terça-feira, 29 de agosto de 2023

ESTÓRIAS DE VIDA

 

 

 

PREFÁCIO

Decorria a segunda metade do século XIX e os denominados partidos do rotativismo – Regenerador e Progressista – que congregavam gente com valor, lutavam, cada um à sua maneira e dentro da sua ideologia, por uma Corte menos numerosa e, também, menos parasitária, luta que se veio a revelar inglória, pelos vícios enraizados e pelas vicissitudes próprias de regimes endeusados. Os Monarcas dos diferentes países, regiões e épocas sempre foram considerados e, eles próprios se consideravam, eleitos de Deus.

Enquanto isso, o Partido Republicano, em embrião, onde pontificavam alguns intelectuais, mas onde predominava o Poder subterrâneo da Maçonaria, que numa ligação espúria e incompreensível, com a Carbonária, desenvolviam acções de desestabilização do regime.

Serviu, na circunstância, o Ultimato Inglês que exigia a retirada de tropas do território que ligava as colónias de Angola a Moçambique. Bom motivo para o Partido Republicano acusar o Rei de inércia e permissividade e até de humilhação ao poder estrangeiro.

O País que trabalhava e produzia via-se, a cada ano que passava, mais sobrecarregado de impostos e mais espoliado dos seus haveres. Pontificava, igualmente, um desinteresse pela educação das classes populares deixando estas numa posição muito próxima de “servos da gleba”, da Idade Média.

O desenvolvimento do País não arrancava e não se vislumbrava uma nesga de futuro consentâneo com as ambições das classes trabalhadoras e produtivas.

Os ingleses que, orgulhosos da sua aliança com Portugal, a mais antiga da Europa, sempre nos ajudaram dando-nos “o presunto desde que lhe déssemos o porco”, incrementaram a exploração do vinho do Porto que, em regra, era exportado a troco de alguma maquinaria. Por que, enquanto a Inglaterra tivera a sua Revolução Industrial logo no início do século, tal revolução passou ao lado de Portugal tendo este se mantido como país eminentemente agrícola.

Se estas “minudências” eram sentidas e vividas nos grandes centros urbanos da época – Lisboa, Porto e Coimbra – na chamada “província” labutava-se de Sol a Sol para angariar sustento para as famílias, geralmente, numerosas e satisfazer as obrigações para com o Estado, pagando a décima, as licenças e as taxas aplicadas à terra e à respectiva produção, que era esse o pecúlio que sustentava a dita Corte numerosa e parasitária, nas suas vaidades e no seu esbanjamento.

O fermento da insubordinação estava, intrinsecamente, enraizado no povo trabalhador e sofredor, maioritariamente o povo rural, dada a insipidez da indústria. Não havia uma classe operária como nos países mais desenvolvidos do Norte da Europa nem organizações sindicais que lutassem pela dignificação e valorização do trabalho.

Por essa altura, finais do século, numa aldeia perdida no interior deste país, quem tinha algumas propriedades agrícolas eram considerados “proprietários” por oposição aos que não tinham courelas que se denominavam “trabalhadores”. Porém, bem vistas as coisas, trabalhadores eram todos e as diferenças esbatiam-se e resumiam-se à fartura ou escassez de alimentos, conforme os casos.

O analfabetismo era a praga endémica do País e só alguns privilegiados nascidos no Interior conseguiam a frequência de uma escola, quase sempre menorizada, sem condições e com mestres pouco conhecedores.

Daí a frequência de um curso superior ser uma miragem, para a esmagadora maioria das crianças do sexo masculino e, para o sexo feminino era utopia pensar na frequência escolar.

Por consequência, qualquer rapaz com o exame do ensino primário elementar era uma pessoa com estatuto diferenciado, sendo mesmo escutado em demandas entre vizinhos e conhecidos.

Na época referida houve duas famílias, uma mais dedicada a artífices e outra à agricultura, vizinhas e amigas desde os tempos dos respectivos avós que tinham dois rapazes a frequentarem a Escola e conseguiram, com óptimo aproveitamento, fazer o Exame do Ensino Primário Elementar.

O filho dos artífices aspirava dar continuidade à arte de seus pais, agora com mais conhecimentos, mais facilidade nas contas e na feitura de cartas ou obtenção de licenças, quiçá elaborar projectos que pouco mais eram do que cubos ou hexágonos desenhados em traço simples, mas que mostravam as respectivas medições.

Era, por si só, uma ascensão social aspirada, legítima e ambicionada por poucos. Só mesmo os espíritos mais abertos é que tomavam a consciência da importância do saber ler, escrever e contar. Desta feita aqui se demonstra que mesmo nas noites mais escuras pode apareceu um raio de luz ainda que difuso.

O Filho do Proprietário – filho de um segundo matrimónio – pois tanto o pai como a mãe eram viúvos quando do enlace matrimonial nasceu de uma mãe que já tinha dois rapazes, um com 10 e outro com 12 anos de idade, fruto do primeiro casamento. Porém, era filho único daquele matrimónio já que o seu pai enviuvara sem ter filhos.

Os meios-irmãos, como vulgarmente se diz, ainda que incorrectamente, pois irmãos são sempre de corpo inteiro, eram ambos analfabetos, nunca frequentaram a escola e foram, desde cedo, habituados aos trabalhos rurais como era prática comum naquele tempo.

