sexta-feira, 17 de janeiro de 2020

Estórias de vidas 8


A chegada a Luanda foi um reencontro com a família e os amigos. A saudade já era bastante pois ainda não tiveram tempo de desfrutar de companhia uns dos outros havia mais de quatro anos, apenas com o interregno da passagem fugaz por Luanda quando desembarcaram.

Nessa noite foi encontrada a solução para a residência da família no Bairro Operário mesmo junto do grande largo que era, simultaneamente, campo de futebol, espaço de festas, bailes e passagem para a cidade dos ricos ou, pelo menos, para a cidade da classe média-alta.

Todos residiam muito próximo, num mesmo quarteirão, paredes meias com o Bairro do Cruzeiro, o bairro residencial do Estado destinado aos funcionários públicos.

Era uma quinta-feira e, no dia seguinte, o Manuel pôs-se em campo à procura de emprego. Não era nada fácil para quem da leitura e da escrita pouco sabia e, do trabalho, apenas era muito conhecedor das tarefas do campo.

O sábado, naquela terra e naquele tempo, já só era ocupado com o trabalho da parte da manhã pelo que os amigos que trabalhavam toda a semana tiveram tempo e disponibilidade para animar o Manuel dando-lhe esperança de que haveria de aparecer um emprego que permitiria começar uma nova vida.

Desde logo uma boa notícia o Rainho poderia começar a trabalhar na segunda-feira seguinte numa loja – espécie de tasca que vendia tudo o que era básico para a vida e ponto de paragem obrigatória para os indígenas que se deslocavam do musseque para o trabalho – onde compravam os artigos necessários para o almoço.

Em regra, cem gramas de fuba, outras tantas de amendoim (jinguba), açúcar, tabaco, óleo de palma, peixe seco e bebiam um copo de candingolo (uma espécie de cachaça que era feita da destilação da cana do açúcar), repetindo-se o ritual quando regressavam a casa e por ali passavam por volta das sete horas da noite.

Aproveitou-se o domingo para ir com o amigo e os pais para falarem com o proprietário da loja e acertar os pormenores da remuneração, horário e demais regras consideradas indispensáveis para iniciar funções.

Ficou decidido que começaria na segunda-feira e que o ordenado seria de cento e cinquenta escudos por mês, comidos e bebidos, com a obrigação de estar na loja às cinco horas da manhã para preparar tudo para receber os clientes que começavam a chegar por voltas das seis. Que a saída seria às nove horas da noite e que o trabalho era ininterrupto sem direito a folgas. Soube-se ali que nesse dia o Rainho começaria a trabalhar todos os dias da semana, incluindo domingos, dezasseis horas por dia, enquanto estivesse naquele emprego.

Logo foi aceite o emprego, apesar de ser quase um trabalho escravo, principalmente porque estamos a falar de um adolescente com doze anos de idade. É que os cento e cinquenta escudos davam para pagar a renda da casa e, enquanto o pai não arranjasse emprego, era uma ajuda preciosa.

Passou-se o fim-de-semana em amena cavaqueira e o Rainho a brincar com os filhos dos amigos do pai, uma rapariga mais velha três anos e dois rapazes mais novos, respectivamente, 5 e 3 anos.

Dia doze de Maio lá iniciou funções como trabalhador remunerado o nosso Rainho. Sem consciência do verdadeiro esforço necessário para desempenhar a função mas sabedor que a vida é feita de trabalho e o que é preciso é ganhar dinheiro com honestidade, lá se levantou pelas quatro e meia da manhã, tomou um duche de água fria, que naquela latitude até é um factor de refrescamento e recomposição de força e atravessar o largo principal do bairro para entrar na loja que era a única casa com as luzes acesas àquela hora da madrugada.

A maioria dos trabalhadores iniciava o seu trabalho pelas oito da manhã mas como as deslocações da maioria das pessoas para o trabalho era feito a pé, saía-se de casa, em regra, pelas sete da manhã para que se cumprisse a pontualidade. Dizer-se ainda que o sol nascia pelas seis da manhã e escondia-se para lá do horizonte, pelas seis horas da tarde. A proximidade do Equador fazia com que os dias e as noites tivessem a mesma duração todos os dias do ano.

Foi um trabalho duro. Muitas horas seguidas de trabalho. Muita tristeza. Muita aprendizagem. As defesas necessárias para enfrentar a dureza da vida. O que há de bom no ser humano e o que há de mesquinho, ambição, cretinice, malvadez no mundo do trabalho.

O patrão era um homem relativamente novo, talvez próximo dos trinta anos. De uma ambição inexcedível. Querendo enriquecer a todo o transe. Casado, com um filho ainda bebé, cuja esposa era o seu oposto. A bondade personificada. Uma jovem de vinte e poucos anos, bonita, que punha todo o seu carinho e a sua atenção no seu filho. Aos olhos de hoje não seria mais que uma escrava sexual. Mas já lá vamos para não perdermos o fio à meada.

