domingo, 19 de janeiro de 2020

Estórias de vida 9


No primeiro dia de Outubro de 1956 entrou na oficina da Robert Hudson & Sons, empresa de origem inglesa, cujos quadros superiores eram todos ingleses, na sua maioria engenheiros e economistas, e quadros intermédios portugueses que, em conjunto, geriam uma empresa que, bem se pode dizer, tinha tudo e fazia de tudo.
Era o único importador e representante da marca Ford. Marca americana de prestígio internacional, com tecnologia de ponta à época, principalmente nos automóveis que produzia. Na altura ainda não havia fábricas da marca na Europa e, muito menos na China.
Eram carros de luxo e de potência. Geralmente com motores de oito cilindros em forma de V, a gasolina e que debitava uma potência superior aos duzentos cavalos. Naquele ano até foi importado, com destino a um fazendeiro do Norte de Angola, um modelo descapotável que tinha uma capota metálica que recolhida na bagageira e aparafusada electricamente por acção de motores eléctricos accionados pelo condutor. À vontade do utilizador podia ser um automóvel normal ou descapotável o que dava muito jeito no clima existente. Pois tão depressa estava um Sol abrasador como, de repente, vinha uma carga de água de encharcar os ossos.
Para além dos automóveis também importava e distribuía tractores, Camionetas, mais ou menos de grande porte, mas igualmente leite em pó “Nido”, azeite português em latas de cinco litros, ou detergente “Omo”, e outros produtos necessários à vida e ao bem-estar, como frigoríficos e outros electrodomésticos.
Uma grande empresa na verdadeira acepção da palavra. Cada secção tinha o seu encarregado que geria os trabalhadores e contactava com os clientes, já que toda a prestação de serviços era personalizada. Toda a gente conhecia toda a gente.
Acrescente-se que, na época, Luanda não tinha recenseamento obrigatório e, segundo se dizia, não teria mais do que trinta mil brancos e pouco mais do que duzentos mil negros e mestiços. Havia também, alguns milhares de emigrantes, Cabo Verdianos que, em regra, viviam nos musseques juntamente com os negros e não se distinguiam muito destes.
O trabalho nesta empresa começava, para todo o pessoal, independente da cor, etnia ou nacionalidade, às oito horas da manhã. Terminava ao meio-dia para o almoço, retomava-se às duas da tarde e encerrava às seis da tarde, todos os dias da semana, excepto ao Sábado, que encerrava à uma hora da tarde e no Domingo que não se trabalhava.
O Ordenado era diário e pago à semana. O Rainho passou a ganhar dez escudos por dia e, como é bom de ver, não ganhava os domingos. Tinha que comer em casa dos pais mas, mesmo assim, era muito melhor do que na loja do Bairro Operário.
Havia mais alguns rapazes com idades aproximadas que, tal como o Rainho, pretendiam aprender a arte de mecânico. Arte considerada de algum prestígio no meio operário, porque se ganhava razoavelmente e se tinham contactos com as classes mais endinheiradas.
O relacionamento entre os aprendizes era fantástico o que originou grande amizades que perduraram no tempo por muitas décadas depois, mesmo quando houve separação por motivos profissionais, de serviço militar obrigatório, e outros.
Com os mestres, o chefe de oficina, os empregados de balcão da secção de peças e até de alguns engenheiros que passavam bastantes vezes pela oficina, eram de respeito, consideração, obediência mas de abertura ao diálogo.
Bom ambiente de trabalho. O vencimento é que não correspondia aos anseios da maior parte dos trabalhadores. Eram frequentes as queixas dos mais velhos que sentiam que não estavam a ser pagos de acordo com as suas competências. Talvez por isso, houvesse mudanças para outras empresas do ramo, que disputavam os bons artistas.
Apesar de tudo houve uma espécie de núcleo duro que se aguentou durante algumas décadas.
