quarta-feira, 29 de janeiro de 2020

Estórias de vida 11


Enquanto isso o Rainho mudara de novo para a Robert Hudson e ingressara num Movimento Católico já que a Acção Católica, também naquele tempo se desenvolveu e se incrementou, muito fruto do Concílio Vaticano II.
O rapaz ingressou na JOC (Juventude Operária Católica), verdadeira e autêntica escola de vida, de solidariedade, de amizade e de consciencialização pessoal, política e social.
Crescia, aprendia, estabelecia redes de amizades, conhecia pessoas diferentes do seu mundo até aí.
Apaixonou-se de tal forma pelo Movimento que, apesar do muito trabalho diário constituído por trabalho e estudo nocturno, não deixava de, nos domingos, ir às seis horas da manhã à primeira missa da sua paróquia para depois poder prosseguir com as tarefas inerentes à militância jocista, como era a venda do Jornal Operário, a visita aos doentes do Hospital, as reuniões sistemáticas e sistematizadas através do Método introduzido pelo Cardijn “RVO – Revisão de Vida Operária” onde se avaliava a semana passada e se projectava a semana seguinte.
Tudo isto era feito sem prejuízo de uma vida social intensa onde o Cinema tinha um papel importante. A leitura dos clássicos era também uma tarefa obrigatória mas muito atractiva. As récitas e as festas na sede da JOC onde se congregavam jovens e as respectivas famílias já que o respeito existente atraía sem dificuldades pais e mães de jovens, principalmente das raparigas, que ali se sentiam protegidas e se podiam divertir sem correr riscos.
No trabalho as coisas também corriam bem. O Rainho viu, sem que o previsse, o seu trabalho reconhecido e compensado.
De um dia para o outro tudo mudou.
O Engenheiro Inglês, Senhor Pelikington, responsável pelo comércio de máquinas, sua instalação e manutenção, homem rigoroso, muito sabedor, mas também muito humano, entendeu que o melhor auxiliar que podia ter nessa tarefa era o nosso rapaz, agora com dezassete anos de idade e com um capital de experiência acima da média. Desta feita fez-lhe a proposta nestes termos:
“Olha Rainho eu preciso de um jovem que me ajude na implementação e desenvolvimento de um projecto que tenho na empresa que se traduz, sinteticamente, na reparação das bombas injectoras e injectores dos veículos a gasóleo que, como tu sabes, vendemos muitos nos últimos meses e anos, e já comprei uma máquina com tecnologia de ponta para afinar essas peças de precisão, que são o coração dos motores a diesel. Preciso que me ajudes nesse trabalho que é de grande responsabilidade e rigor. Para tal já mandei fazer as obras necessárias à instalação de um laboratório que ficará todo envidraçado e revestido a azulejo. Naquele laboratório só entrarás tu e eu. É vedado o acesso a qualquer outra pessoa incluindo o chefe da oficina. Só respondes perante mim com o teu desempenho. As instruções vêm em inglês e, qualquer dúvida na reparação e afinação consultas os manuais que te vou facultar e perguntas-me sempre que tiveres dúvidas. Vais passar a ganhar ao mês e ganharás dois mil escudos”.
Perante esta imensa responsabilidade o Rainho sentiu-se acanhado, intimidado, preocupado com eventuais ciúmes que poderia causar a colegas mais velhos e superiores, mas agradou-lhe sobremaneira o aumento significativo que iria receber e o estatuto que iria ter dentro da empresa ao depender apenas de um dos administradores mais importantes e, por isso mesmo ainda disse: “Senhor engenheiro eu domino mal a língua inglesa que, como o senhor sabe, só comecei a aprender há três anos e com muito poucas aulas por semana e, por isso, tenho receio de não ser capaz de corresponder às expectativas que o senhor engenheiro tem acerca de mim”. O Engenheiro respondeu rapidamente: “com isso não te preocupes. Eu sei do que és capaz e estou aqui sempre para tirar qualquer dúvida que tenhas. Com isso não te preocupes. Para além do mais eu, no início passarei por aqui todos os dias e, quando tu tiveres mais confiança em ti próprio, passarei a vir só quando for preciso. Há mais uma coisa. Estamos a importar do Reino Unido, da Alemanha e da América algumas máquinas para lavandarias, para fábricas de batatas fritas e outras indústrias que eu quero que tu acompanhes a respectiva instalação. Para isso vais escolher uma equipa de três pessoas da tua confiança e vais orientá-los nesse tipo de trabalho com a minha supervisão, ok?”.
O Rainho passou pelos momentos mais empolgantes da sua vida. Aceitou sem rebuço e começou, desde logo, a ler toda a documentação fornecida mesmo antes de o laboratório estar concluído. Deixou de usar fato-macaco e passou a usar calças, camisa e sapatos, facto que, como previra, causou alguma inveja àquelas pessoas cuja índole e carácter são propícios a sentimentos mesquinhos. Nesse pequeno grupo estava incluído o chefe da oficina que nunca gostara muito do Rainho e que com esta promoção se sentiu desautorizado e mais dois colegas, um mecânico e outro bate-chapas que nunca morreram de amores por si. Mas, em abono da verdade deve dizer-se que a maioria dos colegas e principalmente o sub-chefe da oficina, o Senhor Marques, grande amigo do Rainho e, porventura, a pessoa que informou o senhor engenheiro Pelikington, das capacidades deste, ficaram felizes e orgulhosos de verem o amigo a singrar de forma tão fulgurante na empresa que, de dia para dia, também crescia a olhos vistos.
A Empresa sempre foi uma referência da década de 20, do século passado, mas sofreu grande incremento e espalhou-se por toda a Angola no final da década de 50 e princípio da década de 60.
O Rainho sentiu, com aquele incentivo, que deveria ser mais estudioso, mais aplicado e muito mais responsável do que fora até aí apesar de ter sido sempre um trabalhador exemplar.
Deixou de ter tempo para alguns dos passatempos de que usufruía mas, por outro lado, viu crescer em todos os seus amigos, mesmo os não colegas de trabalho, a sua admiração o que fez com que cada vez mais se aplicasse nas diferentes aprendizagens que a vida lhe estava a proporcionar e a amadurecer para a vida ainda de forma mais rápida. Sendo um jovem de apenas dezassete anos era, todavia, um adulto que passou a ser solicitado para dar a sua opinião sob muitos aspectos da vida.
Desde logo o seu pai que o consultava sobre a vida familiar. A dar-lhe toda a liberdade entregando-lhe uma chave de casa para poder entrar e sair sem ter de pedir autorização, apenas com a recomendação de ter cuidado com os perigos da cidade que começava a ser grande demais.
Também os tios e, sobretudo, os seus companheiros de trabalho e da JOC que, cada vez mais, o solicitavam como confidente de todo o tipo de preocupações.
 Decorria o ano de 1958 e, como se está a contar a história de vida do Rainho, bem se pode dizer que todas as décadas seguintes foram marcantes.
Não nos apressemos. Já lá vamos.
O ano de cinquenta e oito foi um ano agitado sob o ponto de vista político. Houve eleições presidenciais, coisa rara desde a aprovação da Constituição de 1933 e do poder absoluto do homem do leme, que era o Presidente do Conselho, Professor Doutor Oliveira Salazar. Com ele presidiu o General Carmona até à morte deste. Também o General Craveiro Lopes que, segundo alguns rumores, nunca se dispôs a ser seu pau mandado pelo que, depois de terminar o mandato foi substituído pelo Almirante Américo Tomaz.
Neste ano, na sequência de alguma movimentação política com o MUD e o MDPCDE, partidos políticos organizados mas sem representação popular e com o PCP na clandestinidade, lá se deram passos para que houvesse eleições, ditas, livres podendo candidatar-se mais do que um candidato.
Desde logo o Candidato do Regime, Américo Tomaz apoiado pela União Nacional, partido único de então e o demais poder instituído.
Apoiado pelos movimentos políticos mais liberais também apareceu o General Humberto Delgado que, num arroubo de valentia, a uma pergunta de um jornalista sobre o que faria ao Dr. Salazar se fosse eleito, lhe saiu a frase assassina que lhe ditou a derrota naquele momento, apesar da onda de apoio popular que vinha sentindo em todo o país. Eis a frase: “obviamente, demito-o”.
Ainda houve um outro candidato, na circunstância um civil, de seu nome Arlindo Vicente, muito conotado com o comunismo internacional que, por não ter sentido o apoio que julgava poder vir a obter do povo, desistiu à boca da urna. Foi eleito, como era previsto, num regime sem liberdades, o candidato do Regime, o Almirante.
A Campanha eleitoral foi interessante sob todos os pontos de vista e até proporcionou, aos mais atentos, algumas lições. Desde logo com as palavras-chave dos candidatos. Os da oposição ao regime não tinham acesso à rádio e aos jornais, já o candidato do regime tinha até direito a cartazes informativos. Este candidato não dizia ao que vinha mas apontava as consequências se algum dos outros fosse eleito. Então sobressaiam as seguintes frases: “quereis perder Angola votai no Arlindo Vicente”; “quereis a desordem e a anarquia, votai no Humberto Delgado”; “quereis continuar da senda da paz, progresso e bem-estar, votai no Almirante Américo Tomaz”. Curiosidades.
O Rainho ia tomando a consciência política e de ordem social, quer pelos factos narrados, quer pelos ensinamentos aprendidos na JOC. Concluindo, sem rebuço, de que só poderia aceder ao elevador social e melhorar a sua condição de vida se, cumulativamente, com a aprendizagem profissional aumentasse os conhecimentos académicos e respectiva certificação.
Enveredou então pelo ensino liceal por se coadunar melhor com o seu interesse. Mas o Liceu ainda não ministrava ensino nocturno, pelo que teve de se socorrer do ensino privado pagando mensalidades algo pesadas para fazer as aprendizagens necessárias para se poder propor a exame e obter resultados, como é bom de ver. Sim, naquele tempo, ou se mostrava o que se sabia ou ficava-se pelo caminho.
Mesmo assim valeu a pena porque num só ano conseguiu fazer aprendizagens que lhe permitiram candidatar-se, como aluno externo e maior, a fazer exame do 2º ano, no Liceu Salvador Correia de Sá e Benevides, em Luanda tendo ficado aprovado.
A consciência de que seria necessário ir mais longe levou-o a frequentar a secção de Letras do 5º ano. Naquele tempo o ensino Liceal era composto pelo primeiro, segundo e terceiro ciclos, sendo que o primeiro correspondia ao 2º ano, o segundo ao 5º e o terceiro ao 7º ano. No segundo ciclo havia a possibilidade de fazer exame a Letras e a Ciências de forma conjunta ou separada e no terceiro ciclo era disciplina a disciplina sendo que se podia fazer todas ou uma de uma vez.
Mais um ano de estudo e a candidatura à secção de Letras do segundo ciclo e também aqui obteve aprovação. Tal feito mereceu o elogio de colegas e amigos e até houve alguns amigos que decidiram enveredar pelo mesmo caminho.
Entretanto chegámos ao ano de 1961 e, logo no início, mais precisamente em 4 de Fevereiro eclode uma pequena revolta na Casa da Reclusão – assim chamada a penitenciária que albergava militares castigados por infracção às leis militares e alguns civis punidos por crimes comuns – da qual resultaram uma dezena de mortos entre os militares da ordem pública e os revoltosos. A história veio a demonstrar que se iniciou, naquele dia, aquela que viria a ser a designada a guerra colonial, que durou cerca de catorze anos e provocou alguns milhares de mortos de um lado e do outro da contenda.
Aquilo que pareceu uma derrocada para quem vivia em Angola, principalmente, depois dos ataques terroristas do Úcua, onde chacinaram homens, mulheres e crianças, brancos, negros e mulatos, à catanada, com violações e castrações hediondas e com manifestações canibalescas indescritíveis veio, no imediato, a revelar-se como o arranque do desenvolvimento daquele território, há cerca de quinhentos anos, em perfeita estagnação.
Uma evidência era o facto de, haver em toda a Angola, uma estrada alcatroada com, apenas, sessenta quilómetros de distância, fora das cidades. A Estrada Luanda Catete. Depois de 1961 e até 1968 todas as capitais de distrito foram ligadas pelo asfalto incluindo nestas estradas a célebre serra da gleba a mais acidentada de toda a Angola e, segundo se dizia, cada quilómetro custou mil contos.
Passou-se de um território onde era extremamente difícil arranjar emprego a emprego pleno. À construção de escolas e hospitais para todos, para além do apetrechamento dos portos marítimos e do desenvolvimento de aeroportos internacionais ou aeródromos locais com pistas alcatroadas e iluminadas.
As infraestruturas de saneamento básico em todas as cidades e vilas com especial relevo para Luanda onde fizeram adutores para águas pluviais que obviaram às derrocadas tendo sido a última, de grandes dimensões, nos últimos dias de Março e primeiros dias de Abril de 1963.
Assim, apesar da guerra, com a chegada maciça de militares da Metrópole, Angola desenvolvia-se a olhos vistos.
Havendo focos de instabilidade a Norte do país, com mortes e outros malefícios de qualquer guerra, nem por isso se vivia com medos, particularmente, nos centros urbanos, nomeadamente em Luanda.
Pode até dizer-se que era época áurea de progresso de bem-estar de vida feliz para todos, brancos e negros. Porque havia a política de não discriminação houve até uma maior e mais acentuada integração de negros no Estado, através dos diferentes tipos de Administração, escolaridade obrigatória para todos e escolas espalhadas por todo o lado incluindo os musseques.
Até se criou a Universidade com a maioria dos cursos disponíveis, incluindo medicina, o que permitiu à classe média por os seus filhos a estudar, de forma muito natural, prosseguindo estudos, porque já não havia a necessidade de os enviar para a Metrópole com os consequentes custos económicos e emocionais.

