A chegada a Luanda foi um
reencontro com a família e os amigos. A saudade já era bastante pois ainda não
tiveram tempo de desfrutar de companhia uns dos outros havia mais de quatro
anos, apenas com o interregno da passagem fugaz por Luanda quando
desembarcaram.
Nessa noite foi encontrada a
solução para a residência da família no Bairro Operário mesmo junto do grande
largo que era, simultaneamente, campo de futebol, espaço de festas, bailes e
passagem para a cidade dos ricos ou, pelo menos, para a cidade da classe
média-alta.
Todos residiam muito próximo, num
mesmo quarteirão, paredes meias com o Bairro do Cruzeiro, o bairro residencial
do Estado destinado aos funcionários públicos.
Era uma quinta-feira e, no dia
seguinte, o Manuel pôs-se em campo à procura de emprego. Não era nada fácil
para quem da leitura e da escrita pouco sabia e, do trabalho, apenas era muito
conhecedor das tarefas do campo.
O sábado, naquela terra e naquele
tempo, já só era ocupado com o trabalho da parte da manhã pelo que os amigos
que trabalhavam toda a semana tiveram tempo e disponibilidade para animar o
Manuel dando-lhe esperança de que haveria de aparecer um emprego que permitiria
começar uma nova vida.
Desde logo uma boa notícia o Rainho
poderia começar a trabalhar na segunda-feira seguinte numa loja – espécie de
tasca que vendia tudo o que era básico para a vida e ponto de paragem
obrigatória para os indígenas que se deslocavam do musseque para o trabalho –
onde compravam os artigos necessários para o almoço.
Em regra, cem gramas de fuba,
outras tantas de amendoim (jinguba), açúcar, tabaco, óleo de palma, peixe seco
e bebiam um copo de candingolo (uma espécie de cachaça que era feita da
destilação da cana do açúcar), repetindo-se o ritual quando regressavam a casa
e por ali passavam por volta das sete horas da noite.
Aproveitou-se o domingo para ir com
o amigo e os pais para falarem com o proprietário da loja e acertar os
pormenores da remuneração, horário e demais regras consideradas indispensáveis
para iniciar funções.
Ficou decidido que começaria na
segunda-feira e que o ordenado seria de cento e cinquenta escudos por mês,
comidos e bebidos, com a obrigação de estar na loja às cinco horas da manhã
para preparar tudo para receber os clientes que começavam a chegar por voltas
das seis. Que a saída seria às nove horas da noite e que o trabalho era
ininterrupto sem direito a folgas. Soube-se ali que nesse dia o Rainho
começaria a trabalhar todos os dias da semana, incluindo domingos, dezasseis
horas por dia, enquanto estivesse naquele emprego.
Logo foi aceite o emprego, apesar
de ser quase um trabalho escravo, principalmente porque estamos a falar de um
adolescente com doze anos de idade. É que os cento e cinquenta escudos davam
para pagar a renda da casa e, enquanto o pai não arranjasse emprego, era uma
ajuda preciosa.
Passou-se o fim-de-semana em amena
cavaqueira e o Rainho a brincar com os filhos dos amigos do pai, uma rapariga
mais velha três anos e dois rapazes mais novos, respectivamente, 5 e 3 anos.
Dia doze de Maio lá iniciou funções
como trabalhador remunerado o nosso Rainho. Sem consciência do verdadeiro
esforço necessário para desempenhar a função mas sabedor que a vida é feita de
trabalho e o que é preciso é ganhar dinheiro com honestidade, lá se levantou
pelas quatro e meia da manhã, tomou um duche de água fria, que naquela latitude
até é um factor de refrescamento e recomposição de força e atravessar o largo
principal do bairro para entrar na loja que era a única casa com as luzes
acesas àquela hora da madrugada.
A maioria dos trabalhadores
iniciava o seu trabalho pelas oito da manhã mas como as deslocações da maioria
das pessoas para o trabalho era feito a pé, saía-se de casa, em regra, pelas
sete da manhã para que se cumprisse a pontualidade. Dizer-se ainda que o sol
nascia pelas seis da manhã e escondia-se para lá do horizonte, pelas seis horas
da tarde. A proximidade do Equador fazia com que os dias e as noites tivessem a
mesma duração todos os dias do ano.
Foi um trabalho duro. Muitas horas
seguidas de trabalho. Muita tristeza. Muita aprendizagem. As defesas
necessárias para enfrentar a dureza da vida. O que há de bom no ser humano e o
que há de mesquinho, ambição, cretinice, malvadez no mundo do trabalho.
O patrão era um homem relativamente
novo, talvez próximo dos trinta anos. De uma ambição inexcedível. Querendo
enriquecer a todo o transe. Casado, com um filho ainda bebé, cuja esposa era o
seu oposto. A bondade personificada. Uma jovem de vinte e poucos anos, bonita,
que punha todo o seu carinho e a sua atenção no seu filho. Aos olhos de hoje
não seria mais que uma escrava sexual. Mas já lá vamos para não perdermos o fio
à meada.
António, de seu nome, tinha-se
estabelecido há pouco mais de dois anos depois de ter sido empregado de balcão
de uma média mercearia do centro da cidade de Luanda. Sem escrúpulos nenhuns,
uma das primeiras coisas que ensinou ao Rainho era a forma de viciar a balança
para poder subtrair nas pesagens e, assim, aumentar os seus lucros. Dizia
constantemente que para ser um bom empregado devia roubar, sim roubar era o
termo utilizado, o cliente sem que este desse conta. Com manha, com subtileza e
demonstrava isso mesmo, na prática fazendo os gestos que tal proporcionavam.