Quando este bebé nasceu, logo o pai, homem abastado, lhe traçou o destino que era estudar para se tornar advogado.

Não era vulgar numa aldeia haver a percepção da importância de um homem de leis, já que as questões eram, em regra, resolvidas pelos designados homens-bons. Porém, o agricultor abastado queria que o seu filho fosse alguém, para além da terra e dos trabalhos do campo. Porventura por se ver espoliado por um Estado usurpador do esforço de quem trabalha ou, por uma consciência política mais activa.

 

Capítulo 1

 

O filho dos artífices Zé vinha de uma família tradicional, com as características inerentes e, apesar de não serem proprietários de grandes courelas, tinham algo de seu e casa própria para viver o que, em bom rigor, era uma imensa vantagem, por não ter de pagar renda, numa época em que o dinheiro era muito escasso e pouco circulava.

Os pais eram monárquicos de pensamento, mais por influência da amiga Ana Preta, viúva, rica, poderosa e muito respeitada na aldeia, do que por convicção política ou conhecimentos que pudessem influir na opção. Eram monárquicos, como poderiam ser outra coisa qualquer, mas havia uma certa predilecção pelo Rei, pela rainha e pelos príncipes, já que mais não fosse, pelo respeito pela hierarquia. Sim, porque o respeito era sagrado naquela casa e naquele agregado familiar. Um respeito muito próximo da religião que professavam – a católica – já se vê, onde a ordem não se discute, acata-se.

Aqui toda a família puxa para o mesmo lado na procura do bem comum e na harmonia familiar. Mesmo o Zé, sendo o mais habilitado academicamente, não deixava de estar atento aos ensinamentos dos seus maiores, quer quanto às tradições, quer relativamente aos ofícios, quer à opção política monárquica que vinha de seus pais.

Era uma família que preservava a cultura popular e tradicional, desde as cantigas, às récitas em que participava amiudadamente. Conhecia todas as cantigas antigas, quase sempre relacionadas com a vida quotidiana ou com hipotéticos, factos impressionantes e muito sentimentais. Nos seus momentos de lazer, que eram poucos, dedicavam-se ao teatro e às cantigas.

O Zé sempre pautou a sua vida por um esforço de aprendizagem e aperfeiçoamento da arte de pedreiro e, ainda muito jovem, já aplicava, ainda que empiricamente, o teorema de Pitágoras, para a implantação de uma nova habitação, casa de campo ou palheiro, que lhe fosse encomendado. E trabalho era coisa que não faltava, pois, as famílias eram sempre numerosas e com necessidades de habitações, mesmo pobres, mas que albergassem todo o agregado familiar.

Chegada a idade, na época parecia haver idade para tudo, casou com uma mulher trabalhadora, a Teresa, que além de cuidar da horta se esforçava por manter a casa limpa a roupa asseada e os filhos acarinhados.

O Zé nas suas empreitadas trabalhava de sol a sol, mas, no sábado à noite, lá vinha com o dinheirito da semana para casa. De salientar que, na época, estamos a falar dos primeiros anos do século passado, ainda antes da implantação da República, dinheiro corrente era coisa rara. As transacções por serviços ou mercadorias era, em regra, em géneros, troca por troca, pelo que haver dinheiro corrente era uma mais-valia para qualquer família.

Começam a nascer os filhos sendo os dois primeiros rapazes, a seguir duas raparigas, mais dois rapazes e a última era uma rapariga. Sete filhos era um padrão generalizado havendo quem tivesse muitos mais e também que tivesse menos, já se vê.

Era uma família alegre que vivia em harmonia e, mesmo quando o Zé tomava uns copos a mais, ao contrário do que era comum, não havia zaragatas havia cantorias. Vozes bonitas, dolentes, e canções apropriadas a que se juntavam até os tios, primos e avós. Era, realmente, uma casa onde a alegria perdurou até aos cinquenta anos da Teresa, altura em que partiu uma perna e, por falta de assistência médica – médicos era coisa que não havia – nunca mais recuperou nem saiu da cama até que faleceu passados dois anos.

A vida nunca mais foi a mesma e o Zé, apesar de contar com a ajuda das filhas mais velhas para a gerência da casa, nunca mais teve alegria e assim, como candeia que esgota o azeite, também ele se deixou morrer aos bocadinhos e, com apenas sessenta e três anos de idade finou-se de vez, tendo nessa altura três filhos casados e um solteirão – por já ter passado a idade normal de casar – e os restantes três fizeram-se à vida e foram constituindo as suas próprias famílias logo que atingiram a idade considerada adulta.

Desta família nasceu uma das protagonistas desta história que viria a ser a mãe daquele menino, filho único, que aqui pretende escrever, para memória futura, algumas estórias de vida. Falamos da Adozinda.


Capítulo 2

 

Já o filho do proprietário, o Ricardo nascera em berço de ouro, pois o pai era dono de muitas e grandes parcelas de terreno, com olivais, vinhas e terras cerealíferas. O mesmo não se pode dizer da mãe que, casara por amizade, eventualmente, mas ainda mais por interesse, pois era a forma de criar os seus dois filhos do primeiro matrimónio que, com o falecimento do primeiro marido perdera algum do seu capital e vivia com dificuldades económicas.