sábado, 25 de janeiro de 2020

Estórias de vida 10


Capítulo 10

O Manuel ao fim de um ano de trabalho ganhou muitos conhecimentos quer no domínio do trabalho, quer no domínio do saber, porque foi fazer o exame da quarta classe e foi aprovado sem qualquer benesse ou condescendência e, ainda, no domínio das relações pessoais. Conheceu muitas empresas e nessas empresas muitas pessoas, o que lhe permitiu arranjar novo emprego, muito melhor remunerado e muito mais estável e sem necessidade de calcorrear as ruas da cidade.
Assim arranjou emprego na, então, fábrica da borracha que, como o nome indica, foi a precursora da fábrica de pneus. No caso concreto preparava a borracha para a recauchutagem de pneus de todas as medidas e feitios.
O Manuel foi para uma secção pioneira dentro da fábrica que estava e esteve sempre em permanente ampliação e diversificação de produtos, que era a secção dos plásticos. Estamos a falar de pentes, botões, e até sapatos tudo produtos feitos através de injecção de plástico liquefeito que era introduzido em moldes.
O dono da fábrica era um empresário de muito valor. Empreendedor, bom conhecedor do ramo, antigo operário e que dava valor ao trabalhador. O Manuel encontrou no patrão, o senhor Macambira, mais do que um patrão, um amigo e, talvez por isso, ele tivesse sido mais do que um trabalhador, um homem preocupado com o trabalho sistemática e continuamente, a ponto de sair da cama às duas ou três da manhã para ir à fábrica ver se o turno estava a funcionar bem e se não havia preguiça ou desperdício.
A Fábrica que começara como manufacturação da borracha em poucos anos tornou-se uma das maiores empresas de Luanda que chegou a empregar mais de mil trabalhadores.
Diversificou a produção passando a tecer tecidos para lençóis, toalhas, pano para sapatilhas de ténis, aprimorou os plásticos onde passou a produzir tudo o que era possível pensar, mantendo os pentes, o calçado mas indo para as embalagens de comida ou coisa maior, embalagens grandes para os mais diversos produtos, desde a fruta, aos galináceos. Passou a ser um potentado naquele domínio e uma referência em toda a cidade e, com o seu desenvolvimento, também os seus trabalhadores melhoraram substancialmente a vida.
O Manuel, no fim do ano de 1962, já era empregado naquela fábrica há cinco anos, foi chamado ao patrão para este lhe dizer: “Manuel não queres construir uma casa”? Ao que este lhe respondeu: - querer queria mas não tenho dinheiro para tal. E o Macambira lhe disse: - vai procurar um terreno no Bairro Popular como estão a fazer muitos dos teus colegas que eu te empresto o dinheiro para a construíres que é o que estão todos a fazer, ou julgas que eles têm mais dinheiro do que tu? O Manuel agradeceu a oferta do patrão mas respondeu que não sabia conviver com dívidas e por isso não ia arriscar a construir a casa. Então o Macambira, homem justo, pegou num cheque onde escrevera cem mil escudos (cem contos), na altura já havia Bancos Privados em Luanda, nomeadamente o Banco Pinto & Sotto Mayor, e entregou-o ao Manuel dizendo que, já que era tão honesto que não queria dívidas merecia, pelo menos, uma bonificação pela dedicação e trabalho que dava àquela empresa.
Como já se disse, a vida dá tantas voltas que, um trabalhador rural que nada mais sabia do que tratar do amanho das terras, nas mais diversas tarefas, ao fim de pouco mais do que meia dúzia de anos se transformou num trabalhador altamente qualificado e grande amigo do grande empresário que era seu patrão. Era tão amigo que ele e toda a sua família fora convidado para o casamento dos filhos do patrão. Também ali trabalhou toda a vida até se vir embora para Portugal após a descolonização dita, exemplar, mas que melhor se diria desastrosa para portugueses e angolanos.
O Manuel quando melhorou as suas condições de vida profissional e económica achou que deveria dar aos seus irmãos que tinham ficado na Metrópole a mesma oportunidade que o seu irmão Zé lhe dera a ele e, por isso, começou a chamar para junto de si o seu irmão mais novo, o António que foi para Angola, Luanda em 1958, começou a trabalhar num escritório de uma boa empresa e que, continuando a estudar à noite, chegou a licenciar-se em Ciência Política e Administrativa pela Universidade de Lisboa.
Seguiram-se as suas irmãs mais novas e seu cunhado Joaquim pouco depois de ter estabilizado o estado da colónia depois do Golpe de 4 de Fevereiro de 1961.
Angola até esta data tinha sido ostracizada pelo regime político nacional e servia apenas para garantir à Metrópole a receita em matérias-primas que não possuía no seu território continental e insular. Porém, o golpe militar dos nacionalistas angolanos fez uma reviravolta na política e, com o envio de milhares de soldados para o combate, também se aboliu a carta de chamada e facilitou a entrada no país e este desenvolveu de forma exponencial.
Foram as obras públicas. A construção civil. A diversificação da agricultura com a cultura de frutas e criação de gado. Toda a mão-de-obra era escassa e o emprego era mais dos que os pretendentes. Também os ordenados subiram e as condições de vida de uma vasta classe média melhoraram substancialmente o que dinamizou o comércio interno e externo, bem como as importações e exportações.
A este desenvolvimento também não é alheio o incremento do transporte aéreo, até ai quase inexistente e à sua democratização, o que facilitou imenso o intercâmbio entre os portugueses de cá e de lá.
Deixou-se de ir para Angola como quem ia para o fim do mundo, para quem as famílias se despediam até ao dia do juízo, como se a separação fosse igual à morte e a perspectiva de visitar Portugal tornou-se bastante comum.
A família, agora alargada, pois viviam na cidade de Luanda seis dos oito irmãos do Manuel, com os respectivos filhos, mulheres, maridos e até sobrinhos, faziam uma grande família que todos os fins-de-semana se reuniam para confraternizar. Pode dizer-se sem margem para qualquer tipo de dúvida que eram felizes. E essa felicidade durou mais de dez anos.
Construíram as suas próprias casas e à medida que economizavam dinheiro investiam-no no seu bem-estar e no desenvolvimento daquele território que consideravam seu e onde queriam ser sepultados. Não foi assim mas devido a vicissitudes que um dia a História Científica há-de clarificar.

