sexta-feira, 4 de setembro de 2020

Estórias de vida 19

 

Capítulo 19

 

A minha mulher conseguiu concorrer e teve a sorte de ficar colocada na escola da terra que nos viu nascer e isso foi uma alavanca para decidirmos abandonar, definitivamente, uma terra onde fomos imensamente felizes e que julgávamos que nos iria guardar para além da morte.

Não sendo possível este nosso projecto de vida resolvemos mudar de rumo e ajustar os nossos objectivos.

Organizámos tudo o que era possível organizar, em tempo record, para regressar a Portugal.

Arranjámos caixotes onde embalámos as coisas fundamentais para um recomeço de vida e o meu pai embarcou com o seu carro e os caixotes no dia 31 de Agosto de 1974.

A minha mãe e as minhas filhas já estavam instaladas na Meimoa e eu comecei a pensar na forma de vir embora logo que possível.

Juntámo-nos na nossa casa eu, o meu cunhado António, o meu primo Pina, o Frederico Pixote. Cozinhávamos e lá vivíamos sempre alerta.

Tínhamos a sorte de viver no centro da cidade e raramente se ouviam tiros. Até um dia em que um grupo de indivíduos quis atacar um vizinho nosso. Saímos em sua defesa e tudo acabou bem. Viemos a saber depois que era um ajuste de contas.

Quando começámos a gizar o nosso regresso a Portugal fomo-nos informar sobre a possibilidade de enviar algum dinheiro. Foi-nos dito que poderíamos fazê-lo desde o dinheiro estivesse depositado num estabelecimento bancário e o depositante fizesse uma declaração, devidamente reconhecida pelo notário, de que a sua ausência era definitiva ou, no mínimo, por um prazo de cinco anos.

Juntámos o nosso dinheiro com o do meu pai e este fez a tal declaração que entregámos no Fundo Cambial pedindo então a remessa do dinheiro para Portugal. Entretanto viemos com cinco contos cada um no bolso, o valor máximo autorizado. Qualquer coisa como vinte e cinco euros nos dias de hoje ainda que, naquele tempo, a vida era muito diferente e os ordenados eram baixíssimos. Um professor ganhava três mil e trezentos escudos (3 contos e trezentos).

Toda a restante família começou a vir embora. A Vida começou a ser insuportável mais pela sensação de insegurança do que por efectiva perseguição.

Tentei convencer o meu cunhado António a regressar mas ele, porque era solteiro, achou que devia arriscar e quis ficar. Eu trouxe comigo o meu primo Pina. Regressei no dia 5 de Outubro de 1974 tendo trazido uma guia de marcha sem termo de regresso. Um favor que me foi feito pelo meu Director de Serviço e pelo Director dos Recursos Humanos da Câmara Municipal de Luanda.

Quando me dirigi ao Ministério do Ultramar que ainda não tinha sido extinto uma senhora que me atendeu disse-me que, segundo a Guia eu poderia ficar o tempo que quisesse. Agradeci mas pedi que me propusesse para ir à Junta Médica pois sentia-me doente. Era meia verdade. Tinha tido durante o mês de Setembro uma crise renal muito violenta que só atenuou com algumas doses de injecções de um analgésico forte e isso foi o suficiente para me darem três meses de licença.

Entretanto as coisas agravavam-se dia-a-dia. Houve o acordo de Alvor com os três movimentos de libertação que, na prática, só serviu para distrair os políticos portugueses e internacionais pois, em Angola, o almirante vermelho, Rosa Coutinho, que era Governador-Geral até à data da independência aprazada para dia 11 de Novembro de 1975, deixava reforçar as posições do MPLA e hostilizava os outros dois Movimentos Políticos. Mandou desarmar todos os brancos e cometeu outras atrocidades que a História um dia há-de mostra. Igualmente demonstrará como alguns traidores à Pátria foram capazes de, num ano, acabar com um império de quinhentos anos. É, pelo menos, a nossa convicção.

Agarrei esta oportunidade com unhas e dentes e comecei, desde logo a procurar trabalho.

No ano anterior tinha tido uma oferta muito vantajosa para trabalhar numa grande empresa de construção civil, J. Pimenta, Lda. Desta forma foi a minha primeira opção ir à empresa para ver se a oferta anterior se mantinha de pé. Tal não foi possível porque, entretanto, o dono da empresa teve que fugir para o Brasil.