A mãe do Ricardo era mulher de casa e nada dada a trabalho do campo. Era vaidosa e o seu orgulho levava-a a ser considerada uma mulher um tanto impertinente e, para sustentar todo esse capricho nada melhor do que usar a fortuna do segundo marido. Até os filhos do primeiro matrimónio, o Manel e o José se sentiram com direito a benesses a que não estavam habituados. Desde crianças que ajudavam o pai no amanho das pequenas e raras propriedades e até trabalhavam à jorna para quem lhe pagasse os pouquíssimos escudos diários. Agora viam neste casamento da mãe a oportunidade de melhorar o seu capital económico sem esforço.

Daí a tornarem-se briguentos e relaxados foi um passo muito pequeno. O padrasto bem os admoestava para o tipo de comportamento pouco consentâneo com o modo de vida que ele próprio sempre tivera, mas eles eram rebeldes e pouco dados a ouvir bons conselhos. Eram aquilo a que se chamava uns bons bardinos ou valdevinos.

O Ricardo, apesar desta convivência malévola, sempre se identificou mais com o pai do que com a mãe, apesar da adoração que nutria por esta. Daí ter recebido valores éticos e morais de elevado sentido cívico.

Desde pequeno que frequentou a escola e tal como aquele que viria, muito mais tarde a ser seu compadre pelo casamento dos filhos, o Zé também ele fez a instrução primária com elevado aproveitamento. O professor até dizia que nunca teve um aluno tão inteligente como ele.

Crescia assim na abundância económica e no saber, através da aprendizagem das letras e da aritmética, vendo o pai a gerir com sageza as propriedades, com sobriedade e bom senso, o que lhe permitia aumentar cada vez mais o seu pecúlio.

Desta forma e por vontade expressa do pai o Ricardo logo que terminasse o ensino primário deveria rumar à capital de distrito para ingressar no Liceu e prosseguir os seus estudos que, almejava, serem de nível superior.

Mas o homem põe e Deus dispõe. Sem que nada o fizesse prever andava o Ricardo no último ano do ensino primário quando o pai faleceu, de repente, de causas desconhecidas, aliás como era comum e muito generalizado na época.

Apesar deste grande contratempo na vida do Ricardo, da mãe e dos meios-irmãos, a vontade do pai, que coincidia com a do filho, fora respeitada numa primeira fase.

Tinha-se, entretanto, implantado a República e o País vivia numa situação de precariedade relativamente a orientações políticas. Tudo contribuía para a instabilidade geral e também económica.

Na casa do Ricardo tal agrava-se, por manifesta inépcia da sua mãe e dos filhos mais velhos já, homens feitos, mas madraços e brigões quanto baste.

Como quem o seu não vê o diabo lho leva, como diz o povo, a fortuna que o pai do Ricardo deixara só para si, pois os casamentos em segundas núpcias faziam-se com separação geral de bens, era a Lei Geral, começou a ser delapidada pela mãe e pelos meios-irmãos com a ajuda, está bem de ver, do aumento da despesa que este fazia, por já estar matriculado e a frequentar o Liceu. Era preciso pagar a pensão, os livros e as demais necessidades de um rapaz que tinha uma vontade férrea de aprender sempre mais e mais.

Só foi preciso um trimestre para que a mãe do Ricardo, quando este regressou para passar as férias de Natal, influenciada pelos filhos mais velhos, o convencesse a deixar de estudar porque as despesas eram demasiadas. O Ricardo gostava muito da mãe e, mesmo contrariado, não teve coragem de dizer a esta, que gastava do que era dele e de mais ninguém e, por isso queria e iria continuar a estudar.

Foram estes o seu primeiro momento de fraqueza e o princípio da sua desgraça.

O trabalho do campo não o seduzia, por isso passava os dias a discutir com os mais velhos a situação política da Nação, em plena efervescência da Primeira República e os irmãos e a mãe continuaram na sua senda dilapidatária do património herdado.

Desde cedo começou nos derriços namorisqueiros. Em simultâneo, nas demandas judiciais de vizinhos e amigos que, não sabendo ler nem escrever se viam, por força de um pedaço de terra, dum comoro ou de uma passagem, envolvidos nessas demandas e era ele quem ajudava a resolver as questões, sempre com bom senso e sentido de Justiça, diga-se em abono da verdade, mas tal custava-lhe dinheiro e tempo, porque nada fazia com interesse pessoal e era sempre pródigo no pagamento de despesas que a outros cabiam.

As consequências não se fizeram esperar e, como é bom de ver, lá vinha a necessidade de vender um prédio, hoje, outro amanhã e assim sucessivamente.

Como era um rapaz de uma cultura intelectual muito acima da média dos rapazes do seu tempo e como era de uma inteligência prodigiosa perdia-se a fazer poesia, a ler o jornal que vinha para a Junta de Freguesia e a demonstrar destrezas e capacidades técnicas e também de força para levar de vencida, trabalhos duros ou simples demonstrações de alarde, de valentia.

Chegada a idade pouca madura ainda, mas impetuosa, de uma juventude passada em busca do tempo perdido e nunca achado, começaram os namoricos e aí começou a rabiar uma rapariga mais velha dois anos de uma beleza invulgar, como fora tudo na sua vida, até então.

