O Manuel, como já se referiu, nunca
foi menino. Desde muito pequeno teve que guardar vaca e burro, lavrar, sachar,
cavar, e andar na frente da junta de vacas do avô materno – aquele que teve que
doar uma pequena fortuna para que a mãe não fosse, durante muito tempo, mãe
solteira e que depois o genro delapidou em pouco mais de 15 anos – fora, por
necessidade própria, também, já que partira uma perna num dos carretos de
granito que era usual fazer-se para a construção de habitações, quem pediu à
filha que lhe mandasse para sua casa o filho mais velho, rapaz, para o ajudar
na lavoura das terras que precisava de amanhar.
Desta feita fora bom para o avô e
fora muito melhor para o neto pois, apesar do duro trabalho para um rapaz de 14
anos, ao mesmo tempo proporcionou-lhe aprendizagens muito úteis no trabalho do
campo, para além de ter uma boa alimentação e vestuário e ainda alguns trocos
que a avó lhe dava aos domingos para poder conviver, de igual para igual, com
os rapazes do seu tempo.
Nesta actividade o Manuel ganhou,
em dois anos de trabalho, a experiência e o saber que nunca tinha adquirido
junto dos pais. O avô tinha a paciência e o carinho de com ele conversar e lhe
dar os conselhos úteis para uma vida simples e despretensiosa mas com o
essencial.
Aprendeu a fazer tudo o que era
necessário para desenvolver uma actividade agrícola por conta própria. Fez-se
homem, por assim dizer. Começou a pensar como tal e a gizar o que queria para o
seu futuro. Tornou-se forte física e mentalmente. Deixou de temer o que quer
que fosse. Ainda teve tempo para, com um deficiente físico, seu familiar
afastado, aprender as primeiras letras. Poucas, já se vê, pela falta de tempo e
pela ausência de pedagogia por parte do mestre. Mas, mesmo assim, veio a
demonstrar-se ser uma preciosa ajuda.
Com 18 anos voltou à casa paterna,
cada vez mais desregrada e mais pobre. O pai cada vez prolixo nas suas vaidades
de menino bem-nascido passou a ser beberrão e quezilento para com a família.
Homem feito – na época amadurecia-se muito depressa – trabalhava diariamente
para quem lhe dava trabalho e apresentava aos pais a jorna semanal sem receber
qualquer gesto de boa vontade ou de recompensa.
Para satisfazer as suas
necessidades mais básicas, como frequentar um baile onde era preciso
comparticipar para pagar ao tocador ou outras de igual teor – sim porque vícios
nunca tivera. Nunca fumou nem bebeu – ajustava (contratar por ajuste) o cavar
de vinhas ou outros trabalhos sazonais que fazia de madrugada para ter uns
cobres que lhe permitissem viver de igual para igual com os outros rapazes do
seu tempo.
Um ano depois pediu a um amigo de
seu pai – contrabandista encartado, como se costuma dizer – para o deixar ir
com ele até à Espanha para adquirir produtos que poderiam render alguma coisa
deste lado.
Assim começou por comprar uns
cortes de pana – assim se designava a bombazina de hoje – que servia para a
confecção de calças para homem, uns tecidos de seda para as blusas das
mulheres, uns quilos de prego e outros artigos, baratos no país vizinho e muito
caros cá, levando para troca alguns pães de centeio, muito apreciados lá, em
época de fome larvar, por causa da Guerra Civil.
O risco era grande. Tanto os
carabineiros, polícia civil espanhola, como os guardas-fiscais portugueses
patrulhavam a fronteira palmo a palmo, vinte e quatro horas por dia o que
implicava comportamento ardiloso pelos contrabandistas. O trabalho penoso. A
distância longa, cerca de 30 quilómetros para cada lado, percorridos a pé por
serranias, ribeiros e floresta. Todo este esforço era feito desde a madrugada
de sábado para domingo até à madrugada de domingo para segunda pois a jorna de
trabalho no campo para ganhar o pão para casa dos pais não se compadecia com
outros horários. A venda dos produtos era depois feita pelas irmãs ou pela
namorada para, assim, amealhar uns tostões que lhe permitissem um reduzido
pé-de-meia para quando chegasse a altura de casar.
Assim foi até ser incorporado no
exército, na arma de cavalaria. Porque os lucros eram reduzidos o capital pouco
aumentava. Mas os pobres sempre se contentaram com pouco.
Um ano de tropa com dificuldades
várias, poucas oportunidades de ir à terra matar saudades da família e da
namorada. Um pré (soldo) miserável que não dava sequer para pagar transportes
que também não havia. Vida difícil mas de intensa aprendizagem. Valores éticos
morais. Disciplina, rigor.
Episódios variados de entreajuda
mas também de desilusão. Exigências da casa paterna, sofrimento materno, pai
austero e rigoroso. Pouca conversa, menos diálogo, enfim, saturação.
Grande e verdadeiro amigo o irmão,
com menos dois anos que ele, o José. Outro sacrificado que teve quer ser o
apoio da casa enquanto ele esteve no serviço militar. Companheiro de trabalhos
e empreitadas após ter terminado dever patriótico.
Cumprido o serviço militar
obrigatório era tempo de se fazer à vida. Casar, ter filhos, constituir uma
família. Era assim com todos. Era o costume. A cultura. A tradição.
E, seguindo a máxima, de que quem
casa quer casa, procurou uma casa de renda muito económica para poder realizar
o seu sonho de casar.
Tal aconteceu no dia trinta de
Setembro de mil novecentos e quarenta e dois.
Como prenda de casamento recebeu
vinte escudos em dinheiro e algumas mantas “farrapeiras” para se agasalhar. Da
casa dos pais trouxe apenas o fato do casamento e umas botas mandadas fazer ao
sapateiro local. Trouxe também exemplos do que não se devia fazer como chefe de
família.
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