O Rainho esforçava-se por aprender e, talvez por isso, passou a ser disputado como ajudante dos mecânicos mais prestigiados e com mais poder dentro da oficina. Durante um ano passou por três mestres, sempre obedecendo às ordens do chefe da oficina que era para si, como se fosse o dono daquilo tudo.
Mas, ao fim de um ano, surgiu-lhe uma oportunidade para ir ganhar vinte e cinco escudos diários, com farda própria fornecida pela empresa, assistência médica e outras benesses.
A diferença monetária era de grande monta e, numa família que estava no princípio de uma nova vida, isso fazia toda a diferença. Desta feita, em franco diálogo com os superiores hierárquicos, o Rainho deixou a Robert Hudson e foi trabalhar para a Fábrica de Tabacos Sital, uma filial da Fábrica de Tabacos Ultramarina, uma grande empresa portuguesa, que recebia, tratava e embalava, nas mais diversas formas, os cigarros que eram distribuídos por toda a Angola. Em maço de vinte cigarros cada, ou em “roda” que continha trezentos cigarros e era para serem vendidos avulso.
Foi em finais de 1957, que o Rainho entrou para a fábrica Sital e que também foi introduzida uma nova máquina de aplicação de filtro no cigarro e de uma nova forma maço, em rectângulo, com papel mais duro.
O nosso rapaz já estava com treze anos. Na fábrica trabalhavam mais cerca de vinte jovens, entre eles duas raparigas brancas, mais ou menos da sua idade ou pouco mais velhas, e havia apenas, um encarregado geral branco, já com cabelos brancos e mais dois empregados brancos, homens. Os restantes eram negros, homens, mulheres, rapazes e raparigas.
Muito bom ambiente de trabalho. Todos se tornaram rapidamente amigos. Passavam os intervalos juntos. Os momentos de espera pela hora de entrada a brincarem e faziam o percurso para as respectivas casas de residência juntos, ainda que alguns tivessem que dar uma volta maior do que o caminho em linha recta. Era o caso de dois ou três que morávamos para a alta da cidade e que dávamos uma volta, ao fim da jornada, para deixar em casa, as duas meninas brancas que eram irmãs.
A mais velha, de seu nome Rita, já meia mulher, de seios fartos e hirtos, já se pintava e arranjava antes de sair da fábrica e era o derriço do António, colega do Rainho. A Maria com menos dois anos, mais ou menos da idade do Rainho, que começava a despontar como mulher, com pequenos seios que estavam a despontar e se adivinhavam por debaixo do tecido fino do vestido. Ambas muito bonitas, de cabelo acastanhado, lábios carnudos, olhos castanhos e sorriso fácil e sempre pronto. Boas miúdas que, de alguma forma, foram o despertar para a sexualidade do nosso jovem. Não que tivesse algo mais do que amizade por alguma delas, mas cuja companhia lhe agradava e compensava a solidão de filho único.
O rapaz levava uma vida divertida mas de muito trabalho e algumas preocupações. Quando chegava a casa, à noite, via a mãe preocupada com o pai a preparar-lhe uma bacia de água morna com bastante sal para amenizar as dores e sarar as bolhas que tinha nos pés de tanto calcorrear aquelas ruas da cidade que, não sendo muito grande, sempre tinha locais a distarem, entre si, cinco ou mais quilómetros.
O pai, o Manuel, conhecia mal a cidade e não sabia onde ficavam as empresas onde trabalhavam os sócios do sindicato dos trabalhadores do comércio. Sim, o emprego que arranjara fora o de cobrador das quotas que os trabalhadores tinham de pagar para terem assistência médica.
Na época tudo era pago em dinheiro contado e, muitas vezes, o Manuel seguindo a ordem alfabética dos talões das quotas, saía de uma ponta da cidade para outra quando depois descobria que, afinal, havia ainda outra empresa próxima do local onde tinha estado e que, por desconhecimento, o obrigava a lá voltar. Para cúmulo ganhava apenas mil e quinhentos escudos (um conto e quinhentos) e tinha que comer à sua custa o que contrastava com o ordenado que tinha na Fazenda do Zenza do Itombe.
