Parece estranho, ou talvez não, que em certas alturas e, principalmente em épocas pré-eleitorais, apareça aqui e além, em diversos discursos ou na comunicação social, a referência a figuras, personagens, ou metáforas Camonianas, proferidas por qualquer néscio que, da Obra ou do poeta conhecem, apenas, os lugares comuns, as frases feitas, as personagens conotadas, com o intuito de confundirem os menos atentos, os mais ingénuos ou, quiçá, ofenderem os adversários políticos concorrentes.
O nosso Épico, com a visão que vai para além do tempo, já previa isso. Outrora, como hoje, a política esteve sempre infiltrada de oportunistas e inescrupulosos, que uma mente luminosa e perspicaz, como era a de Camões, vislumbrava à distância, conhecia-lhes as manhas e as ambições. Por isso, quando se dirigia aos seus contemporâneos dizia:
"podereis roubar-me tudo:
as ideias, as palavras, as imagens,
e também as metáforas, os temas, os motivos,
os símbolos, e a primazia
nas dores sofridas de uma língua nova,
no entendimento de outros, na coragem
de combater, julgar, de penetrar
em recessos de amor para que sois castrados.
E podereis depois não me citar,
suprimir-me, ignorar-me, aclamar até
outros ladrões mais felizes.
Não importa nada: que o castigo
será terrível...(Jorge de Sena).
Quando escreveu a epopeia, conhecia Camões, por experiência própria, a grave crise moral, social e política que afectava profundamente o corpo e alma da Nação Portuguesa e, como tal, não quis fechar os olhos à desoladora realidade que em cada dia lhe mostrava a pátria "metida / no gosto da cobiça e na rudeza / duma austera, apagada e vil tristeza". A evidência e os sinais de decadência de um presente cada vez mais atreito às baixesas de comportamento cívico da sociedade eram coisas que o indignavam. Camões tenta, com o seu canto épico das glórias portuguesas, dar uma lição de verdade cívica para os seus compatriotas de todos os tempos, tentando assim superar a tristeza e a inveja colectiva da época e, porque não dizê-lo, dos nossos dias.
A Obra de Camões, tida como paradigma e até como padrão e estilo cimeiro da história da produção literária portuguesa, não se compadece assim, com remoques e tiradas de sendeiro, de um qualquer idiota útil. A Obra Camoniana deve ser entendida como alerta para realidades que, por serem complexas, apenas estão ao alcance dos mais disponíveis, dos mais esclarecidos, dos mais prudentes, dos mais patrióticos e não está, obviamente, ao alcance dos que, por serem limitados de inteligência, lhes escapa a sageza do Génio. Os Lusíadas, como bem refere Oliveira Martins, são uma obra catalisadora da alma portuguesa, principalmente em época de crise. Ora, sendo esta uma época de crise profunda seria bom nos (con)centrarmos nalguns ensinamentos da História, para evitarmos erros do passado longínquo e/ou recente.
A sabedoria popular eximiamente representada pelos anciãos, assente em muitos dos aforismos prenhes do senso comum esclarecido, mostra-nos que é grande atrevimento "o sapateiro tocar rabecão", que não se deve dar "o passo maior que a perna". Que não é prudente "meter foice em seara alheia". Que a metacognição é privilégio de alguns, poucos, e falar só por falar é comparável ao zurrar dos burros, sem ofensa para os ditos.
Assim sendo, importa reflectir e conceder que ser ignorante pode não ser pecado, se for fruto de dotes débeis de intelecto ou de impossibilidades diversas de cognição. Ser atrevido já será sacrilégio pois tal atitude provém e está associada à arrogância, à intolerância, à má educação, ao despudor. Um pouco de humildade, de recolhimento, de ponderação, de prudência, de tento na língua seria atitude avisada, para se deixar de ser ignorante e, mais ainda, atrevido.