Viver a vida

Peço desculpa aos meus seguidores pela extensão do texto mas queria partilhar convosco esta coisa que escrevi em 2006. Espero que gostem, apesar de longa:


Era uma vez… Qualquer “estoria” que se preze, por princípio, deve começar: “era uma vez”.... Uns dirão que é normal, corriqueiro, antiquado. Outros, pensarão, apenas, que é uma forma prosaica e pouco imaginativa. Não nos ativemos a possíveis adjectivações. Apeteceu-nos e, pronto. Sabem? Às vezes, aos velhos também apetecem coisas. Que se há-de fazer? Cá vai a “estória”: Nestes, como noutros tempos, numa qualquer floresta, situada numa qualquer localidade deste planeta, gravemente enferma da globalização, obrigatoriamente consumista, exigentemente conhecedora, cerebral mas não emocional, invejosa q.b., exaustivamente competitiva, assumidamente egoísta, os animais que a habitavam já não sabiam que fazer. Andavam atarantados procurando compreender o alcance das medidas, sistematicamente anunciadas, enfaticamente repetidas e supostamente objectivas, com vista a um amanhã risonho, fraterno, plural, solidário, onde todos tivessem o direito de nascer, crescer e viver cercados de amor, ternura, tranquilidade, segurança e com um mínimo de condições que satisfizessem as necessidades básicas, secundárias e até de prestigio, às quais, um sábio lá do sítio gostava de se referir, como direitos de todos e de cada um, sem excepção e/ou exclusão. Enfim, de levar uma vida, da concepção à morte, sem sobressaltos e angústias e terminar os dias com a dignidade devida a qualquer ser vivente, sem que no final se visse “depositado” numa qualquer caverna destinada a coisas imprestáveis. Apesar das medidas, dos choques, dos sacrifícios de hoje, rotulados como receita para o gozo do amanhã, os animais andavam inquietos: desagradados uns; emproados outros; uns sem um buraco onde se abrigar e sem um trapo para se cobrir, outros rodeados de espaços abertos e cobertos, com aquecimento central, lagos artificiais, campos de diversão e outras coisas mais. Enquanto alguns se viam postergados para as margens do seu habitat transformadas em guetos, mesmo que todos os dias labutassem duramente, do romper do Sol até a noite já ir adiantada. Desde tenra idade até à adultez ou mesmo velhice, num esforço constante e persistente para ser cada vez mais útil, mais capaz, mais competente, mais contribuinte líquido para toda a sociedade, já os outros, por influência dos “padrinhos”, das “cunhas”, dos “magnatas” e dos “nomes família”, mal saíam da adolescência, com uma aprendizagem simplista, sem experiência de vida e de sobrevivência, saltavam para a ribalta da tal globalização como administradores de qualquer coisa, grandes espaços, muitos números, com direito a luxos e mordomias e desta forma, coisas que deveriam ser de todos eram só de uns poucos. Estes poucos não precisavam de suar para ter os tais espaços cobertos, luxuosamente atapetados e adornados, pagos com cartões das empresas que administravam. Às vezes até recebiam prendas, em vez de honorários, para não pagarem o contributo que era devido à manutenção da floresta. É claro que alguns animais mais reflexivos se questionavam sobre o porquê de tanta disparidade, de tanta injustiça, de tanta desigualdade, de tanta iniquidade e cogitavam sobre a forma de mudar o estado daquela sociedade. Logo pensaram: - e se ouvíssemos os entradotes na idade que de tão viajados já conheciam outros modelos sociais? Se bem o pensaram melhor o fizeram. Pediram aos sábios, conselhos. Estes defenderam teorias, elaboraram leis, apresentaram teses mas os dias e os anos passavam e os resultados quando não se mantinham pioravam. As desigualdades em vez de se esbaterem acentuaram-se. Premiava-se a mediocridade e subalternizava-se a excelência. Enfim, o caos estava instalado e a insatisfação levava constantemente a manifestações quando não, mesmo, a actos de violência, vandalismo, ou coisa pior, racismo, xenofobia, terrorismo ou mesmo fundamentalismo. Porque a necessidade era tanta, num belo dia de Sol resolveram reunir-se, em Assembleia-geral, na vã esperança de comparar competências, capacidades, esforços e verem se podiam mudar o “Status Quo” instalado. Estabeleceram critérios de avaliação para procurarem encontrar quem governasse a floresta de uma forma mais justa e equilibrada. Isto exigia de todos e cada um, uma demonstração inequívoca, quer das capacidades intrínsecas quer das competências adquiridas. Desta feita foi decidido convocar um referendo para que a todos fosse dada a possibilidade de mostrarem as tais capacidades inatas e as ditas competências adquiridas, para que depois de avaliadas se elegesse o bicho melhor preparado para governar o que já era um desgoverno. É claro que apareceram os elefantes, as baleias, as orcas, os tubarões, os rinocerontes e outros mastodontes que demonstraram que a sua força era insuperável e até se atreveram a lançar OPAS (Outras Potencialidades Assumidas e Subsidiárias) uns sobre os outros. Vieram depois os mais ágeis: felinos, gazelas e outros, que de tão velozes, em maratonas eram imbatíveis. Também não deixaram de aparecer as serpentes, venenosas ou inofensivas, mas sempre rastejantes e viscosas. As águias-reais de olhar agudo penetrante e velocidade na caça à presa. Enfim, todo o tipo de espécies que habitava a floresta e que de uma forma ou de outra mostravam ali a sua sageza, destreza, corrida, força, natação voo, nas tais coisas básicas e indispensáveis à vida e à sobrevivência de que nos falava o tal sábio do início da “estória”. Analisados os resultados obtidos em função de todos os parâmetros estabelecidos, ao fim de um escrutínio sem truques nem malabarismos, as projecções à boca das urnas falharam todas, e em toda a linha. Porque se uns apontavam o leão como Rei eleito devido ao seu urro aterrorizador, outros diziam que o leopardo ganharia pela sua astúcia e agilidade e outros ainda apostavam no elefante pela sua força descomunal. Engano puro: o leão sendo forte e inteligente, não conseguia voar. Faltavam-lhe requisitos. O leopardo até subia às árvores mas não nadava e muito menos voava, apesar de ser veloz na corrida. Do elefante nem se fala, excepto na força e resistência todos os restantes parâmetros eram prejudicados. Não haveria ninguém que satisfizesse os quesitos? É claro que havia e daí a surpresa. Quem seria? Foi o Pato Bravo. Sim, o Pato. Apesar de não preencher, eficazmente, nenhum dos quesitos conseguia ser medíocre em todos. Voava mal, mas lá dava os seus pequenos voos. Nadava mal, mas não se afogava no lago. Corria pouco, mas lá ensaiava as suas curtíssimas corridas. Conclusão: foi eleito o Pato como o mais apto e mais condizente às necessidades organizativas da floresta. Não sendo bom em nada, não tendo competências para coisa nenhuma, nem sendo excelente em nenhuma tarefa, fazia da sua mediocridade a diferença pretendida. Nesta floresta afinal, não é preciso ser forte, nem inteligente, nem competente, nem ágil, nem eficaz, nem sequer lutador, basta que se seja medíocre. Esta é a condição básica para se chegar ao poder, desfrutar de benesses, ser alguém na vida. Desta feita, ainda que nos custe, lá teremos que aprender e esforçar-nos por sermos Patos, para que um dia qualquer, não nos confrontemos com, o inevitável empurrão, para as valetas da vida.
Abril de 2006