A sua Maria – a maioria das raparigas tinham por nome próprio Maria - passou então a ser namoro sério e permanente ainda que com o descontentamento de sua mãe.

Apesar das contrariedades, o namoro era sério e, como diz o povo “o lume ao pé da estopa o diabo lhe assopra” a Maria engravidou.

O Ricardo, apesar da pouca idade, dezassete anos, quis assumir a sua responsabilidade e propôs o imediato casamento, mas, sua mãe que, como já se deu a entender não era flor que se cheirasse, bateu o pé e não deixou casar o seu filho e seu amparo económico, sem contrapartidas. Desta feita exigiu aos pais da Maria um dote equiparado ao pecúlio de que o Ricardo era detentor.

As pessoas justas e não ambiciosas veriam nesta proposta uma afronta, um insulto, que o era de facto. Contrariava em absoluto, a vontade do Ricardo, mas a Lei estava do lado da sua mãe. O Casamento só poderia consumar-se à maioridade que era, à época, de vinte e um, anos. Logo, contra factos não há argumentos, o Ricardo não teve mais hipóteses do que aquelas que a sua mãe ditava.

Para os pais de Maria era um problema bicudo pois tinham mais quatro filhos e cederem à chantagem da mãe do Ricardo era, por assim dizer, deserdar os restantes pois, tudo o que possuía, não era mais do que o que tinha o Ricardo. Ficar com uma filha solteira, com um filho nos braços, era uma desonra e “prato cheio” para a coscuvilhice do povaréu.

Enquanto se decidiu a situação o Ricardo manteve-se firme na sua posição e na assunção da sua responsabilidade, mas, mesmo assim, chegou o fim do tempo e nasceu o primeiro filho, que na circunstância era uma filha sem que o casamento se desse. Mas como o tempo até à maioridade do Ricardo ainda era longo, os pais da Maria não tiverem outro remédio que não fosse ceder à chantagem e doarem o que tinham e não tinham à Maria, para que o casamento se fizesse. Tal aconteceu, mas criou, desde logo, uma animosidade em relação ao Ricardo que se estendia à sua mãe, mas que se centrava, principalmente, neste.

Fez-se o casamento e passados dois anos nasceu um rapaz e a vida foi tomando o seu rumo. A Maria era extremamente trabalhadora e esforçada. Uma mãe extremosa e o Ricardo continuou a sua vida de boémio e, por um motivo fútil, lá vendia um prédio começando, já se vê, pelos do dote da Maria que, um a um, voltaram aos primitivos donos, embora com um sacrifício tremendo dos pais da Maria.

Acrescer a este tipo de vida nada consentânea com a projectada pelo seu pai, o Ricardo tornou-se um marido e um pai com bastantes defeitos. Ao contrário daquele que viria a ser seu compadre, quando se embebedava punha em rebuliço toda a casa e toda a família. Chegava mesmo a agredir a esposa que, com a sua admoestação, apenas queria viver uma vida mais desafogada e mais feliz. Aos filhos nunca se preocupou em proporcionar-lhes o mesmo privilégio que o próprio tivera e nunca os deixou frequentar a escola. Porém, jamais lhes batia.

O tempo não pára e o Ricardo viu-se chamado a cumprir o serviço militar obrigatório quando completara vinte anos de idade – fazia anos em vinte e nove de Dezembro – e a incorporação era em Janeiro.

Mais um contratempo pois esse serviço militar não trazia valor que se visse e o “pré” – assim se designava o salário de um recruta – não dava sequer para os cigarros quanto mais para as viagens para vir ver a família.

Acresce o facto de, num exército de analfabetos, a incorporação de um mancebo com a quarta classe ser caso raro. O conhecimento tem, em regra, sede de conhecimento e, como tal, o Ricardo viu-se, sem perceber muito bem porquê, rodeado de oficiais subalternos e sargentos milicianos que gostavam de conversar com ele e passar umas noitadas na sua companhia e tudo isso custava dinheiro. Muito dinheiro, principalmente para quem não ganhava nada.

Seguia-se, como é expectável, a carta para a Maria para que vendesse mais uma propriedade para que ele pudesse satisfazer as necessidades de recruta com aspirações ao oficialato das Forças Armadas.

É evidente que, quando acabou a recruta, o Ricardo foi proposto pelo Comandante do quartel para aceder ao posto de sargento, posto que este, orgulhosa, mas insensatamente, recusou.

Passou assim um ano sem rendimentos, com despesas acrescidas já que, nada auferindo, necessitava de provir aos seus gastos e às despesas da sua mulher e dos seus dois filhos. Mais, a sua Maria ainda se desunhava a fazer, semanalmente, uma cesta com as melhores iguarias da época para que o seu amado não passasse privações alimentares ou menores mimos.

Havia na terra, um sargento lateiro, que não sendo da aldeia ali tinha casado e estava no mesmo quartel, bem dizia à Maria que o Ricardo não precisava de nada e que passava o tempo de folga na estroinice com os oficiais, mais por despeito do que por pena, já que não morria de amores pelo Ricardo e via neste alguém que, sendo inferior hierarquicamente, era muito superior a si perante o olhar da hierarquia militar. Desta feita, mais e mais prédios era necessário vender para suprir a falta de rendimentos mensais.

Findo o serviço militar e também terminada a Primeira Grande Guerra Mundial o João regressa ao seu viver civil, com mais vícios e mais despesas do que aquelas que poderia suprir.