domingo, 19 de janeiro de 2020

Estórias de vida 9


No primeiro dia de Outubro de 1956 entrou na oficina da Robert Hudson & Sons, empresa de origem inglesa, cujos quadros superiores eram todos ingleses, na sua maioria engenheiros e economistas, e quadros intermédios portugueses que, em conjunto, geriam uma empresa que, bem se pode dizer, tinha tudo e fazia de tudo.
Era o único importador e representante da marca Ford. Marca americana de prestígio internacional, com tecnologia de ponta à época, principalmente nos automóveis que produzia. Na altura ainda não havia fábricas da marca na Europa e, muito menos na China.
Eram carros de luxo e de potência. Geralmente com motores de oito cilindros em forma de V, a gasolina e que debitava uma potência superior aos duzentos cavalos. Naquele ano até foi importado, com destino a um fazendeiro do Norte de Angola, um modelo descapotável que tinha uma capota metálica que recolhida na bagageira e aparafusada electricamente por acção de motores eléctricos accionados pelo condutor. À vontade do utilizador podia ser um automóvel normal ou descapotável o que dava muito jeito no clima existente. Pois tão depressa estava um Sol abrasador como, de repente, vinha uma carga de água de encharcar os ossos.
Para além dos automóveis também importava e distribuía tractores, Camionetas, mais ou menos de grande porte, mas igualmente leite em pó “Nido”, azeite português em latas de cinco litros, ou detergente “Omo”, e outros produtos necessários à vida e ao bem-estar, como frigoríficos e outros electrodomésticos.
Uma grande empresa na verdadeira acepção da palavra. Cada secção tinha o seu encarregado que geria os trabalhadores e contactava com os clientes, já que toda a prestação de serviços era personalizada. Toda a gente conhecia toda a gente.
Acrescente-se que, na época, Luanda não tinha recenseamento obrigatório e, segundo se dizia, não teria mais do que trinta mil brancos e pouco mais do que duzentos mil negros e mestiços. Havia também, alguns milhares de emigrantes, Cabo Verdianos que, em regra, viviam nos musseques juntamente com os negros e não se distinguiam muito destes.
O trabalho nesta empresa começava, para todo o pessoal, independente da cor, etnia ou nacionalidade, às oito horas da manhã. Terminava ao meio-dia para o almoço, retomava-se às duas da tarde e encerrava às seis da tarde, todos os dias da semana, excepto ao Sábado, que encerrava à uma hora da tarde e no Domingo que não se trabalhava.
O Ordenado era diário e pago à semana. O Rainho passou a ganhar dez escudos por dia e, como é bom de ver, não ganhava os domingos. Tinha que comer em casa dos pais mas, mesmo assim, era muito melhor do que na loja do Bairro Operário.
Havia mais alguns rapazes com idades aproximadas que, tal como o Rainho, pretendiam aprender a arte de mecânico. Arte considerada de algum prestígio no meio operário, porque se ganhava razoavelmente e se tinham contactos com as classes mais endinheiradas.
O relacionamento entre os aprendizes era fantástico o que originou grande amizades que perduraram no tempo por muitas décadas depois, mesmo quando houve separação por motivos profissionais, de serviço militar obrigatório, e outros.
Com os mestres, o chefe de oficina, os empregados de balcão da secção de peças e até de alguns engenheiros que passavam bastantes vezes pela oficina, eram de respeito, consideração, obediência mas de abertura ao diálogo.
Bom ambiente de trabalho. O vencimento é que não correspondia aos anseios da maior parte dos trabalhadores. Eram frequentes as queixas dos mais velhos que sentiam que não estavam a ser pagos de acordo com as suas competências. Talvez por isso, houvesse mudanças para outras empresas do ramo, que disputavam os bons artistas.
Apesar de tudo houve uma espécie de núcleo duro que se aguentou durante algumas décadas.
O Rainho esforçava-se por aprender e, talvez por isso, passou a ser disputado como ajudante dos mecânicos mais prestigiados e com mais poder dentro da oficina. Durante um ano passou por três mestres, sempre obedecendo às ordens do chefe da oficina que era para si, como se fosse o dono daquilo tudo.
Mas, ao fim de um ano, surgiu-lhe uma oportunidade para ir ganhar vinte e cinco escudos diários, com farda própria fornecida pela empresa, assistência médica e outras benesses.
A diferença monetária era de grande monta e, numa família que estava no princípio de uma nova vida, isso fazia toda a diferença. Desta feita, em franco diálogo com os superiores hierárquicos, o Rainho deixou a Robert Hudson e foi trabalhar para a Fábrica de Tabacos Sital, uma filial da Fábrica de Tabacos Ultramarina, uma grande empresa portuguesa, que recebia, tratava e embalava, nas mais diversas formas, os cigarros que eram distribuídos por toda a Angola. Em maço de vinte cigarros cada, ou em “roda” que continha trezentos cigarros e era para serem vendidos avulso.
Foi em finais de 1957, que o Rainho entrou para a fábrica Sital e que também foi introduzida uma nova máquina de aplicação de filtro no cigarro e de uma nova forma maço, em rectângulo, com papel mais duro.
O nosso rapaz já estava com treze anos. Na fábrica trabalhavam mais cerca de vinte jovens, entre eles duas raparigas brancas, mais ou menos da sua idade ou pouco mais velhas, e havia apenas, um encarregado geral branco, já com cabelos brancos e mais dois empregados brancos, homens. Os restantes eram negros, homens, mulheres, rapazes e raparigas.
Muito bom ambiente de trabalho. Todos se tornaram rapidamente amigos. Passavam os intervalos juntos. Os momentos de espera pela hora de entrada a brincarem e faziam o percurso para as respectivas casas de residência juntos, ainda que alguns tivessem que dar uma volta maior do que o caminho em linha recta. Era o caso de dois ou três que morávamos para a alta da cidade e que dávamos uma volta, ao fim da jornada, para deixar em casa, as duas meninas brancas que eram irmãs.
A mais velha, de seu nome Rita, já meia mulher, de seios fartos e hirtos, já se pintava e arranjava antes de sair da fábrica e era o derriço do António, colega do Rainho. A Maria com menos dois anos, mais ou menos da idade do Rainho, que começava a despontar como mulher, com pequenos seios que estavam a despontar e se adivinhavam por debaixo do tecido fino do vestido. Ambas muito bonitas, de cabelo acastanhado, lábios carnudos, olhos castanhos e sorriso fácil e sempre pronto. Boas miúdas que, de alguma forma, foram o despertar para a sexualidade do nosso jovem. Não que tivesse algo mais do que amizade por alguma delas, mas cuja companhia lhe agradava e compensava a solidão de filho único.
O rapaz levava uma vida divertida mas de muito trabalho e algumas preocupações. Quando chegava a casa, à noite, via a mãe preocupada com o pai a preparar-lhe uma bacia de água morna com bastante sal para amenizar as dores e sarar as bolhas que tinha nos pés de tanto calcorrear aquelas ruas da cidade que, não sendo muito grande, sempre tinha locais a distarem, entre si, cinco ou mais quilómetros.
O pai, o Manuel, conhecia mal a cidade e não sabia onde ficavam as empresas onde trabalhavam os sócios do sindicato dos trabalhadores do comércio. Sim, o emprego que arranjara fora o de cobrador das quotas que os trabalhadores tinham de pagar para terem assistência médica.
Na época tudo era pago em dinheiro contado e, muitas vezes, o Manuel seguindo a ordem alfabética dos talões das quotas, saía de uma ponta da cidade para outra quando depois descobria que, afinal, havia ainda outra empresa próxima do local onde tinha estado e que, por desconhecimento, o obrigava a lá voltar. Para cúmulo ganhava apenas mil e quinhentos escudos (um conto e quinhentos) e tinha que comer à sua custa o que contrastava com o ordenado que tinha na Fazenda do Zenza do Itombe.
A dureza da vida era mais que muita para todos mas havia a esperança de dias melhores e toda a família se entregava com todas as suas forças ao trabalho de transformar os momentos difíceis e tempos mais favoráveis.
Desde logo o pai do Rainho começou a estudar à noite, com um professor primário que lhe dava explicações, para fazer o exame da quarta classe, não só para ter o diploma que era muito importante para melhorar as suas condições de empregabilidade mas, sobretudo, para aprender mais e poder efectuar as contas e a escrita que o seu trabalho exigia.
Nos primeiros meses era o Rainho que, noite dentro lhe fazia as contas enquanto o pai contava o dinheiro recebido e as quotas cobradas para tudo dar certo sem qualquer tipo de erro. Era pouco dinheiro mas eram muitíssimas parcelas. Apesar das dificuldades o tesoureiro do sindicato e o presidente sempre elogiaram o trabalho do Manuel, pois sabiam o esforço que fazia para que tudo estivesse correcto, apesar da insuficiência dos seus conhecimentos académicos.
Mas para quem quer trabalho e se esforça para cumprir o seu dever não há barreiras intransponíveis. Há desafios que é preciso superar e se superam.
No ano lectivo de 1956/1957 abriu, pela primeira vez, um curso nocturno na Escola Comercial que, na altura, funcionava no edifício da Associação Comercial de Luanda, na Vila Clotilde, bairro próximo da casa da família que situava na avenida dos combatentes da grande guerra.
Este, desafiado por amigos, que já tinha alguns naquela altura, matriculou-se no primeiro ano do curso comercial para o frequentar à noite e, assim, melhorar as suas habilitações académicas e as suas condições de progressão na vida profissional. Foi uma porta que se abriu a muitos jovens que não tiverem a possibilidade de estudar para além da quarta classe do ensino primário.
Até parecia ser fácil conciliar as oito horas de trabalho diário com mais quatro horas de estudo em sala de aula mas, de facto, não era.
O curso era frequentado por adultos, já casados e com filhos que queriam progredir na carreira, e por uma boa dezena de jovens, a maioria mais velhos do que o Rainho que viam naquele curso a possibilidade de virem a ser guarda-livros, hoje técnicos oficiais de contas.
Apesar do Rainho andar muito satisfeito com a vida, mais por inconsciência do que por facilidades, essa satisfação não resultaria em bom aproveitamento escolar.
Apesar do rapaz ser inteligente, segundo dizia toda a gente e, principalmente os professores, não dedicava horas suficientes ao estudo para poder obter melhores resultados.
Havia uma disciplina que se chamava Caligrafia onde se aprendia o cursivo inglês, a letra francesa e outras que necessitavam de treino. Não era difícil de aprender a técnica era difícil de executar, tinha uns aparos próprios que era necessário estar continuamente a molhar no tinteiro e para isto o jovem não tinha muita paciência.
Cumulativamente, em frente ao prédio onde funcionava a Escola Comercial, do outro lado da rua, havia o clube desportivo da Vila Clotilde onde se jogavam matraquilhos, ténis de mesa, cartas e outros jogos de mesa, como damas e xadrez.
É bom de ver que a atracção do Rainho pelos matraquilhos fazia com que os intervalos não chegassem para satisfazer a vontade de jogar e, as consequências foram a reprovação por faltas no fim do ano lectivo.
Esta reprovação foi um desgosto para os pais que nunca estiveram habituados a esses percalços e tinham a ideia de que o filho era um super-herói. Mais que aborrecimento foi a decepção por verem o filho cair do pedestal em que o alcandoraram. O rapaz tinha consciência de que não fizera o mínimo e que o castigo do chumbo era perfeitamente merecido. Serviu de lição, nunca mais na sua vida chumbou.

