sábado, 25 de janeiro de 2020

Estórias de vida 10


Capítulo 10

O Manuel ao fim de um ano de trabalho ganhou muitos conhecimentos quer no domínio do trabalho, quer no domínio do saber, porque foi fazer o exame da quarta classe e foi aprovado sem qualquer benesse ou condescendência e, ainda, no domínio das relações pessoais. Conheceu muitas empresas e nessas empresas muitas pessoas, o que lhe permitiu arranjar novo emprego, muito melhor remunerado e muito mais estável e sem necessidade de calcorrear as ruas da cidade.
Assim arranjou emprego na, então, fábrica da borracha que, como o nome indica, foi a precursora da fábrica de pneus. No caso concreto preparava a borracha para a recauchutagem de pneus de todas as medidas e feitios.
O Manuel foi para uma secção pioneira dentro da fábrica que estava e esteve sempre em permanente ampliação e diversificação de produtos, que era a secção dos plásticos. Estamos a falar de pentes, botões, e até sapatos tudo produtos feitos através de injecção de plástico liquefeito que era introduzido em moldes.
O dono da fábrica era um empresário de muito valor. Empreendedor, bom conhecedor do ramo, antigo operário e que dava valor ao trabalhador. O Manuel encontrou no patrão, o senhor Macambira, mais do que um patrão, um amigo e, talvez por isso, ele tivesse sido mais do que um trabalhador, um homem preocupado com o trabalho sistemática e continuamente, a ponto de sair da cama às duas ou três da manhã para ir à fábrica ver se o turno estava a funcionar bem e se não havia preguiça ou desperdício.
A Fábrica que começara como manufacturação da borracha em poucos anos tornou-se uma das maiores empresas de Luanda que chegou a empregar mais de mil trabalhadores.
Diversificou a produção passando a tecer tecidos para lençóis, toalhas, pano para sapatilhas de ténis, aprimorou os plásticos onde passou a produzir tudo o que era possível pensar, mantendo os pentes, o calçado mas indo para as embalagens de comida ou coisa maior, embalagens grandes para os mais diversos produtos, desde a fruta, aos galináceos. Passou a ser um potentado naquele domínio e uma referência em toda a cidade e, com o seu desenvolvimento, também os seus trabalhadores melhoraram substancialmente a vida.
O Manuel, no fim do ano de 1962, já era empregado naquela fábrica há cinco anos, foi chamado ao patrão para este lhe dizer: “Manuel não queres construir uma casa”? Ao que este lhe respondeu: - querer queria mas não tenho dinheiro para tal. E o Macambira lhe disse: - vai procurar um terreno no Bairro Popular como estão a fazer muitos dos teus colegas que eu te empresto o dinheiro para a construíres que é o que estão todos a fazer, ou julgas que eles têm mais dinheiro do que tu? O Manuel agradeceu a oferta do patrão mas respondeu que não sabia conviver com dívidas e por isso não ia arriscar a construir a casa. Então o Macambira, homem justo, pegou num cheque onde escrevera cem mil escudos (cem contos), na altura já havia Bancos Privados em Luanda, nomeadamente o Banco Pinto & Sotto Mayor, e entregou-o ao Manuel dizendo que, já que era tão honesto que não queria dívidas merecia, pelo menos, uma bonificação pela dedicação e trabalho que dava àquela empresa.
Como já se disse, a vida dá tantas voltas que, um trabalhador rural que nada mais sabia do que tratar do amanho das terras, nas mais diversas tarefas, ao fim de pouco mais do que meia dúzia de anos se transformou num trabalhador altamente qualificado e grande amigo do grande empresário que era seu patrão. Era tão amigo que ele e toda a sua família fora convidado para o casamento dos filhos do patrão. Também ali trabalhou toda a vida até se vir embora para Portugal após a descolonização dita, exemplar, mas que melhor se diria desastrosa para portugueses e angolanos.
O Manuel quando melhorou as suas condições de vida profissional e económica achou que deveria dar aos seus irmãos que tinham ficado na Metrópole a mesma oportunidade que o seu irmão Zé lhe dera a ele e, por isso, começou a chamar para junto de si o seu irmão mais novo, o António que foi para Angola, Luanda em 1958, começou a trabalhar num escritório de uma boa empresa e que, continuando a estudar à noite, chegou a licenciar-se em Ciência Política e Administrativa pela Universidade de Lisboa.
Seguiram-se as suas irmãs mais novas e seu cunhado Joaquim pouco depois de ter estabilizado o estado da colónia depois do Golpe de 4 de Fevereiro de 1961.
Angola até esta data tinha sido ostracizada pelo regime político nacional e servia apenas para garantir à Metrópole a receita em matérias-primas que não possuía no seu território continental e insular. Porém, o golpe militar dos nacionalistas angolanos fez uma reviravolta na política e, com o envio de milhares de soldados para o combate, também se aboliu a carta de chamada e facilitou a entrada no país e este desenvolveu de forma exponencial.
Foram as obras públicas. A construção civil. A diversificação da agricultura com a cultura de frutas e criação de gado. Toda a mão-de-obra era escassa e o emprego era mais dos que os pretendentes. Também os ordenados subiram e as condições de vida de uma vasta classe média melhoraram substancialmente o que dinamizou o comércio interno e externo, bem como as importações e exportações.
A este desenvolvimento também não é alheio o incremento do transporte aéreo, até ai quase inexistente e à sua democratização, o que facilitou imenso o intercâmbio entre os portugueses de cá e de lá.
Deixou-se de ir para Angola como quem ia para o fim do mundo, para quem as famílias se despediam até ao dia do juízo, como se a separação fosse igual à morte e a perspectiva de visitar Portugal tornou-se bastante comum.
A família, agora alargada, pois viviam na cidade de Luanda seis dos oito irmãos do Manuel, com os respectivos filhos, mulheres, maridos e até sobrinhos, faziam uma grande família que todos os fins-de-semana se reuniam para confraternizar. Pode dizer-se sem margem para qualquer tipo de dúvida que eram felizes. E essa felicidade durou mais de dez anos.
Construíram as suas próprias casas e à medida que economizavam dinheiro investiam-no no seu bem-estar e no desenvolvimento daquele território que consideravam seu e onde queriam ser sepultados. Não foi assim mas devido a vicissitudes que um dia a História Científica há-de clarificar.

1 comentário:

  1. Zé Caldeira,
    Apesar de pouco comentar, continuo a acompanhar a tua odisseia. Contextualizas tudo muito bem, de tal forma que o leitor não tem qualquer dificuldade em situar-se no espaço e no tempo.
    Continua, não pares. Que história de vida, amigo!

    Grande abraço

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