Os filhos começaram a crescer em número e em idade o que acrescentava dificuldades económicas à vida do casal.

Por sua vez a mãe do Ricardo e os seus irmãos não se cansavam de rastejar aos seus pés pedindo ajuda para fazerem face às dificuldades que cada vez mais iam tendo. O seu coração bondoso não regateava essa ajuda o que acrescentava dificuldades às que já sentia na sua própria casa.

Durante dez anos assim viveu, em constante sobressalto da despesa ser superior à receita e nessa contabilidade do deve e haver ter de cumprir com a sua palavra de honra – que sempre cumpriu religiosamente, não importando o sacrifício que isso representava – e assim os prédios, finitos como tudo o que é terreno e matéria, iam-se esvaindo por entre os dedos o que, num círculo vicioso, constituía um decréscimo de rendimento à medida que aumentava a despesa.

Aventureiro como sempre fora. Destemido bastante. Resolveu ir para a França com toda a sua família já que este País, que fora tão drasticamente atingido durante a Guerra e dizimado pelos alemães, necessitava de se reconstruir e não tinha mão-de-obra suficiente para tal.

Se bem o pensou melhor o fez e, de um dia para o outro, pôs pés a caminho levando consigo sua mulher e os quatro filhos que já constituíam a sua prole.

Arredores de Tours fixou residência com os seus e começou a trabalhar na construção da linha férrea que haveria de ser a via que liga Paris aos países do Sul, Espanha e Portugal.

O trabalho era duro, mas a recompensa monetária satisfatória. Dava para o sustento da família e ainda para amealhar uns trocos.

O filho mais velho, rapaz – sim porque as raparigas só podiam aprender a ser boas donas de casa - o Manuel, que nunca teve tempo de ser menino, como dizia o Soeiro, fora, também ele, empregado naquele duro trabalho, começando por distribuir água pelos trabalhadores, levando um cântaro às costas, com o peso do qual, mal se podia ter nas pernas. E ganhava dinheiro. E, com esse dinheiro, ajudava a compor o orçamento familiar.

Tudo parecia correr de feição e a vida do Ricardo e da família modificou-se profundamente.

Mas o nosso homem não foi fadado para ser submisso. Ter um patrão. Ter horários. As circunstâncias também nunca ajudaram a que tais hábitos fossem adquiridos. Talvez a frustração de não ter seguido uma carreira académica como fora seu desejo de menino e desejo de seu pai.

A Maria, sua mulher engravidara de mais um rebento, o que até era normal numa época de famílias numerosas. Os rumores de uma nova Guerra Mundial, a segunda daquele século, aproximavam-se a passos largos e a França tinha um exército de frentes de batalha, que designava por Legião Estrangeira, para o qual mobilizavam os não nacionais em primeiro e quase exclusivo lugar.

A inquietude e insensatez do Ricardo viram, nestas circunstâncias, bons motivos para mandar a mulher e os filhos para Portugal e para a sua aldeia natal. Justificando – se é que precisasse de justificação – que não queria um filho francês e que não se sujeitaria a uma, eventual, mobilização para a Legião Estrangeira.

Se bem o pensou melhor o executou e, num de repente, lá veio a família para Portugal com a promessa de que ou ele regressaria também, mais tarde ou, em alternativa, após o nascimento do bebé, voltariam todos para a França caso os rumores da guerra não se concretizassem.

Para mal de toda a família e de si próprio a guerra era, cada vez mais, inevitável e o Ricardo, livre de peias, todo o dinheiro que ganhava e que era suficiente para sustentar toda a família, passados poucos meses não chegava para as suas despesas e, como um fado, um destino inexorável, lá escreveu mais uma carta à Maria dizendo-lhe que vendesse mais uma propriedade e lhe mandasse o dinheiro que ele queria, também, regressar.

Toda a vida foi assim. Homem de carácter. Vertical, honesto, com valores e com princípios, mas sem organização e visão prospectiva.

Talvez a maior inteligência da aldeia, na época, não foi capaz de manter – já não se pedia que aumentasse o património, a exemplo do que fizeram os seus maiores, pai e avô – ainda o delapidou quase todo, deixando os filhos mais velhos, sem a habilitação mínima, o ensino primário complementar e pobres de bens materiais. Todos eram analfabetos literais até constituírem vida própria e independente. Depois disso todos eles fizeram a quarta classe, elemento fundamental para almejarem uma vida fora do campo, para si e para os seus filhos.

A Maria, como também era apanágio na altura não tinha voz na matéria e limitava-se a trabalhar desalmadamente para que aos filhos não faltasse o que comer nem o mínimo de agasalho. Para além disso sofria as dores da maternidade a cada dois anos. Desta forma, não fora a morte à nascença de três crianças – como era frequente no Portugal de antanho - e o rancho de filhos seria de onze filhos. Assim foram oito que, Graças a Deus, viveram todos até à bonita idade de cerca dos noventa anos.

História triste de quem, por vicissitudes várias, muitas delas externas à vontade do próprio, fizeram deste homem fora do vulgar, sabedor, poeta, cultíssimo, um pai que não soube cuidar dos seus e foram estes, com a educação que lhes transmitiu, os valores que lhes apontou, que após a morte prematura da mãe, com apenas sessenta e dois anos de idade, o sustentaram e lhe deram a qualidade de vida até à sua morte, com setenta e dois anos, que nunca tivera até então.

