Capítulo 19
A minha mulher conseguiu concorrer
e teve a sorte de ficar colocada na escola da terra que nos viu nascer e isso
foi uma alavanca para decidirmos abandonar, definitivamente, uma terra onde
fomos imensamente felizes e que julgávamos que nos iria guardar para além da
morte.
Não sendo possível este nosso
projecto de vida resolvemos mudar de rumo e ajustar os nossos objectivos.
Organizámos tudo o que era possível
organizar, em tempo record, para regressar a Portugal.
Arranjámos caixotes onde embalámos
as coisas fundamentais para um recomeço de vida e o meu pai embarcou com o seu
carro e os caixotes no dia 31 de Agosto de 1974.
A minha mãe e as minhas filhas já
estavam instaladas na Meimoa e eu comecei a pensar na forma de vir embora logo
que possível.
Juntámo-nos na nossa casa eu, o meu
cunhado António, o meu primo Pina, o Frederico Pixote. Cozinhávamos e lá
vivíamos sempre alerta.
Tínhamos a sorte de viver no centro
da cidade e raramente se ouviam tiros. Até um dia em que um grupo de indivíduos
quis atacar um vizinho nosso. Saímos em sua defesa e tudo acabou bem. Viemos a
saber depois que era um ajuste de contas.
Quando começámos a gizar o nosso
regresso a Portugal fomo-nos informar sobre a possibilidade de enviar algum
dinheiro. Foi-nos dito que poderíamos fazê-lo desde o dinheiro estivesse
depositado num estabelecimento bancário e o depositante fizesse uma declaração,
devidamente reconhecida pelo notário, de que a sua ausência era definitiva ou,
no mínimo, por um prazo de cinco anos.
Juntámos o nosso dinheiro com o do
meu pai e este fez a tal declaração que entregámos no Fundo Cambial pedindo
então a remessa do dinheiro para Portugal. Entretanto viemos com cinco contos
cada um no bolso, o valor máximo autorizado. Qualquer coisa como vinte e cinco
euros nos dias de hoje ainda que, naquele tempo, a vida era muito diferente e
os ordenados eram baixíssimos. Um professor ganhava três mil e trezentos
escudos (3 contos e trezentos).
Toda a restante família começou a
vir embora. A Vida começou a ser insuportável mais pela sensação de insegurança
do que por efectiva perseguição.
Tentei convencer o meu cunhado
António a regressar mas ele, porque era solteiro, achou que devia arriscar e
quis ficar. Eu trouxe comigo o meu primo Pina. Regressei no dia 5 de Outubro de
1974 tendo trazido uma guia de marcha sem termo de regresso. Um favor que me
foi feito pelo meu Director de Serviço e pelo Director dos Recursos Humanos da
Câmara Municipal de Luanda.
Quando me dirigi ao Ministério do
Ultramar que ainda não tinha sido extinto uma senhora que me atendeu disse-me
que, segundo a Guia eu poderia ficar o tempo que quisesse. Agradeci mas pedi
que me propusesse para ir à Junta Médica pois sentia-me doente. Era meia
verdade. Tinha tido durante o mês de Setembro uma crise renal muito violenta
que só atenuou com algumas doses de injecções de um analgésico forte e isso foi
o suficiente para me darem três meses de licença.
Entretanto as coisas agravavam-se
dia-a-dia. Houve o acordo de Alvor com os três movimentos de libertação que, na
prática, só serviu para distrair os políticos portugueses e internacionais
pois, em Angola, o almirante vermelho, Rosa Coutinho, que era Governador-Geral
até à data da independência aprazada para dia 11 de Novembro de 1975, deixava
reforçar as posições do MPLA e hostilizava os outros dois Movimentos Políticos.
Mandou desarmar todos os brancos e cometeu outras atrocidades que a História um
dia há-de mostra. Igualmente demonstrará como alguns traidores à Pátria foram
capazes de, num ano, acabar com um império de quinhentos anos. É, pelo menos, a
nossa convicção.
Agarrei esta oportunidade com unhas
e dentes e comecei, desde logo a procurar trabalho.
No ano anterior tinha tido uma
oferta muito vantajosa para trabalhar numa grande empresa de construção civil,
J. Pimenta, Lda. Desta forma foi a minha primeira opção ir à empresa para ver
se a oferta anterior se mantinha de pé. Tal não foi possível porque, entretanto,
o dono da empresa teve que fugir para o Brasil.