sexta-feira, 17 de janeiro de 2020

Estórias de vidas 8


A chegada a Luanda foi um reencontro com a família e os amigos. A saudade já era bastante pois ainda não tiveram tempo de desfrutar de companhia uns dos outros havia mais de quatro anos, apenas com o interregno da passagem fugaz por Luanda quando desembarcaram.

Nessa noite foi encontrada a solução para a residência da família no Bairro Operário mesmo junto do grande largo que era, simultaneamente, campo de futebol, espaço de festas, bailes e passagem para a cidade dos ricos ou, pelo menos, para a cidade da classe média-alta.

Todos residiam muito próximo, num mesmo quarteirão, paredes meias com o Bairro do Cruzeiro, o bairro residencial do Estado destinado aos funcionários públicos.

Era uma quinta-feira e, no dia seguinte, o Manuel pôs-se em campo à procura de emprego. Não era nada fácil para quem da leitura e da escrita pouco sabia e, do trabalho, apenas era muito conhecedor das tarefas do campo.

O sábado, naquela terra e naquele tempo, já só era ocupado com o trabalho da parte da manhã pelo que os amigos que trabalhavam toda a semana tiveram tempo e disponibilidade para animar o Manuel dando-lhe esperança de que haveria de aparecer um emprego que permitiria começar uma nova vida.

Desde logo uma boa notícia o Rainho poderia começar a trabalhar na segunda-feira seguinte numa loja – espécie de tasca que vendia tudo o que era básico para a vida e ponto de paragem obrigatória para os indígenas que se deslocavam do musseque para o trabalho – onde compravam os artigos necessários para o almoço.

Em regra, cem gramas de fuba, outras tantas de amendoim (jinguba), açúcar, tabaco, óleo de palma, peixe seco e bebiam um copo de candingolo (uma espécie de cachaça que era feita da destilação da cana do açúcar), repetindo-se o ritual quando regressavam a casa e por ali passavam por volta das sete horas da noite.

Aproveitou-se o domingo para ir com o amigo e os pais para falarem com o proprietário da loja e acertar os pormenores da remuneração, horário e demais regras consideradas indispensáveis para iniciar funções.

Ficou decidido que começaria na segunda-feira e que o ordenado seria de cento e cinquenta escudos por mês, comidos e bebidos, com a obrigação de estar na loja às cinco horas da manhã para preparar tudo para receber os clientes que começavam a chegar por voltas das seis. Que a saída seria às nove horas da noite e que o trabalho era ininterrupto sem direito a folgas. Soube-se ali que nesse dia o Rainho começaria a trabalhar todos os dias da semana, incluindo domingos, dezasseis horas por dia, enquanto estivesse naquele emprego.

Logo foi aceite o emprego, apesar de ser quase um trabalho escravo, principalmente porque estamos a falar de um adolescente com doze anos de idade. É que os cento e cinquenta escudos davam para pagar a renda da casa e, enquanto o pai não arranjasse emprego, era uma ajuda preciosa.

Passou-se o fim-de-semana em amena cavaqueira e o Rainho a brincar com os filhos dos amigos do pai, uma rapariga mais velha três anos e dois rapazes mais novos, respectivamente, 5 e 3 anos.

Dia doze de Maio lá iniciou funções como trabalhador remunerado o nosso Rainho. Sem consciência do verdadeiro esforço necessário para desempenhar a função mas sabedor que a vida é feita de trabalho e o que é preciso é ganhar dinheiro com honestidade, lá se levantou pelas quatro e meia da manhã, tomou um duche de água fria, que naquela latitude até é um factor de refrescamento e recomposição de força e atravessar o largo principal do bairro para entrar na loja que era a única casa com as luzes acesas àquela hora da madrugada.

A maioria dos trabalhadores iniciava o seu trabalho pelas oito da manhã mas como as deslocações da maioria das pessoas para o trabalho era feito a pé, saía-se de casa, em regra, pelas sete da manhã para que se cumprisse a pontualidade. Dizer-se ainda que o sol nascia pelas seis da manhã e escondia-se para lá do horizonte, pelas seis horas da tarde. A proximidade do Equador fazia com que os dias e as noites tivessem a mesma duração todos os dias do ano.

Foi um trabalho duro. Muitas horas seguidas de trabalho. Muita tristeza. Muita aprendizagem. As defesas necessárias para enfrentar a dureza da vida. O que há de bom no ser humano e o que há de mesquinho, ambição, cretinice, malvadez no mundo do trabalho.

O patrão era um homem relativamente novo, talvez próximo dos trinta anos. De uma ambição inexcedível. Querendo enriquecer a todo o transe. Casado, com um filho ainda bebé, cuja esposa era o seu oposto. A bondade personificada. Uma jovem de vinte e poucos anos, bonita, que punha todo o seu carinho e a sua atenção no seu filho. Aos olhos de hoje não seria mais que uma escrava sexual. Mas já lá vamos para não perdermos o fio à meada.

António, de seu nome, tinha-se estabelecido há pouco mais de dois anos depois de ter sido empregado de balcão de uma média mercearia do centro da cidade de Luanda. Sem escrúpulos nenhuns, uma das primeiras coisas que ensinou ao Rainho era a forma de viciar a balança para poder subtrair nas pesagens e, assim, aumentar os seus lucros. Dizia constantemente que para ser um bom empregado devia roubar, sim roubar era o termo utilizado, o cliente sem que este desse conta. Com manha, com subtileza e demonstrava isso mesmo, na prática fazendo os gestos que tal proporcionavam.

É bom de ver que a um adolescente que foi criado num ambiente de rectidão e honradez esta atitude não agradava. Para além disso não tinha a sagacidade para fazer tais malabarismos sem que fosse descoberto pelos indígenas que estavam sempre desconfiados, porque eram vítimas sistemáticas deste tipo de expedientes.

Não raro o Rainho era descoberto nas artimanhas que o patrão lhe obrigava a fazer e a reclamação vinha sempre com alguma berraria do cliente que se queixava ao António dizendo: “patrão, o menino está a roubar na mesa”. Nunca o nosso garoto percebeu esta expressão mas à qual se seguia uma descompostura com ar de azedume que muito entristecia o rapaz. Mas, mal o cliente virava as costas depois de ter sido ressarcido de alguns gramas, sempre menos dos que lhe tinham sido retirados, lá vinha a palmada nas costas com um sorriso malévolo e o incentivo. É assim mesmo rapaz, continua, não te preocupes, o que eu disse à frente do preto é para ele ir satisfeito não é por estar zangado contigo, pelo contrário.

À tristeza o Rainho adicionava uma raiva que, se pudesse, na hora se despedia e ia embora para outro trabalho menos penoso e mais gratificante.

