A vida no seu continuum desenrolava-se com toda a normalidade até que, sem
contarmos, fomos confrontados com a nova gravidez da minha mulher.
Apesar de não programada ficámos
felizes com o acontecimento começando, desde logo, a preparação para receber o
novo ser que vinha a caminho.
Não havia ecografias e só se sabia
se era menino ou menina após o nascimento. A nossa filha Lena queria que fosse
uma mana e não um mano.
A minha mulher continuava a
trabalhar na escola onde iniciou a sua profissão, um bairro, maioritariamente
indígena, encastelado entre dois bairros, maioritariamente, de residentes
brancos. Na circunstância os bairros, Madame Berman e Popular, este último
junto do Cemitério Novo na Estrada de Catete.
Eu continuava o meu trabalho na
Câmara Municipal de Luanda na dependência directa do Engenheiro Chefe da
Repartição e do Chefe de Secção, um velho funcionário à beira da aposentação.
Pessoas extraordinárias com quem aprendi muito da profissão mas, sobretudo, da
vida.
Em Janeiro de mil novecentos e
setenta e três o chefe de secção que já tinha informado que queria vir de
licença graciosa à Metrópole nesse ano, numa reunião informou as chefias de que
teria de reagendar essa licença para mil novecentos e setenta e quatro já que
tinha que casar uma filha no ano de setenta e três.
Eu, que tinha feito planos para vir
de Graciosa em setenta e quatro levantei a questão da impossibilidade de virmos
os dois, chefe de secção e chefe de trabalhos principal no mesmo ano e
ausentarmo-nos do serviço seis meses ao mesmo tempo. É evidente que as chefias
superiores sabiam que eu já que não gozava a licença graciosa há seis anos
teria a preferência para gozar essa licença. Mas rapidamente chegámos a um
consenso estipulando que viria eu em setenta e três e o chefe de secção em
setenta e quatro. Uma troca simples e do agrado de todos. E assim se programou
as respectivas licenças graciosas.
A minha mulher seguia com a
gravidez acompanhada por um obstetra que também exercia funções no Hospital
Universitário de Luanda. Sim, porque, entretanto, já tinha sido criada a
Universidade em Angola e em Luanda, mais concretamente, construindo-se também
um novo Hospital para apoiar a Faculdade de Medicina.
A nossa criança, segundo o médico,
nasceria nos fins de Maio ou, no máximo, nos primeiros dias de Junho. Assim
marcámos viagens para 30 de Junho com o aval do médico para a criança viajar.
Comprámos um carro novo para ser
entregue em Lisboa no dia 1 de Julho de 1973. Dizia-se que se adquiria um carro
em trânsito. Comprámos um carro que estava na moda, na altura, um Ford Capri
1600 GT de cor amarela. Naquele ano os carros mais vendidos foram precisamente
o Ford Capri e o BMW.
No dia 14 de Junho a minha mulher
foi internada no Hospital Universitário por que, na opinião do médico, a
criança já devia ter nascido e podia estar em sofrimento. Consequentemente era
necessário provocar-se o parto. Nunca se pensou em cesariana. Felizmente, no
dia 15 de Junho, pelas 12 horas nasceu a nossa filha Raquel. Uma alegria imensa
partilhada por todos e em grande júbilo pela nossa filha Lena que queria uma
mana e não um mano.
Tudo correu bem e os nossos planos
de viajar para a Metrópole para mostrar a filha aos avós maternos e às tias.
Chegámos a Lisboa pelas oito horas
da manhã do dia 1 de Julho. Fomos recebidos no aeroporto pelos nossos
familiares e alojámo-nos em casa da nossa cunhada Alice e o nosso cunhado
Honorato.
Estes nossos cunhados andavam
destroçados porque lhes tinha falecido uma filha com dois anos e meio por morte
súbita que nunca ninguém entendeu. A chegada da nossa bebé foi um bálsamo para
a minha cunhada que a encolava a todo o momento.
No dia seguinte dirigi-me ao stand representante da Ford no Campo de
Santa Ana em Lisboa e, qual a minha desilusão, houve um atraso no fornecimento
do carro vindo da Alemanha, de Colónia, mais concretamente. O atraso era de um
mês. Apresentaram as mais variadas desculpas mas não me resolveram o problema
da falta do carro para as minhas deslocações o que me deixou em fúria. O carro
estava pago há mais de quatro meses e, consequentemente, só me restou reclamar
mas, como é habitual em Portugal, a culpa morre sempre solteira.
Tive que me deslocar para a Beira
Baixa de comboio com a família. As férias não começavam bem mas esperávamos que
se compusessem.
No dia 30 de Julho lá voltámos a
Lisboa para levantar o nosso carro. Era lindo e chamava à atenção de toda a
gente. Era do tipo desportivo e muito vistoso.