Voltei para a terra e deslocava-me várias vezes a Lisboa para ver se o meu carro já tinha vindo de Luanda. Na altura era o bem mais valioso que possuía. Quando saí de Luanda deixei-o na alfândega para que fosse embarcado o mais depressa possível tendo deixado pago o respectivo transporte. Tardava a vir até que, em Janeiro de 1975 lá apareceu. Para o retirar da Alfândega de Lisboa foi mais um martírio apesar de ter tudo legal. Em situações daquelas é que me vinha ao pensamento a ideia de que o Salazar foi pouco sagaz porque tratou sempre as colónias como se de países estrangeiros se tratasse. Para transaccionarmos fosse o que fosse entre Portugal Continental e Angola era precisa pagar direitos alfandegários para além da burocracia inerente. Uma estupidez como estupidez foi a necessidade de carta de chamada nos anos cinquenta do século vinte para se poder ir para lá. Felizmente tal lei foi abolida no início da década de sessenta, mas as restantes leis inerentes à moeda e aos restantes produtos mantiveram-se sempre com prejuízo para Portugal e para Angola, pelo menos no que respeita aos respectivos povos.

Entretanto arranjei emprego, precário, na Câmara Municipal de Penamacor. O ordenado mal dava para as despesas de deslocação e alimentação no restaurante mas era um emprego e isso era um alívio para quem, de um momento para o outro, passou de uma vida estável, confortável e até de um bem-estar assinalável, para uma situação de quase penúria.

Entretanto a política no país degradava-se de dia para dia. O PCP e seus satélites dominavam pelo terror todo o país. Foram as ocupações selvagens de casas de habitação, muitas delas por acabar, a nacionalização da banca, a ocupação das herdades com a malfadada reforma agrária, que o povo sério e honesto começou a apelidar de reforma agarra, tal o abuso na delapidação do património em proveito apenas de alguns que estavam na cúpula do partido comunista.

Em 11 de Março deu-se aquilo que se veio a chamar o PREC (processo revolucionário em curso) com o apoio dos militares comunistas e a tomada do poder da rua pelo PCP.

Enquanto isso em Angola tornava-se insustentável a vida para os brancos. Começavam a vir em magotes muitos daqueles que vieram a ser apelidados de retornados. Mais uma imprecisão porque muitos desses vinham para uma terra estranha já que tinham nascido lá e muitos dos seus pais e avós também.

Vivíamos numa casa emprestada pela minha tia Iria que estava no Luxemburgo e tinha a casa vazia mas impunha-se arranjar casa própria. Não havia dinheiro e a angústia apoderava-se de todos nós. Aquele dinheiro que esperávamos que viesse através do Fundo Cambial como tínhamos previsto e era de lei nunca mais aparecia. Para mim essa apreensão era muito grande porque estava a ver a minha filha Raquel a crescer sem lhe poder dar aquilo que tinha dado à minha filha Lena que, até aquela data tinha sido criada como uma princesa mas à Raquel, não lhe faltando nada do essencial todos aqueles mimos que eu gostava de lhe dar não eram possíveis.

Em Maio chegou uma boa notícia. Todos os funcionários públicos do ultramar iriam ter um quadro de pessoal com todas as regalias a que tinham direito no dia em que saíram de lá excepto, como é óbvio, ao chamado vencimento complementar. Isto é ao remanescente que acrescentava ao vencimento base que era igual em todo o território nacional. Na altura o vencimento dos funcionários públicos era regido pelas letras do alfabeto. Sendo a letra A o vencimento de um director-geral e a letra z a de um contínuo. Nós tínhamos a letra G.

Metemos o requerimento necessário para a integração nesse Quadro que iria, segundo a publicação da Lei no Diário da República ter início efectivo no dia 12 de Agosto de 1975. O Diário da República do dia 13 de Agosto trazia o nosso nome como integrante desse Quadro de Pessoal que depois iria disponibilizar pessoal pelos diferentes órgãos do Estado, desde Ministérios a Autarquias. No mês seguinte começámos a receber o que tínhamos direito seis mil e seiscentos escudos mensais. A vida voltou a dar alguma esperança.