É bom de ver que a um adolescente
que foi criado num ambiente de rectidão e honradez esta atitude não agradava.
Para além disso não tinha a sagacidade para fazer tais malabarismos sem que
fosse descoberto pelos indígenas que estavam sempre desconfiados, porque eram
vítimas sistemáticas deste tipo de expedientes.
Não raro o Rainho era descoberto
nas artimanhas que o patrão lhe obrigava a fazer e a reclamação vinha sempre
com alguma berraria do cliente que se queixava ao António dizendo: “patrão, o
menino está a roubar na mesa”. Nunca o nosso garoto percebeu esta expressão mas
à qual se seguia uma descompostura com ar de azedume que muito entristecia o
rapaz. Mas, mal o cliente virava as costas depois de ter sido ressarcido de
alguns gramas, sempre menos dos que lhe tinham sido retirados, lá vinha a
palmada nas costas com um sorriso malévolo e o incentivo. É assim mesmo rapaz,
continua, não te preocupes, o que eu disse à frente do preto é para ele ir
satisfeito não é por estar zangado contigo, pelo contrário.
À tristeza o Rainho adicionava uma
raiva que, se pudesse, na hora se despedia e ia embora para outro trabalho
menos penoso e mais gratificante.
O descontentamento acentuava-se de
dia para dia. Acrescia o facto de a Dona Lurdes, esposa do António, à hora das
refeições que ela própria confeccionava e que comiam os dois, pois o marido
comia primeiro para ir para o balcão já que a loja não permitia nenhum tempo de
pausa, vir com conselhos sábios, prudentes, muito fruto da sua experiência e da
sua infelicidade. “Rainho não queiras isto para a tua vida. Olha para mim, vê
como passo aqui a minha vida como se fosse prisioneira sem nunca sair de casa,
tratar do meu filho e do meu marido e sem uma atenção dele e com muitas
traições. Que arrependida que eu estou. Se soubesse o que sei hoje nunca me
tinha casado com este homem que, no namoro, julguei ser um homem bom. Não
queiras esta vida arranja outro emprego para, quando tiveres idade, poderes
casar e dar à tua mulher a vida que eu não tenho”.
A cabeça do rapaz andava à roda com
este tipo de aviso. Não compreendia o que era viver assim em casal. Já lhe
tinha parecido haver falta de respeito do Paiva para com a esposa, na fazenda
onde passara os primeiros dois meses e meio de Angola, agora com estes
conselhos que eram ditos em segredo e era pedido segredo a confusão era total.
Não estava habituado a ver tal. Os
seus pais respeitavam-se mutuamente, conversavam, faziam planos de vida,
estimavam-se, viviam um ambiente de amor sem reclamações e agora via isto num
casal bastante mais novo que os seus pais. Era muito estranho. Era muito
confuso.
O desgosto do Rainho ia-se
acentuando. Complementarmente começou a aperceber-se que entravam no armazém,
através da loja, umas miúdas pretas talvez mais novas que ele próprio pois mal
começavam a despontar as maminhas acompanhadas por homens que julgava serem
seus pais, uma de cada vez e o António entregava aos acompanhantes das miúdas
uma garrafa de candingolo – aguardente de cana-de-açúcar – e outros produtos
pelos quais não levava dinheiro, o que não deixava de ser estranho, para um
homem tão agarrado ao dinheiro e tão ambicioso.
O tempo ia passando e, aos poucos,
o Rainho foi-se apercebendo de que a Dona Lurdes tinha razão quando falava de
traições. O António era um sabujo que aliciava os pais das pretitas, pouco mais
do que crianças, para as desflorar. As miúdas saiam do armazém tristes, mas com
alguns panos, bonecas ou brinquedos que, nem isso lhes trazia alegria ao rosto.
Os indivíduos sem escrúpulos tinham
o péssimo hábito de coleccionar cabaços – desfloramentos de meninas – uma
linguagem que, com a idade veio a compreender, mas que na altura lhe causavam
estupefacção e depois asco, nojo. O António acumulava todos os defeitos que
enojavam e enraiveciam o miúdo.
As conversas com a Dona Lurdes
contribuíam cada vez com mais intensidade para que o Rainho se sentisse
desgostoso com tal emprego mas, o pai continuava desempregado e isso
inviabilizava qualquer pretensão de mudança de trabalho.
O suplício durou cinco meses.
Entretanto o pai empregou-se e, desde logo, o nosso rapazinho, que nestes meses
amadurecera muito rapidamente, pediu ao pai para o deixar procurar outro
emprego. Mais, que pedisse ao seu padrinho João António que trabalhava,
porventura, na maior empresa multinacional que havia em Luanda na época, para
lhe arranjar emprego o que aconteceu muito rapidamente.
Desta feita, quando chegou o fim do
mês de Setembro, o Rainho despediu-se a chorar da Dona Lurdes, porque gostava
muito dela e, ao mesmo tempo, tinha muita pena mas, muito feliz por deixar de
olhar para a cara do António, pessoa que detestava com todas as forças do seu
ser.
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