Fizemos um périplo pelo País desde
Viana do Castelo até ao Algarve e ficámos a conhecer este Portugal
desconhecido, pelo menos, para nós.
Descansámos alguns dias e
fizemo-nos à estrada para a Europa. Visitámos a Espanha, a França, o
Luxemburgo, Andorra fazendo o regresso no dia dos anos da minha mulher, 21 de
Agosto, uma viagem longa de Madrid a Lisboa, mas ainda a tempo de comemorarmos
o aniversário em família em casa dos meus cunhados onde tinha ficado a nossa
Raquel que, por ser recém-nascida não a poderíamos sujeitar a viagens tão
longas.
Foram umas férias de sonho e, em
Janeiro, a minha mulher recebe uma carta da directora da sua escola a dizer que
havia lá uma vaga mas que teria que a ocupar até 15 de Janeiro.
Muito rapidamente tratámos das
passagens aéreas para a minha mulher e as minhas filhas e para um primo meu, o
Pina, que estava no ano de ser chamado para a tropa para ver se conseguíamos
que fosse incorporado pelo contingente de Angola e, assim, garantir que cumpria
o serviço militar num local onde tinha família e não ia parar à Guiné ou a
Moçambique. Embarcaram no dia 14 de Janeiro de 1974 pela meia-noite. Pelo que
me contaram foi uma viagem turbulenta com condições atmosféricas adversas desde
o início. Só a meio da viagem o temporal desapareceu e a viagem foi tranquila.
Entretanto eu tive que ir de navio
para poder levar o carro comigo. Esse procedimento era norma das Companhias de
navegação que davam prioridade às viaturas dos passageiros, caso contrário a
viagem do carro era muito mais demorada e só quando havia vagas de carga é que
despachavam as viaturas. Isto podia implicar uma demora de dois ou três meses e
eu não queria o meu carro debaixo da ponte Salazar (assim se designava ainda em
Janeiro de 1974) a apanhar o salitre das águas do Tejo e as intempéries de um
Inverno em pleno.
Assim embarquei no dia 28 de
Janeiro de 1974 no navio Príncipe Perfeito. Um navio novo e com todas as
condições para uma viagem de sonho. Viajava em primeira classe, num camarote de
duas camas que eu partilhei com um agente da PIDE-DGS, um rapaz mais ou menos
da minha idade com quem gostei de viajar.
Apresentámo-nos no dia do embarque
e ele disse-me ser funcionário público, como eu era, aliás.
Com o decorrer da viagem o jovem,
muito simpaticamente, disse-me que era da PIDE e a sua função no navio era
prevenir ataques semelhantes àqueles que tiveram lugar no navio Santa Maria em
1961, pelo Henrique Galvão e mais uma certa esquerdalha, como o ladrão do Banco
da Figueira da Foz, o Camilo Mortágua e outros de igual quilate.
Foi uma viajem maravilhosa fazendo
paragem no Funchal e em São Tomé. Dez dias depois desembarcávamos em Luanda.
Em Luanda retomámos as nossas
funções profissionais e a nossa vida familiar que era de verdadeira felicidade.
Trabalhávamos toda a semana mas ao
fim-de-semana juntávamo-nos para nos divertirmos e petiscarmos.
Nesse tempo tínhamos como
Presidente da Câmara um Dr. Cunha (não lembro do restante nome) que era um
homem de visão estratégica e que começou o seu mandato com o objectivo de
acabar com a construção clandestina, que era um flagelo, e dotar todos os
bairros habitados por indígenas de fontanários. Paralelamente dotar a cidade de
uma rede de saneamento básico mais adequada ao tipo de cidade em que Luanda se
transformara, considerada a mais bela e mais civilizada cidade africana.
A propósito, o Dr. Cunha, como
muitos daqueles que, como eu, nasceram ou viveram em Angola desde crianças,
queriam que a Província tivesse mais autonomia política e financeira, dizia:
“Angola é uma vaca que tem os cornos cá e as tetas em Portugal continental. É
preciso alterar este estado de coisas. É preciso virar os cornos para a
metrópole e as tetas para Angola, para podermos desenvolver este país como deve
ser”. Eu, e muitos como eu concordávamos, plenamente com isso. Isto quer dizer
que o Presidente do Conselho Professor Doutor Marcelo Caetano que tinha
visitado Angola em 1971 e que fora recebido pelas populações, todas as raças e
etnias, em ombros não tivera ou não lhe deixaram ter a coragem de avançar com a
autonomia que toda a gente aspirava, com vista a uma independência pacífica e
devidamente controlada.