 

Capítulo 3

 

A Adozinda, a mais velha filha do casal Teresa e Zé das três raparigas que tiveram, ficara órfã de mãe com, apenas 19 anos de idade, e tivera de ser a dona de uma casa que tinha o pai, dois irmãos mais velhos (rapazes), quatro irmãos mais novos, (dois rapazes e duas raparigas) para quem era preciso cozer pão, remendar calças, camisas e vestidos, cozer panelas de sopa e outros pratos para alimentar aquelas bocas e a sua própria.

Também ela, a exemplo do que acontecera com aquele que viria a ser seu marido, não aprendera a ler nem escrever apesar do seu pai também ser um homem com a 4ª classe, habilitação académica reduzida, mas que era uma mais-valia, numa época em que noventa por cento das crianças eram analfabetas num Portugal cinzento, depressivo, pobre e subdesenvolvido.

Porque as raparigas não necessitavam de saber ler nem escrever – independentemente da classe social de que eram oriundas – segundo a cultura daquele tempo. As raparigas teriam de aprender a ser boas donas de casa, boas mães e muito, muito piedosas.

A Adozinda tivera de tratar da mãe que ficara acamada por causa de uma perna partida, sem qualquer tratamento médico, durante cerca de dez anos e depois tratar de todo o lar após o seu falecimento. Daí que, após ter feito os vinte e um anos, que a Lei obrigava a cumprir, para se ser de maior idade, logo casou com o Manuel, mal este passou à disponibilidade do Serviço Militar obrigatório, já com vinte e dois anos, pois ele era mais velho um ano que ela.

Foi sempre boa filha, boa esposa e melhor mãe. Felizmente para ela, segundo o seu filho único, sua nora e suas duas netas viveu, principalmente depois de casada, uma vida muito feliz, longa, até aos 95 anos de idade.

Conheceu outros países, nomeadamente Angola onde viveu cerca de 20 anos, trabalhou muito, mas ganhou o estatuto de mulher independente, com ordenado ao fim do mês e sempre junto do marido e sob a protecção deste.

Teve um casamento muito feliz que durou até à morte do marido que ela amava e ele a estremava que durou 66 anos completos. Ainda viveu seis anos viúva junto do filho e da nora.

Fora sempre uma mulher prendada. Desde pequena aprendeu as lides da casa onde era preciso cozer o próprio pão, semanalmente, para alimentar as muitas bocas que havia no lar de seu pai.

Nas horas vagas e com uma amiga que ela considerava uma irmã, que tinha uma máquina de costura, aprendeu a costurar e a fazer a sua própria roupa.

Era uma cozinheira de mão cheia. Nunca foi mulher dada ao trabalho do campo.


Capítulo 4

 

O Manuel, como já se referiu, nunca foi menino. Desde muito pequeno teve que guardar vaca e burro, lavrar, sachar, cavar, e andar na frente da junta de vacas do avô materno – aquele que teve que doar uma pequena fortuna para que a mãe não fosse, durante muito tempo, mãe solteira e que depois o genro delapidou em pouco mais de 15 anos – fora, por necessidade própria, também, já que partira uma perna num dos carretos de granito que era usual fazer-se para a construção de habitações, quem pediu à filha que lhe mandasse para sua casa o filho mais velho, rapaz, para o ajudar na lavoura das terras que precisava de amanhar.

Desta feita fora bom para o avô e fora muito melhor para o neto pois, apesar do duro trabalho para um rapaz de 14 anos, ao mesmo tempo proporcionou-lhe aprendizagens muito úteis no trabalho do campo, para além de ter uma boa alimentação e vestuário e ainda alguns trocos que a avó lhe dava aos domingos para poder conviver, de igual para igual, com os rapazes do seu tempo.

Nesta actividade o Manuel ganhou, em dois anos de trabalho, a experiência e o saber que nunca tinha adquirido junto dos pais. O avô tinha a paciência e o carinho de com ele conversar e lhe dar os conselhos úteis para uma vida simples e despretensiosa, mas com o essencial.

Aprendeu a fazer tudo o que era necessário para desenvolver uma actividade agrícola por conta própria. Fez-se homem, por assim dizer. Começou a pensar como tal e a gizar o que queria para o seu futuro. Tornou-se forte, física e mentalmente. Deixou de temer o que quer que fosse. Ainda teve tempo para, com um deficiente físico, seu familiar afastado, aprender as primeiras letras. Poucas, já se vê, pela falta de tempo e pela ausência de pedagogia por parte do mestre. Mas, mesmo assim, veio a demonstrar-se ser uma preciosa ajuda.

Com 18 anos voltou à casa paterna, cada vez mais desregrada e mais pobre. O pai cada vez prolixo nas suas vaidades de menino bem-nascido passou a ser beberrão e quezilento para com a família. Homem feito – na época amadurecia-se muito depressa – trabalhava diariamente para quem lhe dava trabalho e apresentava aos pais a jorna semanal sem receber qualquer gesto de boa vontade ou de recompensa.