O descontentamento acentuava-se de dia para dia. Acrescia o facto de a Dona Lurdes, esposa do António, à hora das refeições que ela própria confeccionava e que comiam os dois, pois o marido comia primeiro para ir para o balcão já que a loja não permitia nenhum tempo de pausa, vir com conselhos sábios, prudentes, muito fruto da sua experiência e da sua infelicidade. “Rainho não queiras isto para a tua vida. Olha para mim, vê como passo aqui a minha vida como se fosse prisioneira sem nunca sair de casa, tratar do meu filho e do meu marido e sem uma atenção dele e com muitas traições. Que arrependida que eu estou. Se soubesse o que sei hoje nunca me tinha casado com este homem que, no namoro, julguei ser um homem bom. Não queiras esta vida arranja outro emprego para, quando tiveres idade, poderes casar e dar à tua mulher a vida que eu não tenho”.

A cabeça do rapaz andava à roda com este tipo de aviso. Não compreendia o que era viver assim em casal. Já lhe tinha parecido haver falta de respeito do Paiva para com a esposa, na fazenda onde passara os primeiros dois meses e meio de Angola, agora com estes conselhos que eram ditos em segredo e era pedido segredo a confusão era total.

Não estava habituado a ver tal. Os seus pais respeitavam-se mutuamente, conversavam, faziam planos de vida, estimavam-se, viviam um ambiente de amor sem reclamações e agora via isto num casal bastante mais novo que os seus pais. Era muito estranho. Era muito confuso.

O desgosto do Rainho ia-se acentuando. Complementarmente começou a aperceber-se que entravam no armazém, através da loja, umas miúdas pretas talvez mais novas que ele próprio pois mal começavam a despontar as maminhas acompanhadas por homens que julgava serem seus pais, uma de cada vez e o António entregava aos acompanhantes das miúdas uma garrafa de candingolo – aguardente de cana-de-açúcar – e outros produtos pelos quais não levava dinheiro, o que não deixava de ser estranho, para um homem tão agarrado ao dinheiro e tão ambicioso.

O tempo ia passando e, aos poucos, o Rainho foi-se apercebendo de que a Dona Lurdes tinha razão quando falava de traições. O António era um sabujo que aliciava os pais das pretitas, pouco mais do que crianças, para as desflorar. As miúdas saiam do armazém tristes, mas com alguns panos, bonecas ou brinquedos que, nem isso lhes trazia alegria ao rosto.

Os indivíduos sem escrúpulos tinham o péssimo hábito de coleccionar cabaços – desfloramentos de meninas – uma linguagem que, com a idade veio a compreender, mas que na altura lhe causavam estupefacção e depois asco, nojo. O António acumulava todos os defeitos que enojavam e enraiveciam o miúdo.

As conversas com a Dona Lurdes contribuíam cada vez com mais intensidade para que o Rainho se sentisse desgostoso com tal emprego mas, o pai continuava desempregado e isso inviabilizava qualquer pretensão de mudança de trabalho.

O suplício durou cinco meses. Entretanto o pai empregou-se e, desde logo, o nosso rapazinho, que nestes meses amadurecera muito rapidamente, pediu ao pai para o deixar procurar outro emprego. Mais, que pedisse ao seu padrinho João António que trabalhava, porventura, na maior empresa multinacional que havia em Luanda na época, para lhe arranjar emprego o que aconteceu muito rapidamente.

Desta feita, quando chegou o fim do mês de Setembro, o Rainho despediu-se a chorar da Dona Lurdes, porque gostava muito dela e, ao mesmo tempo, tinha muita pena mas, muito feliz por deixar de olhar para a cara do António, pessoa que detestava com todas as forças do seu ser.

quinta-feira, 16 de janeiro de 2020

Estórias de vidas 7


A etapa da vida do Rainho que se inicia em Março de 1956, nesta fazenda do Norte de Angola onde a paisagem era luxuriante, próximo das Quedas do Duque de Bragança, quais cataratas do Niágara, em ponto mais pequeno, mas mesmo assim imponentes, traz consigo vivências que são fruto de aprendizagem que não desperdiça.

O Paiva leva o miúdo para trás do balcão da loja que tudo de básico possuía para a vida naquela região. Ensina-lhe a consultar os preços, dos diferentes artigos, escritos em tabelas dispostas por ordem alfabética num volumoso dossier.

Ensina-lhe a estar atento aos movimentos dos clientes para que não haja tentação de qualquer acto fraudulento.

Diz-lhe que deve ser atencioso sem nunca descurar que o estabelecimento deve gerar lucro e que a boa compra permite melhor venda. Esta máxima serve para todos, desde o indígena que quer vender uns parcos quilos de milho, jinguba, farinha de mandioca, um cacho de bananas ou mesmo uma galinha até ao vendedor branco de peças de tecido ou outros.

Dá-lhe indicações para que, quando não há clientes, se arrumem nas respectivas prateleiras, os produtos trazidos até ao balcão corrido para a escolha dos clientes.

Mostra-lhe a máquina de escrever, uma velha Remington de teclado HCESAR, o designado teclado nacional, porque o internacional fora, desde sempre o AZERT, e diz-lhe que quando tiver tempo pratique para poder escrever cartas ou outros documentos necessários na vida. Não lhe ensinou a escrever. Não lhe ministrou técnicas pôs-lhe à disposição a ferramenta que ele deveria explorar e dominar.

Disse-lhe, igualmente, que por este trabalho não receberia nada pois o pagamento seria a aprendizagem que faria para ser alguém na vida. O pai ganhava para que a família tivesse casa, todos os produtos que a fazenda dava para a alimentação de todos e que tudo o que comprasse na loja seria a preço de custo.

Deve dizer-se que o Paiva era um cinquentão robusto, seco de carnes, com alguns cabelos brancos e algo brusco, ou talvez pragmático, como se diria hoje, na abordagem das relações interpessoais. Sabia mostrar ser duro quer na condução dos negócios, quer na relação com empregados e mesmo com a esposa.

Tinha quatro filhos. Duas raparigas de 14 e 16 anos, que estudavam no colégio das freiras S. José de Cluny, em Luanda que o Rainho nunca conheceu, apenas soube da sua existência por conversas ouvidas. Mais dois filhos pequenos, um de quatro anos e outro de seis, que brincavam por todo o espaço da casa, da loja, do armazém e do pátio, sempre guardados de perto por um rapazola indígena.

A esposa, mulher linda, viçosa, na força da vida, que não teria mais do que a idade da mãe do Zinho, trinta e poucos anos vivia a cirandar pela casa dando ordens ao cozinheiro e demais criados invectivando-os a que tudo estivesse no ponto para não desagradar ao patrão.

Nascida e criada por aquelas bandas, filha de pais pobres, nunca foi à escola e, por isso não sabia ler nem escrever. Fora dada em casamento, à boa moda medieval, ao fazendeiro rico, para assegurar um futuro melhor para si e para os seus, incluindo os pais.

Habituada àquele clima quente, usava vestidos de tecido muito fino, fresco, quase transparente, sem mangas e bastante decotados, deixando antever a raiz de uns seios fartos e rijos, bem como umas pernas bem torneadas e fortes. Tinha cabelos loiros, lábios carnudos e faces de uma tez um pouco pálida mas de pele sedosa. Com aquela figura ninguém diria que já era mãe de quatro filhos. Visto à distância quase se podia afirmar que era o bibelot do velho. Ela, por sua vez, aparentava ter receio dele. Um respeito maior do que se fosse seu pai. Uma submissão que, sendo habitual nos mais velhos, não se adequava à sua idade. Aparentava ter tudo o que o dinheiro compra, menos amor.

O Rainho, na sua timidez, educação e vontade de aprender e agradar, tudo fazia solícito junto de todos, incluindo os empregados indígenas que mais perto de si viviam e trabalhavam, como era o caso do motorista, que o era de facto, mas nem sequer tinha carta de condução, daí só conduzir nos limites da fazenda ou em picadas até próximo da estação. À senhora Rosa, a referida esposa do Paiva, tratava com muita delicadeza pelo que era correspondido com mimos diversos e confidências para as quais não estava preparado nem tinha idade para compreender.

Assim passavam os dias. O pai a trabalhar no cafezal com umas dezenas de homens que capitaneava e aos quais dava indicações de produtividade e destreza no manejo das alfaias e ferramentas agrícolas, no qual era exímio. Talvez por isso o Paiva, apesar da sua rigidez e grau de exigência, tenha demonstrado, desde a primeira hora, muita admiração e respeito, dizendo com muita frequência que o Manuel não era um agricultor de bengala, como ele conhecia muitos, talvez querendo fazer um paralelismo com o sogro que não queria, sequer, ver por perto. Dizia que finalmente encontrara um capataz em quem podia confiar, pelo seu denodo, empenhamento e saber, o que lhe deixaria tempo para todas as outras actividades que gostava de cultivar como os negócios e as caçadas com os seus vizinhos fazendeiros.

A mãe, a Rainha, tratava da casa, fazia as refeições e companhia à senhora que estava mais habituada a falar com os indígenas do que com gente da sua cor. De tal forma que se expressava mais fluentemente em quimbundo do que em português mas que encontrara na mãe do Rainho uma igual com quem podia desabafar e contar as suas mágoas e as suas alegrias.

O Rainho procurava assimilar o mais rapidamente possível tudo o que pudesse aprender naquela nova vida.

Daí a, de repente, começar a receber os elogios do senhor Paiva e mais ensinamentos ao ponto de poder saltar para dentro de uma carrinha velha cujo ronronar do motor era muito periclitante e poder andar cinco metros para a frente e cinco metros para trás sob orientação do motorista.

