosas. Com a
insistência do Governador a tentar perceber quem poderia ajudar na solução do
problema o engenheiro disse-lhe que eu era o braço-direito do Rosas e,
eventualmente, poderia ajudar. Estava no meu trabalho no gabinete e recebo um
telefonema do Governador a convocar-me para uma reunião. Diga-se de passagem
que eu era um jovem de vinte e sete anos com a inexperiência inerente à idade.
Lá fui de imediato, os edifícios eram quase contínuos e cinco minutos depois
estava a ser anunciado pelo secretário do Governador que me mandou entrar de
imediato para o gabinete onde ainda se encontrava o engenheiro.
O Governador conhecia-me,
vagamente, por eu ter fiscalizado a construção de um muro a toda a volta da sua
residência oficial.
Mal entrei o Governador disse-me,
não quero que o nome do Rosas seja manchado. Tudo o que falarmos aqui fica
aqui. Prometi sem rebuço.
Fui então informado que o Zé Luís
tinha apresentado requisições no valor de cerca setecentos contos que estavam
em dívida pelas Obras Públicas e o serviço não tinha como pagar. Fiquei atónito
e contei ao Governador a conversa que ouvira no dia 28 de Fevereiro, que não
sabia de mais nada, mas que me parecia uma malvadez do Zé Luís – que eu tinha
por vigarista - diga-se de passagem. Não tinha como provar nada, pois a
conversa fora entre os dois e eu apenas assisti, porque estava a passar o
trabalho ao Rosas antes de me despedir para férias e seria a palavra dele
contra a minha, já que o Rosas tinha falecido.
O Governador ficou de pensar no
assunto dizendo que nos convocaria aos dois, a mim e ao engenheiro, para uma
reunião no dia seguinte.
Assim foi. Pediu-nos para elaborar
projectos no valor de cinco mil contos para ele ir a Luanda solicitar o
financiamento. Em tempo recorde assim fizemos e numa semana apresentamos os
projectos e respectiva localização das obras. Em boa verdade eles estavam
feitos há muito tempo e destinavam-se às zonas mais remotas do distrito e, por
essa razão, ano a ano firam ficando para trás. Só foi preciso fazer as
actualizações de preços e de concertação com os Serviços da Administração.
Dois dias depois chamou-nos e
entregou ao engenheiro um cheque nesse valor para executar as obras por
administração directa e de forma muito parcimoniosa, poupando o mais que fosse
possível para se pagar a dívida apresentada, que, em boa verdade, nunca existiu
mas que as requisições permitiam ao detentor criar graves problemas ao
Governador, ao Engenheiro e enxovalhava o nome do Rosas.
O Governador fez mais. Deu-me
ordens expressas para por em marcha todas as obras ao mesmo tempo e pôs à minha
disposição o seu avião particular e respectivo piloto todas as quartas-feiras
para eu poder fiscalizar as obras sem muita perda de tempo, já que as
distâncias eram longas e a estradas eram picadas. Qualquer viagem de carro
demora muitas horas o que me obrigaria a andar todos os dias em serviço
externo, o que era impraticável. Desta maneira visitava as obras todas nas
diferentes localidades uma vez por semana fazendo as deslocações de avião.
Foi um ano de trabalho muito
intenso. Valeu-nos as equipas contratadas que foram fantásticas. Faziam-me
chegar o pedido de materiais com regularidade de forma atempada, eu encomendava
aos fornecedores, os motoristas – naquele ano tivemos de contratar mais um,
passando a ser dois – distribuíam, os encarregados da obra mandavam aplicá-los
e a chefe da secretaria encarregava-se de pagar os materiais e salários. A nós,
eu o engenheiro fizemos um verdadeiro périplo pelas redondezas para conseguir
os melhores preços para poupar o máximo com vista a pagar a dívida.
Na circunstância conseguimos em
Nova Lisboa, cidade capital do distrito limítrofe, preços que nunca nos tinha
passado pela cabeça.
Aqui vai a história: - Um dia fomos
a Nova Lisboa tratar de assuntos ligados à Repartição e passámos por uma grande
loja de materiais de construção e entrámos por curiosidade mas também para aquilatar
dos preços praticados já que até aí só comprávamos aos comerciantes de Silva
Porto.
Um material usado, em grandes quantidades,
eram placas de fibrocimento para os telhados e os respectivos parafusos com
anilhas para fixação das mesmas na estrutura de madeira. Para se ter uma ideia,
esses parafusos, em Silva Porto custavam, a unidade, entre os sete escudos e os
sete escudos e cinquenta centavos. Na referida loja em Nova Lisboa vendiam-nos
a dois escudos e cinquenta a unidade. Ficámos atónitos. Nunca nos tinha passado
pela cabeça que pudesse existir um diferencial tão grande entre Silva Porto e
Nova Lisboa apesar de Nova Lisboa ser uma cidade muito maior e mais importante
que Silva Porto e que distavam entre si cento e cinquenta quilómetros de boa
estrada rodoviária. Mas não ficámos por aqui. O Empregado que nos atendeu
acrescentou: - se levarem mil parafusos faço-lhe a um escudo e cinquenta a
unidade. Ficámos de queixo caído. Para os nossos projectos precisávamos de
cinco mil parafusos. Retorquímos: - Somos das Obras Públicas de Silva Porto e
até levávamos cinco mil mas não viemos preparados com cheques da Repartição ao
que o senhor respondeu: - não há problema nenhum. Levem os parafusos e depois
mandem o cheque.
Não nos conhecia de lado nenhum. A
confiança era base de trabalho daquela grande empresa e por isso ganhava
dinheiro sem especular como acontecia com aqueles comerciantes de Silva Porto que
usavam o monopólio da distribuição para sugar o máximo a quem não se deslocava
dali e, mais facilmente ao Estado já que este não discutia o preço.
Quando contámos ao Governador ele
ficou indignado e, logo ali, nos deu aval para podermos ir a Nova Lisboa
comprar tudo o que fosse preciso e assim, com a poupança nos materiais
pudéssemos concluir as construções mantendo a qualidade e sobrasse o dinheiro
suficiente para pagar a, hipotética dívida. Aliás queria mais. Queria que
pagássemos, imediatamente, a dívida mesmo antes de concluídas as obras ao que
eu manifestei a minha oposição frontal. Se qualquer coisa corresse mal e não
tivéssemos dinheiro para concluir todas as obras teríamos problemas nós, que
não tínhamos participado em nada daquele imbróglio. O Governador assentiu
considerando razoável a oposição.
Assim fizemos e ao fim do ano e da
conclusão de todas as obras fomos levar o cheque ao Governador e as contas
certinhas e ele chamou o comerciante a quem deu uma sarabanda de todo o tamanho
e entregou o cheque exigindo-lhe um documento de quitação. Ele ainda se queixou
de nós que nunca mais lhe comprámos nada e que isso comprometia o
desenvolvimento do distrito mas não valeu de nada. Enfim estórias de vida como
é o título deste manuscrito.
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