Voltei para a terra e deslocava-me
várias vezes a Lisboa para ver se o meu carro já tinha vindo de Luanda. Na
altura era o bem mais valioso que possuía. Quando saí de Luanda deixei-o na
alfândega para que fosse embarcado o mais depressa possível tendo deixado pago
o respectivo transporte. Tardava a vir até que, em Janeiro de 1975 lá apareceu.
Para o retirar da Alfândega de Lisboa foi mais um martírio apesar de ter tudo
legal. Em situações daquelas é que me vinha ao pensamento a ideia de que o
Salazar foi pouco sagaz porque tratou sempre as colónias como se de países
estrangeiros se tratasse. Para transaccionarmos fosse o que fosse entre
Portugal Continental e Angola era precisa pagar direitos alfandegários para
além da burocracia inerente. Uma estupidez como estupidez foi a necessidade de
carta de chamada nos anos cinquenta do século vinte para se poder ir para lá.
Felizmente tal lei foi abolida no início da década de sessenta, mas as
restantes leis inerentes à moeda e aos restantes produtos mantiveram-se sempre
com prejuízo para Portugal e para Angola, pelo menos no que respeita aos
respectivos povos.
Entretanto arranjei emprego,
precário, na Câmara Municipal de Penamacor. O ordenado mal dava para as
despesas de deslocação e alimentação no restaurante mas era um emprego e isso
era um alívio para quem, de um momento para o outro, passou de uma vida
estável, confortável e até de um bem-estar assinalável, para uma situação de
quase penúria.
Entretanto a política no país
degradava-se de dia para dia. O PCP e seus satélites dominavam pelo terror todo
o país. Foram as ocupações selvagens de casas de habitação, muitas delas por
acabar, a nacionalização da banca, a ocupação das herdades com a malfadada
reforma agrária, que o povo sério e honesto começou a apelidar de reforma
agarra, tal o abuso na delapidação do património em proveito apenas de alguns
que estavam na cúpula do partido comunista.
Em 11 de Março deu-se aquilo que se
veio a chamar o PREC (processo revolucionário em curso) com o apoio dos militares
comunistas e a tomada do poder da rua pelo PCP.
Enquanto isso em Angola tornava-se
insustentável a vida para os brancos. Começavam a vir em magotes muitos
daqueles que vieram a ser apelidados de retornados. Mais uma imprecisão porque
muitos desses vinham para uma terra estranha já que tinham nascido lá e muitos
dos seus pais e avós também.
Vivíamos numa casa emprestada pela
minha tia Iria que estava no Luxemburgo e tinha a casa vazia mas impunha-se
arranjar casa própria. Não havia dinheiro e a angústia apoderava-se de todos
nós. Aquele dinheiro que esperávamos que viesse através do Fundo Cambial como
tínhamos previsto e era de lei nunca mais aparecia. Para mim essa apreensão era
muito grande porque estava a ver a minha filha Raquel a crescer sem lhe poder
dar aquilo que tinha dado à minha filha Lena que, até aquela data tinha sido
criada como uma princesa mas à Raquel, não lhe faltando nada do essencial todos
aqueles mimos que eu gostava de lhe dar não eram possíveis.
Em Maio chegou uma boa notícia.
Todos os funcionários públicos do ultramar iriam ter um quadro de pessoal com
todas as regalias a que tinham direito no dia em que saíram de lá excepto, como
é óbvio, ao chamado vencimento complementar. Isto é ao remanescente que
acrescentava ao vencimento base que era igual em todo o território nacional. Na
altura o vencimento dos funcionários públicos era regido pelas letras do
alfabeto. Sendo a letra A o vencimento de um director-geral e a letra z a de um
contínuo. Nós tínhamos a letra G.
Metemos o requerimento necessário
para a integração nesse Quadro que iria, segundo a publicação da Lei no Diário
da República ter início efectivo no dia 12 de Agosto de 1975. O Diário da
República do dia 13 de Agosto trazia o nosso nome como integrante desse Quadro
de Pessoal que depois iria disponibilizar pessoal pelos diferentes órgãos do
Estado, desde Ministérios a Autarquias. No mês seguinte começámos a receber o
que tínhamos direito seis mil e seiscentos escudos mensais. A vida voltou a dar
alguma esperança.