O mesmo se passava com a senhora que lhe pedira para a ensinar a ler pois, a sua maior ambição, naquele momento, seria poder escrever às filhas, que só via de ano a ano, já que o Paiva, que se deslocava muitas vezes a Luanda, nunca lhe permitira que o acompanhasse, nem que fosse só para visitar as filhas no colégio.

O tempo corria depressa. A casa do fazendeiro era enorme. Do tipo colonial. Um rés-do-chão elevado a pouco mais do que um metro do chão, com enormes salas, quartos e um espaço coberto de uns dois metros de largura a toda a volta. Espaço onde estavam espreguiçadeiras, cadeiras de lona e outras, com pequenas mesas, onde era possível passar um serão recebendo a brisa da noite e ouvir o batuque da sanzala que acomodava os trabalhadores indígenas.

Nestes dias de descoberta e adaptação respirava-se felicidade e a família recém-chegada do puto achava que tinha encontrado o paraíso, contrastando com a vida cheia de dificuldades e carências na aldeia de origem.

Os dias somavam-se num estreitar de amizade sempre com os conselhos do velho Paiva que não se esquecia de lembrar que todos os dias era necessário tomar o comprimido de quinino pela manhã e o de paludrine ao jantar para evitar o paludismo, doença abundante na região e no país.

O Rainho procurava, na sua inexperiência e ignorância, que a D. Rosa aprendesse a ler a escrever com rapidez, pois esse era o seu sonho e era, igualmente, uma aposta do garoto. Em abono da verdade diga-se que a vontade de ambos era tanta que ao fim de um mês a D. Rosa soletrava a maior parte das letras do alfabeto e juntava-se para formar palavras. Era inteligente e tinha muita força de vontade.

Durante o dia e sempre que não havia clientes lá ia ele matraquear na máquina de escrever, qual galinha que procura aqui e ali o grão de milho, primeiro com um dedo, depois com dois, acrescentado mais um à medida que memorizava a posição das letras, e aproveitava para escrever para a família. Em primeiro lugar para o seu Tio Zé que estava em Luanda e o correio ia no combóio que passava três vezes por semana. Depois para os avós paternos, os únicos vivos na altura, pois os maternos há muito tinham passado para a vida eterna.

Nas cartas contava-se a aventura de uma família aldeã, do interior profundo de um Portugal triste, pobre e sem futuro, que vislumbrava horizontes largos num país enorme e de incomensuráveis potencialidades.

Mas a vida, toda a vida e todas as vidas, são feitas de altos e baixos, de corridas de obstáculos que é preciso ultrapassar e que às vezes parecem intransponíveis.

Na circunstância o Rainho apanhou paludismo e esteve às portas da morte, durante oito dias, com doses reforçadas de quinino, sem acompanhamento médico, porque não havia médico, mas com a indicação do velho Paiva e da Senhora Rosa que tinham experiência destas coisas. Ao fim dos oito dias a febre foi cedendo e as melhoras eram visíveis. Foi um susto, que não passou disso mesmo, e até parece que foi um antídoto ou imunizador pois daí em diante, até à idade adulta, nunca mais teve doenças.

Revigorado, retomou as suas tarefas quer na loja, quer na casa do patrão a ensinar a D. Rosa, que a si se afeiçoou e tratava como um filho.

Enquanto isso o seu pai tornava-se, cada dia que passava, mais indispensável ao Senhor Paiva que o levava para todo o lado. Desde conhecer os limites da fazenda que, em alguns sítios tinha alguns dez quilómetros de extensão, por ela atravessando rios, estradas (melhor dizendo, picadas de terra batida), com cafezais, mangais, terreno de cultivo de milho, todo o tipo de frutos tropicais, desde o mamão, papaia, goiaba, mandioca, e também grandes extensões de jinguba (amendoim) que, conjuntamente com a farinha de milho, de mandioca e óleo de palma, constituía a base da alimentação dos indígenas.

A mãe, depois de fazer as tarefas da casa, ensinava a D. Rosa no tricot, na renda e até na feitura de simples peças de vestuário. Pode-se dizer que ali vivia uma família alargada constituída pelas duas famílias de brancos.

Os negros gostaram, sobremaneira, do Manuel, pelo que o respeitavam sem temor ao contrário do que acontecia com o Paiva que era temido mas não amado. A ponto de uma bela noite de sábado terem convidado toda a família do Manuel para uma batucada na sanzala, onde se serviu funje com galinha do campo e óleo de palma, se bebeu candingolo (aguardente de cana de açúcar, também abundante na fazenda) e se ouviram canções em quimbundo e se viram danças tradicionais. A noite demorou até de madrugada porque no dia seguinte era domingo e apenas era preciso ir à missa pelas nove horas da manhã o que, no país e na região era manhã alta, pois o Sol nascia antes das seis.

Dir-se-ia que tudo corria sobre rodas e o futuro afigurava-se risonho. Porém, há sempre um porém, ao fim de dois meses e meio, o Paiva ainda não pagara nada ao João e nem sequer lhe dissera quanto ganhava, apesar dos elogios constantes quer na lavra quer nos serões passados na casa grande. E, nesta circunstância, a Rainha todas as noites instava o marido a pedir contas ao patrão para que não lhe acontecesse o mesmo que ao irmão que ficou sem um ano de trabalho, pelo qual nunca foi ressarcido. O Manuel, coitado, apesar de reconhecer a razão da mulher tinha vergonha de enfrentar o Paiva porque se sentia agradecido por tudo o que ele lhe proporcionara até então.

A insistência era cada vez maior e o tempo cada vez se avolumava mais pelo que, não tendo más nem boas, um dia lá se decidiu pedir contas ao patrão alegando que era para pagar dívidas que deixara na Metrópole. Não sendo verdade era uma mentira que não prejudicava ninguém e servia de perfeito alibi para abordar tão delicado tema.

O Paiva prontificou-se logo a fazer as contas e a elaborar o contrato para que tudo ficasse dentro das normas e que o iria fazer no domingo próximo para não roubar tempo aos afazeres diários.

Tudo acertado esperou-se pelo dia aprazado com alguma ansiedade. O Domingo ia-se escondendo como o Sol que se punha para lá do horizonte e nada de respostas do Paiva. A angústia ia-se, igualmente, apoderando da família, porque nisto estava toda incluída, à medida que as horas se passavam. Depois do jantar, na aldeia de origem dizia-se ceia, voltaram todos para o terraço da casa grande à espera que o Paiva dissesse alguma coisa e, por fim, muito tarde, apareceu com uma pasta e um contrato escrito à máquina com três ou quatro folhas, onde se escalpelizavam os direitos e deveres dos dois contraentes. Entregue o contrato, disse o Paiva ao Manuel:- Aqui tem homem. Leve para casa e com o seu filho leia com atenção e amanhã acertaremos as contas.

Lido com muita atenção o contrato onde sobressaíam palavras como outorgantes, completamente desconhecidas do Manuel e do Rainho mas que intuíram referir-se ao nome do patrão e do Manuel, lá foram decifrando as palavras pouco habituais e concluíram que o contrato era satisfatório para o Manuel e Família. Este ficaria a ganhar dois mil e quinhentos escudos mensais, com direito a habitação e todos os alimentos que a fazenda produzisse e que tudo o que adquirisse na loja da fazenda seria a preço de custo acrescido, apenas, de dez por cento. Mais ou menos o que o Paiva tinha dito no primeiro dia só acrescentando o valor do vencimento mensal.

É evidente que todos ficaram satisfeitos pois o vencimento poderia ser considerado bastante bom para o nível de vida do país e, poder-se-ia dizer que era uma pequena fortuna se se fizesse o paralelismo com os quinze escudos diários que recebia na sua aldeia natal. Naqueles dois meses e meio, feitos os cálculos, ganhara metade do que tinham custado as passagens de navio para toda a família.

Logo ali se iniciaram as contas de cabeça e os planos, contando o tempo necessário para voltar a comprar a casa que vendera na terra natal e até algum prédio que fosse interessante adquirir na terra natal.

Sonhos. Quem não sonha? O pesadelo viria logo no dia a seguir.

Pela manhã, quando se encontraram, o patrão e o Manuel, este disse que concordava com o estipulado no contrato e que tudo estava bem mas o Paiva disse-lhe que queria essas palavras por escrito. O Manuel virou-se para o Rainho e disse-lhe: “filho faz lá uma carta a dizer ao Senhor Paiva que eu concordo com o contrato que me fez e eu, quando vier à noite, assino a carta e entrego-a ao patrão”.

O Rainho passou o dia todo, nas horas livres e também nas outras, só que de forma diferente, a matutar no que iria escrever pois não estava habituado a tais missivas. Mas mesmo assim, lá se desenvencilhou e até a escreveu à máquina, depois de ter rasgado meia dúzia de rascunhos.

Entregue a carta, o Paiva chamou o Manuel ao fim do jantar e, na presença de todos, entregou-lhe dois mil e quinhentos escudos (dois contos e meio como era vulgar designar).

O Manuel num misto de estupefacção e incredulidade olhou para o dinheiro, contou e recontou as notas e, por fim disse: “ Senhor Paiva aqui só estão dois contos e meio e eu já trabalho há mais de dois meses pelo que deveria receber, no mínimo, cinco contos”.

O Paiva, colono sabidão e pouco honesto, esquecendo todos os elogios que fez diariamente ao trabalho competente e esforçado do Manuel, disse: “Mas o primeiro mês é o mês da experiência e esse não é pago”.

