segunda-feira, 13 de janeiro de 2020

Estórias de vidas 5


Deste casal nasceu o Rainho um bebé rechonchudo que quase ia matando a mãe e a si próprio no acto do nascimento.

Nascia-se em casa e morria-se em casa. Era o que tinha de ser. O que Deus quisesse.

Não havia recursos da medicina nem dinheiro para suportar o seu custo, mesmo que houvesse.

Ao fim de 24 horas em trabalho de parto lá nasce o rapaz que logo ali fez do pai um sacrificado, um abnegado, um altruísta, um ser superior. A si próprio prometeu nunca mais sujeitar a mulher a tais dores e tal sofrimento. Condicionou a sua virilidade à relação sexual contida para evitar que houvesse mais gravidezes. Não havia pílula, nem preservativo e todo e qualquer método contraceptivo teria de ser natural. Abençoado pela Igreja e pela Fé que professava mas também pelo imperativo amoroso de poupar a mulher ao sofrimento.

Assim, o Rainho foi filho único por opção e determinação do pai e consentimento da mãe.     

Desta feita o rapaz cresceu num ninho de amor altamente protector, acolhedor, inteiro, só para si. Com os mimos próprios da época. Carinho em abundância. Exemplos de hombridade, honestidade, honra, palavra, ética, moral em excesso – perdão em excesso não, porque nunca há excesso destes valores – mas caracteriza a dimensão que representavam na vida daquela família.

O respeito pela família, pelos outros, pelos mais velhos, pelos superiores, pela verdade, pela intransigência no seu cumprimento, fora sempre o pão nosso de cada dia desta criança, adolescente, jovem e adulto.

Se eram estes os princípios dos pais não o eram menos os dos avós, maternos e paternos, dos padrinhos, dos tios e de toda a família. Da própria bisavó paterna que ainda conheceu e com quem conviveu até aos dez anos de idade.

Mas os mimos ficavam-se por aqui. Não havia dinheiro para brinquedos logo, não havia brinquedos. Melhor, houve sempre alguns feitos manualmente pelo pai, sempre relacionados com o trabalho. Um mangual, por exemplo, com todos os requintes do mangual do adulto, com correias de couro e cravelhas, tudo feito ao pormenor. Peça indispensável à malha do trigo e do centeio, produtos endógenos e indispensáveis à alimentação numa época de grande crise económica e financeira para além das consequências de uma segunda Guerra Mundial que ainda ia a meio quando ele nasceu mas cujos efeitos se prolongaram por mais duas décadas.

Colo e reprimendas também foram mais que muitas. Dos pais, dos avós e dos tios. Sim, porque sendo o primeiro neto e o primeiro sobrinho era para ele que canalizavam todos o seu afecto, a sua protecção e, também, a reprimenda com vista à sua educação. Faz parte da vida. E foi assim durante um bons quatro anos até começarem a nascer os seus primeiros primos, quer do lado paterno quer do lado materno.

Com este ambiente familiar não admira que o Rainho crescesse com curiosidade e apetência pelo conhecimento, pelo saber de experiência feito, a maioria das vezes, mas também das histórias de encantar com fundo moral que serviam de aprendizagem.

Pelo caminhar pelas ruas e campos por entre milharais, vinhas ou olivais. Vendo vacas e burros a pastar, cavalgando burros com albarda ou em pelo ou mesmo em cima de vacas que pela sua mansidão e cansaço não traziam perigo algum.

Aos seis anos, próximo dos sete, altura importante para as crianças cujos progenitores se preocupavam com a sua educação, pois a entrada para a escola não era flexível, teve aquilo que se pode chamar um primeiro grande contratempo na vida.

Em finais de Agosto, fruto da irrequietude e descoberta, comeu umas uvas ainda pouco maduras numa das suas muitas idas ao campo, com os pais ou tios. Desta vez foi com uma tia. Ainda hoje não se sabe a razão absoluta – alguma vez se saberá a razão absoluta? – porque surgiu a doença mas, o que é facto, é que a umas febres intestinais se acumularam a hemorragias sanguíneas constantes e permanentes durante quase três meses.