Foi pena. Em 25 de Abril de 1974 um
grupo de capitães que estavam a sentir, cada vez com mais força, que a sua
carreira na progredia como eles queriam porque, devido à guerra, em poucos anos
chegavam a capitão mas depois a progressão era muito mais lenta já que os
quadros de pessoal estavam preenchidos por generais novos, organizaram-se para
derrubar o governo da república e assim resolverem dois problemas da sua vida.
Primeiro acabavam com a guerra do ultramar e deixavam de correr riscos e
segundo depunham os generais que existiam e tomavam o seu lugar. Foi um golpe
de estado egoísta onde não se ponderou nada a não ser os próprios interesses.
Acrescentou-se a isto a influência do Partido Comunista Português, na
clandestinidade desde 1926, com uma influência política soviética poderosa
junto de uns ignorantes e incapazes jovens nada politizados.
Foi a desgraça total. Poucos dias
depois do 25 de Abril começaram os boatos de ataques e maus tratos a brancos e
mestiços. A propaganda do MPLA, até aí moribundo, começou a dar resultados. A
população branca começou a reviver o período de 1961 em que o terror foi uma
constante.
A anarquia nos quartéis começou a
desenvolver-se e a perder-se a disciplina. Em Maio, os militares pretos fizeram
uma marcha até ao quartel[CJ1] [CJ2] -general
para entregar as armas. As manifestações de rua sob a batuta do PCP em conluio
com o MPLA – os outros dois movimentos independentistas, FNLA e UNITA – nunca
foram tomados em conta, eram quase diárias.
Ao fim de um dia de trabalho, antes
de ir para casa, disse ao motorista que me levasse a ver os trabalhos de
implantação de fontanários no bairro da Boavista e, quando lá cheguei, dei com
uma drama que nunca mais me saiu da memória. Os trabalhadores tinham implantado
o fontanários e estavam a abrir o poço roto para escoamento das águas sobrantes.
Quando o poço já tinha uns quatro metros de profundidade um dos trabalhadores,
sem saber, deu com a picareta num tubo de abastecimento de água que rebentou e começou
a verter em grandes quantidades água para dentro do poço. O terreno era arenoso
e desabou uma boa parte em cima de dois trabalhadores. Desgraçadamente para um,
o desabamento causou-lhe o quebrar de uma perna impossibilitando-o de fugir de
soterramento naquele mar de lama e água. Quando lá cheguei detectei uma azáfama
para tentar salvar o homem mas uma azáfama descoordenada e ineficaz. Saltei do
jeep peguei numa picareta e cinco ou dez metros a montante do local do acidente
rebentou com o tubo condutor de água para o fontanário passando a água a
derramar-se num local que não ia para o poço onde o trabalhador estão quase
soterrado. Tina água pelo pescoço.
Mandei um trabalhador ir até ao
comerciante mais próximo pedir para ligar para os bombeiros municipais para
mandarem socorro e, entretanto, comecei a orientar os trabalhos de remoção lenta
de terras para que se retirasse o homem da situação aflitiva que tinha passado.
A morte tinha parecido eminente e sem retorno.
Retirámos o homem do lamaçal quando
os bombeiros chegaram e detectaram que o homem, para além de uma perna partida
tinha uma enorme ansiedade, angústia e medo, apesar de ser um homenzarrão
fisicamente.
Aquele dia, quando cheguei a casa
já era de noite e a família estava em pânico.
Nos dias que se seguiram fui ver o
trabalhador ao Hospital e dar-lhe todo o apoio necessário a ele e à família.
Quando o homem teve alta e começou a trabalhar dei-lhe um lugar onde não
fizesse esforços. Pu-lo num sanitário público apenas de guarda onde não fazia
esforços nenhuns.
Poucos dias depois o homem veio
dizer-me que se ia embora para a sua terra, o Lucala porque ali os colegas
ameaçavam-nos dizendo que era amigos dos brancos já que eu lhe tinha
proporcionado um trabalho diferente daquele que fizera até ao acidente.
Tentei demovê-lo da decisão
solicitando-lhe informações do local onde as ameaças partiam. Eram feitas no
musseque onde residia.
No estaleiro da Câmara havia
imensas casas de madeira que foram demolidas por serem clandestinas e se
destinarem a tapar a verdadeira construção de pedra e cal, como se costuma
dizer, que era feita por dentro. Eram casas enormes e com boas condições de
habitabilidade. Ofereci uma dessas casas ao trabalhador ameaçado e ele aceitou
perdendo aquela ideia de deixar o emprego e ir para trabalhos muito mais
esforçados na terra dele.
Em mais ou menos quinze dias voltou
o homem com a ideia de ir para a terra dele dizendo, mais uma vez, que ele era
amigo dos brancos e por isso eu o protegia. Não era nada disso eu apenas o
estava a ressarcir no mínimo, do sofrimento que o homem tinha passado em
serviço. Mas isto demonstra bem o clima de insurreição e intimidação que se
estava a criar.