Abriu-se um profundo abismo debaixo dos pés do Manuel, da sua mulher e do seu filho. A própria mulher do Paiva ficou com um ar apalermado de surpresa. Só o Paiva se mantinha sereno, tal era o hábito que adquirira de exploração de todos os que dependia dele, incluindo a mulher.

Passado o momento de total e profunda surpresa o Manuel, irado e revoltado, argumentou que tal não podia acontecer pois os elogios recebidos pressupunham não ter havido nenhum tipo de experiência, mas sim, uma mais-valia para a Fazenda pois modificara muita da rotina pouco produtiva e imprimiu uma dinâmica no trabalho e na organização, com total satisfação do pessoal e do patrão, como fora demonstrado, pelo próprio, todos os dias que ali trabalhara.

Porém, o Paiva era muito teimoso e não cedeu aos argumentos, plenamente justificados.

O Manuel tomou-se de brios, pensou muito rapidamente e disse: - Pois se não me quer pagar o mês que diz ser de experiência mesmo agora me despeço e vou-me embora. Apenas lhe peço que me deixe ficar cá em casa mais oito dias para eu organizar a viagem para Luanda. Para isso trabalharei todos os dias que cá estiver e não tem que pagar nada.

O Paiva ficou muito surpreso com a atitude do Manuel, pois pensou que um subordinado nunca colocaria em causa a sua autoridade e a sua decisão e, numa retórica cheia de maus presságios, tentou dissuadir o Manuel de tomar tal decisão. Porventura nunca esteve habituado a que alguém pusesse em causa a sua pseudo honestidade e, sobretudo, o seu poder.

Mas estava decidido e ali se despediram com alguma frieza e o Manuel lá se dirigiu mais a mulher e o filho para a sua acomodação.

Estava irritado. Muito irritado. Com um pensamento de que aquela terra era terra de ladrões. Com a experiência conhecida do que acontecera ao seu irmão Zé e agora com este “balde de água fria” começou a arrepender-se de ter decidido rumar a África. Nunca ninguém lhe fizera tal. Toda a vida tinha visto o seu trabalho e esforço reconhecido ainda que mal pago. Ali, apesar de considerar que o trabalho era razoavelmente bem pago, roubaram-lhe um mês desse mesmo trabalho. Considerou uma indignidade e isso roubou-lhe a serenidade e a alegria. Tinha consciência de que tomara uma decisão que podia ser perigosa mas, ao mesmo tempo, não podia permitir tal desrespeito, tal desconsideração.

Não conseguiu dormir. Aliás, ninguém da família conseguiu dormir naquela noite de 2 de Maio de 1956.

A angústia do porvir povoava todo o pensamento. Até porque o ordenado acordado era considerado bastante bom. Mas estava decidido.

No dia seguinte logo o Rainho escreveu uma carta ao seu Tio Zé, em nome do pai, a contar o sucedido e a dizer que os esperasse, num prazo máximo de oito dias, em Luanda.

Durou menos de oito dias a espera. O Paiva, apesar de continuar a tentar dissuadir o Manuel da decisão que ele considerava precipitada, pôs-se à disposição dando ordens ao motorista para levar o Rainho a comprar os bilhetes de combóio e a propiciar todas as facilidades para lhe agradar.

Dia oito de Maio lá embarcou a família rumo a Luanda, não sem antes o Paiva, numa jogada de charme, tentar a alteração de planos. Para tal puxou da carteira e deu ao João 700$00 (Setecentos escudos) pelos dias que trabalhou a mais, acompanhados de uma recomendação: “Manuel, se se arrepender, se não encontrar trabalho em Luanda, não se esqueça, tem sempre aqui o seu lugar”. Seguiu-se o agradecimento educado e rumaram à capital de Angola. Mais um dia de viagem de combóio.

terça-feira, 14 de janeiro de 2020

Estórias de vidas 6


A escola, apesar de ser considerada retrógrada pelos intelectuais da época, tinha virtudes e defeitos como todas as organizações sociais.

Na circunstância, esta escola de aldeia teve professores que, pela entrega e denodo, profissionalismo e espírito de missão, conseguiu fazer de crianças filhas de analfabetos, na sua esmagadora maioria, alunos dedicados e ávidos de conhecer, de saber, de conquistar outras formas de vida.

Nesta aldeia e no final da década de quarenta e início da década de cinquenta do século vinte pode dizer-se, sem qualquer tipo de snobismo ou desprimor para as restantes gerações, anteriores ou posteriores, que conseguiu uma verdadeira geração de ouro.

Nunca antes tinha havido uma plêiade de gente que tanto tenha conquistado na vida.

Vamos por partes.

Como já se referiu, uma aldeia do interior profundo, de um Portugal cinzento e pouco dado a inovações, a maior parte das pessoas nasceu, cresceu e morreu sem ter visto outros horizontes que distassem mais de vinte ou trinta quilómetros. Consequentemente a vida dos pais era imitada pelos filhos e já vinha de avós, bisavós e tetravós.

No caso desta geração nascida entre finais da década de trinta e início da década de quarenta tudo foi diferente.

Muitas raparigas começaram a estudar fizeram-se professoras, na maioria dos casos, ainda que também houvesse juristas, escriturárias nos correios, nos registos civis e outros serviços públicos ou empresariais.

Já os rapazes fruto também da discriminação de género que era acentuadíssima na época, conquistaram espaços nas mais diversas actividades profissionais.

Desde logo a ascensão ao posto de General do Exército Português um dos rapazes desta freguesia é desse tempo e está vivo.

Médicos distintos. Juristas de gabarito que se distinguiram nas barras dos tribunais quer como juízes quer como advogados.

Eminentes sacerdotes exercendo os mais diversos papéis, incluindo os de missionários da América Latina e África. Professores de todos os graus de ensino, incluindo o superior.

Mecânicos de diversas tipologias incluindo a da aeronáutica civil como é o caso da Air France.

Trabalhadores dos diferentes serviços públicos desde os de mais baixa condição até ao topo das carreiras de técnicos superiores.

Pilotos da Força Aérea. Militares de diferentes patentes que defenderam a pátria nos mais diferentes teatros de operações.

Imigrantes que se tornaram empresários de sucesso no domínio da construção civil, hotelaria e restauração e muitos outros sectores. Poucos, muito poucos, foram aqueles que seguiram as pisadas dos pais e ficaram na aldeia.

Foi uma sangria para a localidade mas foi uma mobilidade social fantástica para os seus filhos.

O Rainho fez parte desta geração e, também ele, como muito esforço pessoal, atingiu o segundo grau académico mais elevado, existente no país, mestrado e pós graduação, diploma tirado numa das mais conceituadas e exigentes universidades públicas do país. A Faculdade de Ciências da Universidade de Lisboa.

A aldeia está mais pobre, de gente, de jovens, de crianças, mas os avós de hoje estão muito melhor na vida que os seus bisavôs.

Quando se diz que não há condições para progredir na vida pessoal e profissional porque não se dão condições aos jovens, talvez seja bom repensar esta posição. Pois as condições de hoje, de acesso à formação, à cultura, às novas tecnologias são a antítese daqueles tempos.

segunda-feira, 13 de janeiro de 2020

Estórias de vidas 5


Deste casal nasceu o Rainho um bebé rechonchudo que quase ia matando a mãe e a si próprio no acto do nascimento.

Nascia-se em casa e morria-se em casa. Era o que tinha de ser. O que Deus quisesse.

Não havia recursos da medicina nem dinheiro para suportar o seu custo, mesmo que houvesse.

Ao fim de 24 horas em trabalho de parto lá nasce o rapaz que logo ali fez do pai um sacrificado, um abnegado, um altruísta, um ser superior. A si próprio prometeu nunca mais sujeitar a mulher a tais dores e tal sofrimento. Condicionou a sua virilidade à relação sexual contida para evitar que houvesse mais gravidezes. Não havia pílula, nem preservativo e todo e qualquer método contraceptivo teria de ser natural. Abençoado pela Igreja e pela Fé que professava mas também pelo imperativo amoroso de poupar a mulher ao sofrimento.

Assim, o Rainho foi filho único por opção e determinação do pai e consentimento da mãe.     

Desta feita o rapaz cresceu num ninho de amor altamente protector, acolhedor, inteiro, só para si. Com os mimos próprios da época. Carinho em abundância. Exemplos de hombridade, honestidade, honra, palavra, ética, moral em excesso – perdão em excesso não, porque nunca há excesso destes valores – mas caracteriza a dimensão que representavam na vida daquela família.

O respeito pela família, pelos outros, pelos mais velhos, pelos superiores, pela verdade, pela intransigência no seu cumprimento, fora sempre o pão nosso de cada dia desta criança, adolescente, jovem e adulto.

Se eram estes os princípios dos pais não o eram menos os dos avós, maternos e paternos, dos padrinhos, dos tios e de toda a família. Da própria bisavó paterna que ainda conheceu e com quem conviveu até aos dez anos de idade.

Mas os mimos ficavam-se por aqui. Não havia dinheiro para brinquedos logo, não havia brinquedos. Melhor, houve sempre alguns feitos manualmente pelo pai, sempre relacionados com o trabalho. Um mangual, por exemplo, com todos os requintes do mangual do adulto, com correias de couro e cravelhas, tudo feito ao pormenor. Peça indispensável à malha do trigo e do centeio, produtos endógenos e indispensáveis à alimentação numa época de grande crise económica e financeira para além das consequências de uma segunda Guerra Mundial que ainda ia a meio quando ele nasceu mas cujos efeitos se prolongaram por mais duas décadas.