A questão renal é que cada vez se
agravava mais, por isso fui a um urologista em Lisboa que me receitou termas da
Cúria. No mês de Setembro de 1976, coloquei uma tenda de campismo em Mira, onde
deixei a mulher e as filhas e eu deslocava-me todos os dias de manhã para fazer
os tratamentos e à tarde dava uma volta pela praia.
Coincidência encontrei-me lá com o
Luís Vaz e família e, em conversa, informou-me que havia um curso do magistério
primário no Fundão e que se me matriculasse até me ajudavam a pagar as despesas
de transporte.
Convém aqui dizer que eu tinha
feito o exame de admissão ao Magistério no ano anterior em Castelo Branco e
tinha sido aceite. Não frequentei porque as condições económicas não me
permitiam. Esta conversa ficou a pairar na minha cabeça e comecei a pensar que
se eu tirasse o curso isso permitiria que, ao abrigo da Lei dos Cônjuges,
conseguíssemos colocação para os dois, aliás era o que acontecia com a maioria
dos colegas do nosso concelho.
Acabadas as férias desloquei-me ao
Fundão e falei com a Directora que me aceitou e me deu garantias de que o apoio
social me iria ajudar no pagamento da gasolina já que não havia transporte
público directo para o Fundão, caso contrário estava garantido o passe.
Resolvi deixar o trabalho na Câmara
Municipal e ir estudar para o Magistério com a ideia de que em dois anos
seríamos um casal de professores o que nos permitiria criar as nossas filhas
com as condições necessárias para serem alguém na vida.
Iniciámos o ano lectivo de 76/77 e
pouco tempo depois um novo ministro da Educação o Sotto Mayor Cardia decidiu
que o curso teria que ser de três anos em vez de dois para aqueles que
iniciaram o cursos nesse ano lectivo e daí para a frente. Isto quer dizer que
ainda tive colegas que andavam no segundo ano que quando eu terminei o primeiro
eles acabaram o curso e a mim ainda ficaram a faltar-me mais dois anos. Foi uma
contrariedade mas depois verificámos que as aprendizagens que fizemos tiveram,
efectivamente, um salto qualitativo considerável e, por isso, valeu a pena.
Em Maio de 1979 fui colocado pelo
Ministério da Administração Interna na Câmara do Porto no meu lugar de origem
de Luanda. Mais uma contrariedade pois só me faltava um mês para concluir o
Curso do Magistério Primário e essa colocação deitava por terra o meu projecto
e todo o esforço familiar durante três anos. Se não aceitasse o lugar seria
exonerado do cargo que detinha no funcionalismo público com todas as perdas de
regalias que isso acarretava. Fiz uma carta ao Ministro a expor a situação
pedindo-lhe que adiasse a minha colocação por mais dois meses e ele aceitou.
No início do ano lectivo de 1979/80
fui colocado como professor no concelho de Oleiros e a partir de Janeiro na
Meimoa. Trabalhei mais de seis meses e isso garantia a vinculação ao Estado ainda
não como professor efectivo mas, mesmo assim, com vínculo e com as regalias
quase iguais às dos colegas do Quadro com excepção de que tinha que concorrer
todos os anos para escola diferentes e, por conseguinte, mudar de escola todos
os anos.
Desvinculei-me do Quadro Geral de
Adidos e rumei a minha vida na carreira docente.
A Minha Lena, entretanto, tinha
começado o ciclo preparatório no Fundão e aí deu continuidade até ao oitavo
ano. Em Penamacor na altura só havia um colégio privado ao nível do secundário
e o seu ensino tinha algumas lacunas que eu não queria para as minhas filhas.
Entretanto a minha Raquel estudava no ensino primário e era aluna da mãe, na
Meimoa, onde esta já era professora efectiva.
Entretanto ficámos colocados, por
concurso, na Educação de Adultos então criada pelo Governo da Aliança
Democrática chefiada pelo malogrado Dr. Francisco Sá Carneiro, na localidade de
Aranhas, terra nossa vizinha aqui do concelho e começámos a fazer aquilo que
muito gostávamos, ensinar alguma coisa àqueles que nunca tiveram a
possibilidade de aprender, porque nunca puderam frequentar a escola.
Isto não invalida que não tenha
gostado de todas as outras actividades que desenvolvera até aqui mas, ensinar
adultos foi para mim uma paixão.
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