As coisas agravaram-se quando em
Junho estava eu no meu trabalho sossegado e chega uma colega minha a pedir-me
que autorizasse o meu motorista a levá-la até à escola do filho porque, segundo
ela, havia grupos de terroristas a atacar as escolas. É evidente que autorizei
com a ressalva de me levar a mim primeiro a minha casa para apanhar o meu carro
e ir em socorro da minha mulher e da minha filha mais velha que estavam na
escola.
Eram para aí três horas da tarde
quando cheguei à escola e estava tudo num silêncio sepulcral. Apareceu lá do
fundo um contínuo preto a dizer-me que as senhoras professoras e os alunos
tinham todos saído e ido para as respectivas casas mas que não houvera nada, apenas
o boato.
Mais tranquilo desloquei-me a casa
para falar com a minha mulher e saber pormenores. Apenas o susto pelo que
poderia ter acontecido mas que não aconteceu. O que não me deixou descansado a
partir daí. O boato poderia tornar-se realidade, de um dia para o outro.
Dias depois disse à minha mulher:
está a chegar a altura de concorreres para o próximo ano lectivo e deves
fazê-lo só para o centro da cidade. Mesmo que fiques sem lugar não há problema
mas não quero viver em constante sobressalto.
No dia um de Agosto, um nosso
conterrâneo, furriel miliciano que passava todos os dias livres em nossa casa
veio à metrópole de férias e eu pedi-lhe que trouxesse papel selado assinado e
os demais documentos necessários para que o meu cunhado Honorato, em Lisboa,
pudesse ir ao Ministério da Educação para se informar da possibilidade de a
minha mulher concorrer a um lugar de professora na metrópole. Caso o pudesse
fazer elaborasse os requerimentos necessários para tal.
Entretanto todo o quotidiano se ia
transformando em sobressalto constante. Desde uma tentativa de assalto ao
quartel-general até roubos, espancamentos e muito mais.
Era tudo tão preocupante que, mais
por instinto do que por razão, fui a um armeiro comprar uma caçadeira e um
revólver de cano curto para a minha mulher. Consegui com dificuldade pois os
armeiros estavam a ficar sem armas. Legalizei tudo mas nunca dei um tiro com
nenhuma delas.
No dia 14 de Agosto vou ao apartado
que tinha na estação dos correios na rua Brito Godins antes de ir para o trabalho
e dou de caras com um aviso de registo de uma carta vinda de Lisboa. Esperei
que abrisse a repartição e levantei a carta que era do meu cunhado Honorato.
Dizia-me que ele não podia concorrer pela minha mulher mas que o concurso para
o ano lectivo 1974/75 decorria até ao dia 15 de Agosto e, como era feriado
nacional, o prazo passava para o dia seguinte, dia dezasseis.
Já não fui trabalhar e regressei a
casa intimando a minha mulher a decidir se queria continuar na angústia e no
medo do que poderia acontecer ou se queria ir para Portugal e tentar arranjar
emprego concorrendo a um lugar na Metrópole.
Foi angustiante. Dilacerante mesmo,
posso dizer. Momentos inesquecíveis de dor. Era preciso decidir no momento, sem
tempo para pensar. Até porque, se decidisse vir para a Metrópole era preciso
mover influências e socorrer-me de amizades para arranjar um voo para aquele
mesmo dia à meia-noite e, na altura, todos os voos estavam esgotados.
Quando decidiu sim desloquei-me a
uma agência de viagens de um grande amigo meu para que me arranjasse a tão
almejada passagem para a minha mulher e para as minhas filhas. Os amigos são
para as ocasiões e eu jamais pagarei o favor daquele meu amigo que se
esfarrapou para arranjar um lugar para a minha mulher e só para ela arranjando
depois lugares para a minha mãe e para as minhas filhas no dia 26 de Agosto.
Foi um sufoco. Uma angústia e uma
choradeira. A minha mulher não queria vir sem as filhas. Como eu a compreendi e
melhor a compreendo hoje, mas teve que ser.
Assim aconteceu e, no dia 15 de
Agosto de manhã a minha mulher estava em Lisboa indo no dia 16 ao Ministério
para fazer o concurso. Foi informada que o concurso decorria nas Direcções
Escolares Distritais e que, por despacho ministerial, principalmente por causa
das mulheres dos militares, que provasse ter vindo das Províncias Ultramarinas
poderia concorrer até ao início do ano lectivo que era no dia sete de Outubro.
A minha pensou que, valia a pena
concorrer ao Distrito de Castelo Branco o nosso distrito de origem pelo menos
ficava mais próximo da família.
Dava-se assim início à debandada de brancos,
pretos e mulatos não enfeudados ao MPLA e ao PCP para Portugal, Brasil e outros
países onde se podia viver em paz e democraticamente.
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