Colo e reprimendas também foram mais que muitas. Dos pais, dos avós e dos tios. Sim, porque sendo o primeiro neto e o primeiro sobrinho era para ele que canalizavam todos o seu afecto, a sua protecção e, também, a reprimenda com vista à sua educação. Faz parte da vida. E foi assim durante um bons quatro anos até começarem a nascer os seus primeiros primos, quer do lado paterno quer do lado materno.

Com este ambiente familiar não admira que o Rainho crescesse com curiosidade e apetência pelo conhecimento, pelo saber de experiência feito, a maioria das vezes, mas também das histórias de encantar com fundo moral que serviam de aprendizagem.

Pelo caminhar pelas ruas e campos por entre milharais, vinhas ou olivais. Vendo vacas e burros a pastar, cavalgando burros com albarda ou em pelo ou mesmo em cima de vacas que pela sua mansidão e cansaço não traziam perigo algum.

Aos seis anos, próximo dos sete, altura importante para as crianças cujos progenitores se preocupavam com a sua educação, pois a entrada para a escola não era flexível, teve aquilo que se pode chamar um primeiro grande contratempo na vida.

Em finais de Agosto, fruto da irrequietude e descoberta, comeu umas uvas ainda pouco maduras numa das suas muitas idas ao campo, com os pais ou tios. Desta vez foi com uma tia. Ainda hoje não se sabe a razão absoluta – alguma vez se saberá a razão absoluta? – porque surgiu a doença mas, o que é facto, é que a umas febres intestinais se acumularam a hemorragias sanguíneas constantes e permanentes durante quase três meses.

A entrada na escola que se fazia sempre no dia sete de Outubro não foi possível pois, nessa data estava mais para lá do que para cá e, na aldeia, os mais velhos agoiravam que o menino não sobreviveria a tão maléfica doença.

O pai até era criticado por gastar tanto dinheiro com médicos e medicamentos pois só Deus é que resolveria a situação.

Esta boa gente, daquele tempo, não entendia que Deus é infinitamente misericordioso mas que o ser humano tem que fazer a sua parte. Por isso e pela miséria, muitas crianças morriam sem qualquer tipo de assistência.

Não foi o caso do Rainho pois teve sempre pais e toda a família que rezavam mas iam buscar gelo ao hospital que ficava a doze quilómetros de distância, todos os dias, o médico vinha uma ou duas vezes por semana avaliando o estado de saúde – neste caso, mais de doença – do garoto e assim, os pais ficaram mais pobres de dinheiro mas conseguiram manter a riqueza de salvar o filho.

Com todos estes episódios, longos demais e muito dispendiosos, a entrada na escola foi preterida embora tendo havido prévia conversa do pai com a professora dando-lhe conta da situação, da apreensão, mas da confiança de que, se Deus quisesse, no início do segundo período o rapazinho lá se apresentaria na escola masculina da aldeia.

O médico, homem sábio e sensível, desanimado com os resultados obtidos com a medicação que estava ao seu alcance, decidiu-se, ao fim de dois meses, a aplicar um medicamento novo, muito doloroso, que até aí se coibira de aplicar devido a ser muito doloroso para uma criança, a milagrosa penicilina.

Um dia, já a noite irrompera pela aldeia, virou-se para o pai do rapazinho e disse-lhe: Manuel vou receitar-lhe a última coisa. Se resultar ficamos todos felizes mas se não resultar não virei cá mais. Vai chamar o Frederico.

O Frederico era o barbeiro da família e, como todos os barbeiros da altura, também dava injecções, colocava ventosas, tirava dentes e fazia uns pensos em feridas mais ou menos graves. Homem bom e muito amigo desta família. Já era dos pais e sempre muito dedicado a todos.

O médico virou-se para o Frederico e disse-lhe: tem cuidado que isto é muito doloroso. Eu vou dar-lhe esta primeira injecção para tu veres e tu dás-lhe as restantes duas em dias seguidos. Olha bem e repara como se faz.

À primeira injecção o Rainho nem tugiu nem mugiu, tal era a sua debilidade. Mas foi milagrosa. No dia seguinte já não havia sangue nas fezes e a vontade de comer começou a aparecer. As melhoras eram sensíveis e após a segunda dose o rapaz parecia ter ressuscitado. Queria muito comer. Dizia ter fome constantemente e, como era esquisito, só queria canja e carne de perdiz.

Era época de caça e, com aquela dedicação dada a um filho que se considerava quase perdido, lá se comprava de, quando em quando, uma perdiz e nos restos dos dias tinha de comer as galinhas que eram produto da casa.

O rapaz melhorava a olhos vistos mas, há sempre um mas, o organismo estava profundamente debilitado e começou a inchar por todo o corpo.

A angústia era mais que muita e as decisões a tomar eram de extrema dificuldade.

Os conselhos dos vizinhos e amigos também mereciam ser ouvidos e, sem que nada o fizesse prever, um dia aparece lá em casa uma amiga já entradota com uma senhora desconhecida, toda vestida de preto e com um ar soturno. Era uma daquelas mulheres dadas ao misticismo e bruxarias e que sabia fazer umas rezas, uns truques com azeite, vinagre e outras ervas para expurgar o diabo que o Rainho tinha entranhado, na sua óptica, já se vê.

O Rainho desde criança que sempre fora pouco dado a crendices, talvez por influência do avô paterno e, em vez de colaborar com a benzilheira, ria a bandeiras despregadas deixando a velhota muito constrangida. Vistas as coisas à distância pode dizer-se que tal inchaço era defesa do organismo a uma nova adaptação depois de uma fraqueza quase absoluta.

O tempo veio a demonstrar isso mesmo e não as benzeduras que, diga-se de passagem, ninguém acreditava nessas coisas lá em casa. Nem pais nem filho.

O Outono invernal, como eram todos os Outonos da época, fora frio e chuvoso, por isso o Rainho passou o tempo até ao Natal metido em casa, junto da lareira, entediado, com uma vontade louca de poder brincar e ir para a escola como todos os seus amigos. Estes visitavam-no e davam-lhe novidades da escola. Do que aprendiam, das dificuldades, das lutas entre eles, do medo dos mais velhos, de tudo aquilo que fazia o dia-a-dia de escola.

Se durante as visitas o nosso menino estava alegre e bem-disposto com a saída dos amigos apoderava-se dele uma nostalgia que o prostrava.

Entretanto o pai já lhe tinha comprado uma ardósia e respectivo giz, um caderno de duas linhas, um aparo e um suporte para o mesmo, bem como um pequenino e lindo canivete para poder raspar no papel caso deixasse cair algum borrão, o que era, por assim dizer, quase inevitável e ainda para aguçar o lápis.

A mãe tinha-lhe confeccionado uma bolsa para transportar todas aquelas coisas e mais o livro de leitura que era peça fundamental naquela altura.

Apesar de débil o rapazinho ansiava poder ir para a escola apesar das histórias de pancada e castigos de que esta era, frequentemente, acusada.

Passou o Natal e a Ceia, naquela casa humilde, foi de festa e confraternização com a família alargada, avós paternos e maternos, tios de ambos os lados.

O Rainho pulava de alegria e, como centro de atenções, natural devido às circunstâncias e ao facto de ser o primeiro neto e o primeiro sobrinho, sentia-se com uma vontade férrea de viver e aprender.

Recebeu os dois tostões nas botas que colocou ao lado da lareira e que o Menino Jesus adornou com o seu presente de Natal. Não era uma prenda pessoal. A formação dos pais e dos avós indicava que a prenda recebida em dinheiro deveria ser entregue, também como prenda, ao Menino Jesus quando se fosse beijar o Menino no dia de Natal.

Apesar de saberem bem os rebuçados que o dinheiro poderia comprar era assumido que tal dádiva era uma obrigação e, sem rebuço de nenhuma espécie, fazia-se com muito carinho.

Depois de cantadas a Janeiras em casa de familiares e amigos em dia de Reis, 6 de Janeiro, acabaram-se as festas e chegou o tão ansiado dia de ir, pela primeira vez, para a escola.

A entrada foi muito acarinhada por todos. Colegas do ano, mais velhos e também a professora que o recebera com um beijo na face e a recomendação de que deveria estar sempre com muita atenção, pois perdera o primeiro período de ensinamentos.

A ansiedade, a novidade e a expectativa fizeram daquele dia o dia mais feliz do Rainho. Apesar de as mãos não quererem obedecer à minúcia do contorno das letras e dos números – na época ninguém falava em estimular a motricidade fina – começou ali uma época muito feliz para o Rainho e para todos os seus familiares.

Aprendera depressa. Diariamente passava duas e três lições. Era borrão na escrita mas muito sagaz na aprendizagem das letras, dos números e das contas de aritmética, adição e subtracção simples.

O tempo passa depressa e o rapazinho nas férias da Páscoa já lia bastantes palavras e interiorizara a técnica da leitura pelo que trouxe para casa o dobro dos trabalho que os seus colegas.

Foram cópias, contas, leitura de lições para trás e para a frente daquela lição em que o grosso da turma ia.

Os dias de férias foram para ele dias de trabalho igual como se estivesse na escola. Sentado ao lume com o livro na mão ou a lousa no colo passava a maior parte do tempo a ler em voz alta ou a fazer contas de somar ou subtrair. Um treino indispensável e muito útil para recuperar o atraso na entrada na escola.

O Pai andava sempre a trabalhar no campo. A mãe, em casa, fazia a lida, sempre com algum esforço, pois andava sempre doente e a queixar-se do reumático, além do que não poderia ajudar porque não sabia ler nem escrever. Mas o miúdo desenvencilhava-se razoavelmente.