A entrada na escola que se fazia sempre no dia sete de Outubro não foi possível pois, nessa data estava mais para lá do que para cá e, na aldeia, os mais velhos agoiravam que o menino não sobreviveria a tão maléfica doença.

O pai até era criticado por gastar tanto dinheiro com médicos e medicamentos pois só Deus é que resolveria a situação.

Esta boa gente, daquele tempo, não entendia que Deus é infinitamente misericordioso mas que o ser humano tem que fazer a sua parte. Por isso e pela miséria, muitas crianças morriam sem qualquer tipo de assistência.

Não foi o caso do Rainho pois teve sempre pais e toda a família que rezavam mas iam buscar gelo ao hospital que ficava a doze quilómetros de distância, todos os dias, o médico vinha uma ou duas vezes por semana avaliando o estado de saúde – neste caso, mais de doença – do garoto e assim, os pais ficaram mais pobres de dinheiro mas conseguiram manter a riqueza de salvar o filho.

Com todos estes episódios, longos demais e muito dispendiosos, a entrada na escola foi preterida embora tendo havido prévia conversa do pai com a professora dando-lhe conta da situação, da apreensão, mas da confiança de que, se Deus quisesse, no início do segundo período o rapazinho lá se apresentaria na escola masculina da aldeia.

O médico, homem sábio e sensível, desanimado com os resultados obtidos com a medicação que estava ao seu alcance, decidiu-se, ao fim de dois meses, a aplicar um medicamento novo, muito doloroso, que até aí se coibira de aplicar devido a ser muito doloroso para uma criança, a milagrosa penicilina.

Um dia, já a noite irrompera pela aldeia, virou-se para o pai do rapazinho e disse-lhe: Manuel vou receitar-lhe a última coisa. Se resultar ficamos todos felizes mas se não resultar não virei cá mais. Vai chamar o Frederico.

O Frederico era o barbeiro da família e, como todos os barbeiros da altura, também dava injecções, colocava ventosas, tirava dentes e fazia uns pensos em feridas mais ou menos graves. Homem bom e muito amigo desta família. Já era dos pais e sempre muito dedicado a todos.

O médico virou-se para o Frederico e disse-lhe: tem cuidado que isto é muito doloroso. Eu vou dar-lhe esta primeira injecção para tu veres e tu dás-lhe as restantes duas em dias seguidos. Olha bem e repara como se faz.

À primeira injecção o Rainho nem tugiu nem mugiu, tal era a sua debilidade. Mas foi milagrosa. No dia seguinte já não havia sangue nas fezes e a vontade de comer começou a aparecer. As melhoras eram sensíveis e após a segunda dose o rapaz parecia ter ressuscitado. Queria muito comer. Dizia ter fome constantemente e, como era esquisito, só queria canja e carne de perdiz.

Era época de caça e, com aquela dedicação dada a um filho que se considerava quase perdido, lá se comprava de, quando em quando, uma perdiz e nos restos dos dias tinha de comer as galinhas que eram produto da casa.

O rapaz melhorava a olhos vistos mas, há sempre um mas, o organismo estava profundamente debilitado e começou a inchar por todo o corpo.

A angústia era mais que muita e as decisões a tomar eram de extrema dificuldade.

Os conselhos dos vizinhos e amigos também mereciam ser ouvidos e, sem que nada o fizesse prever, um dia aparece lá em casa uma amiga já entradota com uma senhora desconhecida, toda vestida de preto e com um ar soturno. Era uma daquelas mulheres dadas ao misticismo e bruxarias e que sabia fazer umas rezas, uns truques com azeite, vinagre e outras ervas para expurgar o diabo que o Rainho tinha entranhado, na sua óptica, já se vê.

O Rainho desde criança que sempre fora pouco dado a crendices, talvez por influência do avô paterno e, em vez de colaborar com a benzilheira, ria a bandeiras despregadas deixando a velhota muito constrangida. Vistas as coisas à distância pode dizer-se que tal inchaço era defesa do organismo a uma nova adaptação depois de uma fraqueza quase absoluta.