António, de seu nome, tinha-se estabelecido há pouco mais de dois anos depois de ter sido empregado de balcão de uma média mercearia do centro da cidade de Luanda. Sem escrúpulos nenhuns, uma das primeiras coisas que ensinou ao Rainho era a forma de viciar a balança para poder subtrair nas pesagens e, assim, aumentar os seus lucros. Dizia constantemente que para ser um bom empregado devia roubar, sim roubar era o termo utilizado, o cliente sem que este desse conta. Com manha, com subtileza e demonstrava isso mesmo, na prática fazendo os gestos que tal proporcionavam.

É bom de ver que a um adolescente que foi criado num ambiente de rectidão e honradez esta atitude não agradava. Para além disso não tinha a sagacidade para fazer tais malabarismos sem que fosse descoberto pelos indígenas que estavam sempre desconfiados, porque eram vítimas sistemáticas deste tipo de expedientes.

Não raro o Rainho era descoberto nas artimanhas que o patrão lhe obrigava a fazer e a reclamação vinha sempre com alguma berraria do cliente que se queixava ao António dizendo: “patrão, o menino está a roubar na mesa”. Nunca o nosso garoto percebeu esta expressão mas à qual se seguia uma descompostura com ar de azedume que muito entristecia o rapaz. Mas, mal o cliente virava as costas depois de ter sido ressarcido de alguns gramas, sempre menos dos que lhe tinham sido retirados, lá vinha a palmada nas costas com um sorriso malévolo e o incentivo. É assim mesmo rapaz, continua, não te preocupes, o que eu disse à frente do preto é para ele ir satisfeito não é por estar zangado contigo, pelo contrário.

À tristeza o Rainho adicionava uma raiva que, se pudesse, na hora se despedia e ia embora para outro trabalho menos penoso e mais gratificante.

O descontentamento acentuava-se de dia para dia. Acrescia o facto de a Dona Lurdes, esposa do António, à hora das refeições que ela própria confeccionava e que comiam os dois, pois o marido comia primeiro para ir para o balcão já que a loja não permitia nenhum tempo de pausa, vir com conselhos sábios, prudentes, muito fruto da sua experiência e da sua infelicidade. “Rainho não queiras isto para a tua vida. Olha para mim, vê como passo aqui a minha vida como se fosse prisioneira sem nunca sair de casa, tratar do meu filho e do meu marido e sem uma atenção dele e com muitas traições. Que arrependida que eu estou. Se soubesse o que sei hoje nunca me tinha casado com este homem que, no namoro, julguei ser um homem bom. Não queiras esta vida arranja outro emprego para, quando tiveres idade, poderes casar e dar à tua mulher a vida que eu não tenho”.

A cabeça do rapaz andava à roda com este tipo de aviso. Não compreendia o que era viver assim em casal. Já lhe tinha parecido haver falta de respeito do Paiva para com a esposa, na fazenda onde passara os primeiros dois meses e meio de Angola, agora com estes conselhos que eram ditos em segredo e era pedido segredo a confusão era total.

Não estava habituado a ver tal. Os seus pais respeitavam-se mutuamente, conversavam, faziam planos de vida, estimavam-se, viviam um ambiente de amor sem reclamações e agora via isto num casal bastante mais novo que os seus pais. Era muito estranho. Era muito confuso.

O desgosto do Rainho ia-se acentuando. Complementarmente começou a aperceber-se que entravam no armazém, através da loja, umas miúdas pretas talvez mais novas que ele próprio pois mal começavam a despontar as maminhas acompanhadas por homens que julgava serem seus pais, uma de cada vez e o António entregava aos acompanhantes das miúdas uma garrafa de candingolo – aguardente de cana-de-açúcar – e outros produtos pelos quais não levava dinheiro, o que não deixava de ser estranho, para um homem tão agarrado ao dinheiro e tão ambicioso.

O tempo ia passando e, aos poucos, o Rainho foi-se apercebendo de que a Dona Lurdes tinha razão quando falava de traições. O António era um sabujo que aliciava os pais das pretitas, pouco mais do que crianças, para as desflorar. As miúdas saiam do armazém tristes, mas com alguns panos, bonecas ou brinquedos que, nem isso lhes trazia alegria ao rosto.

Os indivíduos sem escrúpulos tinham o péssimo hábito de coleccionar cabaços – desfloramentos de meninas – uma linguagem que, com a idade veio a compreender, mas que na altura lhe causavam estupefacção e depois asco, nojo. O António acumulava todos os defeitos que enojavam e enraiveciam o miúdo.

As conversas com a Dona Lurdes contribuíam cada vez com mais intensidade para que o Rainho se sentisse desgostoso com tal emprego mas, o pai continuava desempregado e isso inviabilizava qualquer pretensão de mudança de trabalho.

O suplício durou cinco meses. Entretanto o pai empregou-se e, desde logo, o nosso rapazinho, que nestes meses amadurecera muito rapidamente, pediu ao pai para o deixar procurar outro emprego. Mais, que pedisse ao seu padrinho João António que trabalhava, porventura, na maior empresa multinacional que havia em Luanda na época, para lhe arranjar emprego o que aconteceu muito rapidamente.

Desta feita, quando chegou o fim do mês de Setembro, o Rainho despediu-se a chorar da Dona Lurdes, porque gostava muito dela e, ao mesmo tempo, tinha muita pena mas, muito feliz por deixar de olhar para a cara do António, pessoa que detestava com todas as forças do seu ser.

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