A questão renal é que cada vez se agravava mais, por isso fui a um urologista em Lisboa que me receitou termas da Cúria. No mês de Setembro de 1976, coloquei uma tenda de campismo em Mira, onde deixei a mulher e as filhas e eu deslocava-me todos os dias de manhã para fazer os tratamentos e à tarde dava uma volta pela praia.

Coincidência encontrei-me lá com o Luís Vaz e família e, em conversa, informou-me que havia um curso do magistério primário no Fundão e que se me matriculasse até me ajudavam a pagar as despesas de transporte.

Convém aqui dizer que eu tinha feito o exame de admissão ao Magistério no ano anterior em Castelo Branco e tinha sido aceite. Não frequentei porque as condições económicas não me permitiam. Esta conversa ficou a pairar na minha cabeça e comecei a pensar que se eu tirasse o curso isso permitiria que, ao abrigo da Lei dos Cônjuges, conseguíssemos colocação para os dois, aliás era o que acontecia com a maioria dos colegas do nosso concelho.

Acabadas as férias desloquei-me ao Fundão e falei com a Directora que me aceitou e me deu garantias de que o apoio social me iria ajudar no pagamento da gasolina já que não havia transporte público directo para o Fundão, caso contrário estava garantido o passe.

Resolvi deixar o trabalho na Câmara Municipal e ir estudar para o Magistério com a ideia de que em dois anos seríamos um casal de professores o que nos permitiria criar as nossas filhas com as condições necessárias para serem alguém na vida.

Iniciámos o ano lectivo de 76/77 e pouco tempo depois um novo ministro da Educação o Sotto Mayor Cardia decidiu que o curso teria que ser de três anos em vez de dois para aqueles que iniciaram o cursos nesse ano lectivo e daí para a frente. Isto quer dizer que ainda tive colegas que andavam no segundo ano que quando eu terminei o primeiro eles acabaram o curso e a mim ainda ficaram a faltar-me mais dois anos. Foi uma contrariedade mas depois verificámos que as aprendizagens que fizemos tiveram, efectivamente, um salto qualitativo considerável e, por isso, valeu a pena.

Em Maio de 1979 fui colocado pelo Ministério da Administração Interna na Câmara do Porto no meu lugar de origem de Luanda. Mais uma contrariedade pois só me faltava um mês para concluir o Curso do Magistério Primário e essa colocação deitava por terra o meu projecto e todo o esforço familiar durante três anos. Se não aceitasse o lugar seria exonerado do cargo que detinha no funcionalismo público com todas as perdas de regalias que isso acarretava. Fiz uma carta ao Ministro a expor a situação pedindo-lhe que adiasse a minha colocação por mais dois meses e ele aceitou.

No início do ano lectivo de 1979/80 fui colocado como professor no concelho de Oleiros e a partir de Janeiro na Meimoa. Trabalhei mais de seis meses e isso garantia a vinculação ao Estado ainda não como professor efectivo mas, mesmo assim, com vínculo e com as regalias quase iguais às dos colegas do Quadro com excepção de que tinha que concorrer todos os anos para escola diferentes e, por conseguinte, mudar de escola todos os anos.

Desvinculei-me do Quadro Geral de Adidos e rumei a minha vida na carreira docente.

A Minha Lena, entretanto, tinha começado o ciclo preparatório no Fundão e aí deu continuidade até ao oitavo ano. Em Penamacor na altura só havia um colégio privado ao nível do secundário e o seu ensino tinha algumas lacunas que eu não queria para as minhas filhas. Entretanto a minha Raquel estudava no ensino primário e era aluna da mãe, na Meimoa, onde esta já era professora efectiva.

Entretanto ficámos colocados, por concurso, na Educação de Adultos então criada pelo Governo da Aliança Democrática chefiada pelo malogrado Dr. Francisco Sá Carneiro, na localidade de Aranhas, terra nossa vizinha aqui do concelho e começámos a fazer aquilo que muito gostávamos, ensinar alguma coisa àqueles que nunca tiveram a possibilidade de aprender, porque nunca puderam frequentar a escola.

Isto não invalida que não tenha gostado de todas as outras actividades que desenvolvera até aqui mas, ensinar adultos foi para mim uma paixão.

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