O tempo veio a demonstrar isso mesmo e não as benzeduras que, diga-se de passagem, ninguém acreditava nessas coisas lá em casa. Nem pais nem filho.

O Outono invernal, como eram todos os Outonos da época, fora frio e chuvoso, por isso o Rainho passou o tempo até ao Natal metido em casa, junto da lareira, entediado, com uma vontade louca de poder brincar e ir para a escola como todos os seus amigos. Estes visitavam-no e davam-lhe novidades da escola. Do que aprendiam, das dificuldades, das lutas entre eles, do medo dos mais velhos, de tudo aquilo que fazia o dia-a-dia de escola.

Se durante as visitas o nosso menino estava alegre e bem-disposto com a saída dos amigos apoderava-se dele uma nostalgia que o prostrava.

Entretanto o pai já lhe tinha comprado uma ardósia e respectivo giz, um caderno de duas linhas, um aparo e um suporte para o mesmo, bem como um pequenino e lindo canivete para poder raspar no papel caso deixasse cair algum borrão, o que era, por assim dizer, quase inevitável e ainda para aguçar o lápis.

A mãe tinha-lhe confeccionado uma bolsa para transportar todas aquelas coisas e mais o livro de leitura que era peça fundamental naquela altura.

Apesar de débil o rapazinho ansiava poder ir para a escola apesar das histórias de pancada e castigos de que esta era, frequentemente, acusada.

Passou o Natal e a Ceia, naquela casa humilde, foi de festa e confraternização com a família alargada, avós paternos e maternos, tios de ambos os lados.

O Rainho pulava de alegria e, como centro de atenções, natural devido às circunstâncias e ao facto de ser o primeiro neto e o primeiro sobrinho, sentia-se com uma vontade férrea de viver e aprender.

Recebeu os dois tostões nas botas que colocou ao lado da lareira e que o Menino Jesus adornou com o seu presente de Natal. Não era uma prenda pessoal. A formação dos pais e dos avós indicava que a prenda recebida em dinheiro deveria ser entregue, também como prenda, ao Menino Jesus quando se fosse beijar o Menino no dia de Natal.

Apesar de saberem bem os rebuçados que o dinheiro poderia comprar era assumido que tal dádiva era uma obrigação e, sem rebuço de nenhuma espécie, fazia-se com muito carinho.

Depois de cantadas a Janeiras em casa de familiares e amigos em dia de Reis, 6 de Janeiro, acabaram-se as festas e chegou o tão ansiado dia de ir, pela primeira vez, para a escola.

A entrada foi muito acarinhada por todos. Colegas do ano, mais velhos e também a professora que o recebera com um beijo na face e a recomendação de que deveria estar sempre com muita atenção, pois perdera o primeiro período de ensinamentos.

A ansiedade, a novidade e a expectativa fizeram daquele dia o dia mais feliz do Rainho. Apesar de as mãos não quererem obedecer à minúcia do contorno das letras e dos números – na época ninguém falava em estimular a motricidade fina – começou ali uma época muito feliz para o Rainho e para todos os seus familiares.

Aprendera depressa. Diariamente passava duas e três lições. Era borrão na escrita mas muito sagaz na aprendizagem das letras, dos números e das contas de aritmética, adição e subtracção simples.

O tempo passa depressa e o rapazinho nas férias da Páscoa já lia bastantes palavras e interiorizara a técnica da leitura pelo que trouxe para casa o dobro dos trabalho que os seus colegas.

Foram cópias, contas, leitura de lições para trás e para a frente daquela lição em que o grosso da turma ia.

Os dias de férias foram para ele dias de trabalho igual como se estivesse na escola. Sentado ao lume com o livro na mão ou a lousa no colo passava a maior parte do tempo a ler em voz alta ou a fazer contas de somar ou subtrair. Um treino indispensável e muito útil para recuperar o atraso na entrada na escola.

O Pai andava sempre a trabalhar no campo. A mãe, em casa, fazia a lida, sempre com algum esforço, pois andava sempre doente e a queixar-se do reumático, além do que não poderia ajudar porque não sabia ler nem escrever. Mas o miúdo desenvencilhava-se razoavelmente.

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