A dureza da vida era mais que muita para todos mas havia a esperança de dias melhores e toda a família se entregava com todas as suas forças ao trabalho de transformar os momentos difíceis e tempos mais favoráveis.
Desde logo o pai do Rainho começou a estudar à noite, com um professor primário que lhe dava explicações, para fazer o exame da quarta classe, não só para ter o diploma que era muito importante para melhorar as suas condições de empregabilidade mas, sobretudo, para aprender mais e poder efectuar as contas e a escrita que o seu trabalho exigia.
Nos primeiros meses era o Rainho que, noite dentro lhe fazia as contas enquanto o pai contava o dinheiro recebido e as quotas cobradas para tudo dar certo sem qualquer tipo de erro. Era pouco dinheiro mas eram muitíssimas parcelas. Apesar das dificuldades o tesoureiro do sindicato e o presidente sempre elogiaram o trabalho do Manuel, pois sabiam o esforço que fazia para que tudo estivesse correcto, apesar da insuficiência dos seus conhecimentos académicos.
Mas para quem quer trabalho e se esforça para cumprir o seu dever não há barreiras intransponíveis. Há desafios que é preciso superar e se superam.
No ano lectivo de 1956/1957 abriu, pela primeira vez, um curso nocturno na Escola Comercial que, na altura, funcionava no edifício da Associação Comercial de Luanda, na Vila Clotilde, bairro próximo da casa da família que situava na avenida dos combatentes da grande guerra.
Este, desafiado por amigos, que já tinha alguns naquela altura, matriculou-se no primeiro ano do curso comercial para o frequentar à noite e, assim, melhorar as suas habilitações académicas e as suas condições de progressão na vida profissional. Foi uma porta que se abriu a muitos jovens que não tiverem a possibilidade de estudar para além da quarta classe do ensino primário.
Até parecia ser fácil conciliar as oito horas de trabalho diário com mais quatro horas de estudo em sala de aula mas, de facto, não era.
O curso era frequentado por adultos, já casados e com filhos que queriam progredir na carreira, e por uma boa dezena de jovens, a maioria mais velhos do que o Rainho que viam naquele curso a possibilidade de virem a ser guarda-livros, hoje técnicos oficiais de contas.
Apesar do Rainho andar muito satisfeito com a vida, mais por inconsciência do que por facilidades, essa satisfação não resultaria em bom aproveitamento escolar.
Apesar do rapaz ser inteligente, segundo dizia toda a gente e, principalmente os professores, não dedicava horas suficientes ao estudo para poder obter melhores resultados.
Havia uma disciplina que se chamava Caligrafia onde se aprendia o cursivo inglês, a letra francesa e outras que necessitavam de treino. Não era difícil de aprender a técnica era difícil de executar, tinha uns aparos próprios que era necessário estar continuamente a molhar no tinteiro e para isto o jovem não tinha muita paciência.
Cumulativamente, em frente ao prédio onde funcionava a Escola Comercial, do outro lado da rua, havia o clube desportivo da Vila Clotilde onde se jogavam matraquilhos, ténis de mesa, cartas e outros jogos de mesa, como damas e xadrez.
É bom de ver que a atracção do Rainho pelos matraquilhos fazia com que os intervalos não chegassem para satisfazer a vontade de jogar e, as consequências foram a reprovação por faltas no fim do ano lectivo.
Esta reprovação foi um desgosto para os pais que nunca estiveram habituados a esses percalços e tinham a ideia de que o filho era um super-herói. Mais que aborrecimento foi a decepção por verem o filho cair do pedestal em que o alcandoraram. O rapaz tinha consciência de que não fizera o mínimo e que o castigo do chumbo era perfeitamente merecido. Serviu de lição, nunca mais na sua vida chumbou.

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