Para satisfazer as suas necessidades mais básicas, como frequentar um baile onde era preciso comparticipar para pagar ao tocador ou outras de igual teor – sim porque vícios nunca tivera. Nunca fumou nem bebeu – ajustava (contratar por ajuste) o cavar de vinhas ou outros trabalhos sazonais que fazia de madrugada para ter uns cobres que lhe permitissem viver de igual para igual com os outros rapazes do seu tempo.

Um ano depois pediu a um amigo de seu pai – contrabandista encartado, como se costuma dizer – para o deixar ir com ele até à Espanha para adquirir produtos que poderiam render alguma coisa deste lado.

Assim começou por comprar uns cortes de pana – assim se designava a bombazina de hoje – que servia para a confecção de calças para homem, uns tecidos de seda para as blusas das mulheres, uns quilos de prego e outros artigos, baratos no país vizinho e muito caros cá, levando para troca alguns pães de centeio, muito apreciados lá, em época de fome larvar, por causa da Guerra Civil.

O risco era grande. Tanto os carabineiros, polícia civil espanhola, como os guardas-fiscais portugueses patrulhavam a fronteira palmo a palmo, vinte e quatro horas por dia o que implicava comportamento ardiloso pelos contrabandistas. O trabalho penoso. A distância longa, cerca de 30 quilómetros para cada lado, percorridos a pé por serranias, ribeiros e floresta. Todo este esforço era feito desde a madrugada de sábado para domingo até à madrugada de domingo para segunda pois a jorna de trabalho no campo para ganhar o pão para casa dos pais não se compadecia com outros horários. A venda dos produtos era depois feita pelas irmãs ou pela namorada para, assim, amealhar uns tostões que lhe permitissem um reduzido pé-de-meia para quando chegasse a altura de casar.

Assim foi até ser incorporado no exército, na arma de cavalaria. Porque os lucros eram reduzidos o capital pouco aumentava. Mas os pobres sempre se contentaram com pouco.

Um ano de tropa com dificuldades várias, poucas oportunidades de ir à terra matar saudades da família e da namorada. Um pré (soldo) miserável que não dava sequer para pagar transportes que também não havia. Vida difícil, mas de intensa aprendizagem. Valores éticos morais. Disciplina, rigor.

Episódios variados de entreajuda, mas também de desilusão. Exigências da casa paterna, sofrimento materno, pai austero e rigoroso. Pouca conversa, menos diálogo, enfim, saturação.

Grande e verdadeiro amigo o irmão, com menos quatro anos que ele, o José. Outro sacrificado que teve quer ser o apoio da casa enquanto ele esteve no serviço militar. Companheiro de trabalhos e empreitadas após ter terminado dever patriótico.

Cumprido o serviço militar obrigatório era tempo de se fazer à vida. Casar, ter filhos, constituir uma família. Era assim com todos. Era o costume. A cultura. A tradição.

E, seguindo a máxima, de que quem casa quer casa, procurou uma casa de renda muito económica para poder realizar o seu sonho de casar.

Tal aconteceu no dia trinta de Setembro de mil novecentos e quarenta e dois.

Como prenda de casamento recebeu vinte escudos em dinheiro e algumas mantas “farrapeiras” para se agasalhar. Da casa dos pais trouxe apenas o fato do casamento e umas botas mandadas fazer ao sapateiro local. Trouxe também exemplos do que não se devia fazer como chefe de família.


Capítulo 5

 

Deste casal nasceu o Rainho, um bebé rechonchudo que quase ia matando a mãe e a si próprio no acto do nascimento.

Nascia-se em casa e morria-se em casa. Era o que tinha de ser. Seria o que Deus quisesse.

Não havia recursos da medicina nem dinheiro para suportar o seu custo, mesmo que houvesse.

Ao fim de 24 horas em trabalho de parto lá nasce o rapaz que logo ali fez do pai um sacrificado, um abnegado, um altruísta, um ser superior. A si próprio prometeu nunca mais sujeitar a mulher a tais dores e tal sofrimento. Condicionou a sua virilidade à relação sexual contida para evitar que houvesse mais gravidezes. Não havia pílula, nem preservativo e todo e qualquer método contraceptivo teria de ser natural. Abençoado pela Igreja e pela Fé que professava, mas também pelo imperativo amoroso de poupar a mulher ao sofrimento.

Assim, o Rainho foi filho único por opção e determinação do pai e consentimento da mãe.      

Desta feita o rapaz cresceu num ninho de amor altamente protector, acolhedor, inteiro, só para si. Com os mimos próprios da época. Carinho em abundância. Exemplos de hombridade, honestidade, honra, palavra, ética, moral em excesso – perdão em excesso não, porque nunca há excesso destes valores – mas caracteriza a dimensão que representavam na vida daquela família.

O respeito pela família, pelos outros, pelos mais velhos, pelos superiores, pela verdade, pela intransigência no seu cumprimento, fora sempre o pão nosso de cada dia desta criança, adolescente, jovem e adulto.

Se eram estes os princípios dos pais não o eram menos os dos avós, maternos e paternos, dos padrinhos, dos tios e de toda a família. Da própria bisavó paterna que ainda conheceu e com quem conviveu até aos dez anos de idade.

