segunda-feira, 6 de janeiro de 2020

Estórias de vida


Decorria a segunda metade do século XIX e os denominados partidos do rotativismo – Regenerador e Progressista – que congregavam gente com valor lutavam, cada um à sua maneira e dentro da sua ideologia, por uma Corte menos numerosa e, também, menos parasitária, luta que se veio a revelar inglória, pelos vícios enraizados e pelas vicissitudes próprias de regimes endeusados. Os Monarcas dos diferentes países, regiões e épocas sempre foram considerados e, eles próprios se consideravam, eleitos de Deus.

Enquanto isso, o Partido Republicano, em embrião, onde pontificavam alguns intelectuais mas onde predominava o Poder subterrâneo da Maçonaria, que numa ligação espúria e incompreensível, com a Carbonária, desenvolviam acções de desestabilização do regime em Portugal.

Serviu, na circunstância, o Ultimato Inglês que exigia a retirada de tropas do território que ligava as colónias de Angola a Moçambique. Bom motivo para o Partido Republicano acusar o Rei de inércia e permissividade e até de humilhação ao poder estrangeiro.

O País que trabalhava e produzia via-se, a cada ano que passava, mais sobrecarregado de impostos e mais espoliado dos seus haveres. Pontificava, igualmente, um desinteresse pela educação das classes populares deixando estas numa posição muito próxima de “servos da gleba”, da Idade Média.

O desenvolvimento do País não arrancava e não se vislumbrava uma nesga de futuro consentâneo com as ambições das classes trabalhadoras e produtivas.

Os Ingleses que, orgulhosos da sua aliança com Portugal, a mais antiga da Europa, sempre nos ajudaram dando-nos “o presunto desde que lhe déssemos o porco”, incrementaram a exploração do vinho do Porto que, em regra, era exportado a troco de alguma maquinaria. Por que, enquanto a Inglaterra tivera a sua Revolução Industrial logo no início do século, tal revolução passou ao lado de Portugal tendo este se mantido como país eminentemente agrícola.

Se estas “minudências” eram sentidas e vividas nos grandes centros urbanos da época – Lisboa, Porto e Coimbra – na chamada “província” labutava-se de Sol a Sol para angariar sustento para as famílias, geralmente, numerosas e satisfazer as obrigações para com o Estado, pagando a décima, as licenças e as taxas aplicadas à terra e à respectiva produção, que era esse o pecúlio que sustentava a dita Corte numerosa e parasitária, nas suas vaidades e no seu esbanjamento.

O fermento da insubordinação estava, intrinsecamente, enraizado no povo trabalhador e sofredor, maioritariamente o povo rural, dada a insipidez da indústria. Não havia uma classe operária como nos países mais desenvolvidos do Norte da Europa nem organizações sindicais que lutassem pela dignificação e valorização do trabalho.

Por essa altura, finais do século, numa aldeia perdida no interior deste país, quem tinha algumas propriedades agrícolas eram considerados “proprietários” por oposição aos que não tinham courelas que se denominavam “trabalhadores”. Porém, bem vistas as coisas, trabalhadores eram todos e as diferenças esbatiam-se e resumiam-se à fartura ou escassez de alimentos, conforme os casos.

O analfabetismo era a praga endémica do País e só alguns privilegiados nascidos no Interior conseguiam a frequência de uma escola, quase sempre menorizada, sem condições e com mestres pouco conhecedores.

Daí a frequência de um curso superior ser uma miragem, para a esmagadora maioria das crianças do sexo masculino e, para o sexo feminino era utopia pensar na frequência escolar.

Por consequência, qualquer rapaz com o exame do ensino primário elementar, era uma pessoa com estatuto diferenciado, sendo mesmo escutado em demandas entre vizinhos e conhecidos.

Na época referida houve duas famílias, uma mais dedicada a artífices e outra à agricultura, vizinhas e amigas desde os tempos dos respectivos avós que tiveram dois rapazes que frequentarem a Escola e conseguiram, com óptimo aproveitamento, fazer o Exame do Ensino Primário Elementar.

O filho dos artífices aspirava dar continuidade à arte de seus pais, agora com mais conhecimentos, mais facilidade nas contas e na feitura de cartas ou obtenção de licenças, quiçá elaborar projectos que pouco mais eram do que cubos ou hexágonos desenhados em traço simples, mas que mostravam as respectivas medições.

Era, por si só, uma ascensão social aspirada, legítima e ambicionada por poucos. Só mesmo os espíritos mais abertos é que tomavam a consciência da importância do saber ler, escrever e contar. Desta feita aqui se demonstra que mesmo nas noites mais escuras pode apareceu um raio de luz ainda que difuso.

O Filho do Proprietário – filho de um segundo matrimónio – pois tanto o pai como a mãe era viúvos quando do enlace matrimonial nasceu de uma mãe que já tinha dois rapazes, um com 16 e outro com 14 anos de idade, fruto do primeiro casamento. Porém, era filho único daquele matrimónio já que o seu pai enviuvara sem ter filhos.

Os meios-irmãos, como vulgarmente se diz, ainda que incorrectamente, pois irmãos são sempre de corpo inteiro, eram ambos analfabetos, nunca frequentaram a escola e foram, desde cedo, habituados aos trabalhos rurais como era prática comum naquele tempo.

Quando este bebé nasceu logo o pai, homem abastado, lhe traçou o destino que era estudar para se tornar advogado.

Não era vulgar numa aldeia haver a percepção da importância de um homem de leis já que as questões eram, em regra, resolvidas pelos designados homens-bons. Porém, o agricultor abastado queria que o seu filho fosse alguém para além da terra e dos trabalhos do campo. Porventura por se ver espoliado por um Estado usurpador do esforço de quem trabalha ou, por uma consciência política mais activa.

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