Mas os mimos ficavam-se por aqui. Não havia dinheiro para brinquedos logo, não havia brinquedos. Melhor, houve sempre alguns feitos manualmente pelo pai, sempre relacionados com o trabalho. Um mangual, por exemplo, com todos os requintes do mangual do adulto, com correias de couro e cravelhas, tudo feito ao pormenor. Peça indispensável à malha do trigo e do centeio, produtos endógenos e indispensáveis à alimentação numa época de grande crise económica e financeira para além das consequências de uma segunda Guerra Mundial que ainda ia a meio quando ele nasceu, mas cujos efeitos se prolongaram por mais duas décadas.

Colo e reprimendas também foram mais que muitas. Dos pais, dos avós e dos tios. Sim, porque sendo o primeiro neto e o primeiro sobrinho era para ele que canalizavam todos o seu afecto, a sua protecção e, também, a reprimenda com vista à sua educação. Faz parte da vida. E foi assim durante uns bons quatro anos até começarem a nascer os seus primeiros primos, quer do lado paterno quer do lado materno.

Com este ambiente familiar não admira que o Rainho crescesse com curiosidade e apetência pelo conhecimento, pelo saber de experiência feito, a maioria das vezes, mas também das histórias de encantar com fundo moral que serviam de aprendizagem.

Pelo caminhar pelas ruas e campos por entre milharais, vinhas ou olivais. Vendo vacas e burros a pastar, cavalgando burros com albarda ou em pelo ou mesmo em cima de vacas que pela sua mansidão e cansaço não traziam perigo algum.

Aos seis anos, próximo dos sete, altura importante para as crianças cujos progenitores se preocupavam com a sua educação, pois a entrada para a escola não era flexível, teve aquilo que se pode chamar um primeiro grande contratempo na vida.

Em finais de Agosto, fruto da irrequietude e descoberta, comeu umas uvas ainda pouco maduras numa das suas muitas idas ao campo, com os pais ou tios. Desta vez foi com uma tia, a tia Paulina. Ainda hoje não se sabe a razão absoluta – alguma vez se saberá a razão absoluta? – Porque surgiu a doença, mas, o que é facto, é que a umas febres intestinais se acumularam a hemorragias sanguíneas constantes e permanentes durante quase três meses.

A entrada na escola que se fazia sempre no dia sete de Outubro não foi possível pois, nessa data estava mais para lá do que para cá e, na aldeia, os mais velhos agoiravam que o menino não sobreviveria a tão maléfica doença.

O pai até era criticado por gastar tanto dinheiro com médicos e medicamentos, pois só Deus é que resolveria a situação.

Esta boa gente, daquele tempo, não entendia que Deus é infinitamente misericordioso, mas que o ser humano tem de fazer a sua parte. Por isso e pela miséria, muitas crianças morriam sem qualquer tipo de assistência.

Não foi o caso do Rainho, pois teve sempre pais e toda a família que rezavam, mas iam buscar gelo ao hospital que ficava a doze quilómetros de distância, todos os dias, o médico vinha uma ou duas vezes por semana avaliando o estado de saúde – neste caso, mais de doença – do garoto e assim, os pais ficaram mais pobres de dinheiro, mas conseguiram manter a riqueza de salvar o filho.

Com todos estes episódios, longos demais e muito dispendiosos, a entrada na escola foi preterida embora tendo havido prévia conversa do pai com a professora dando-lhe conta da situação, da apreensão, mas da confiança de que, se Deus quisesse, no início do segundo período o rapazinho lá se apresentaria na escola masculina da aldeia.

O médico, homem sábio e sensível, desanimado com os resultados obtidos com a medicação que estava ao seu alcance, decidiu-se, ao fim de dois meses, a aplicar um medicamento novo, muito doloroso, que até aí se coibira de aplicar devido a ser muito doloroso para uma criança, a milagrosa penicilina.

Um dia, já a noite irrompera pela aldeia, virou-se para o pai do rapazinho e disse-lhe: Manuel vou receitar-lhe a última coisa. Se resultar ficamos todos felizes, mas se não resultar não virei cá mais. Vai chamar o Frederico.

O Frederico era o barbeiro da família e, como todos os barbeiros da altura, também dava injecções, colocava ventosas, tirava dentes e fazia uns pensos em feridas mais ou menos graves. Homem bom e muito amigo desta família. Já era dos pais e sempre muito dedicado a todos.

O médico virou-se para o Frederico e disse-lhe: tem cuidado que isto é muito doloroso. Eu vou dar-lhe esta primeira injecção para tu veres e tu dás-lhe as restantes duas em dias seguidos. Olha bem e repara como se faz.

À primeira injecção o Rainho nem tugiu nem mugiu, tal era a sua debilidade. Mas foi milagrosa. No dia seguinte já não havia sangue nas fezes e a vontade de comer começou a aparecer. As melhoras eram sensíveis e após a segunda dose o rapaz parecia ter ressuscitado. Queria muito comer. Dizia ter fome constantemente e, como era esquisito, só queria canja e carne de perdiz.

Era época de caça e, com aquela dedicação dada a um filho que se considerava quase perdido, lá se comprava de, quando em quando, uma perdiz e nos restos dos dias tinha de comer as galinhas que eram produto da casa.

O rapaz melhorava a olhos vistos, mas, há sempre um mas, o organismo estava profundamente debilitado e começou a inchar por todo o corpo.

A angústia era mais que muita e as decisões a tomar eram de extrema dificuldade.

Os conselhos dos vizinhos e amigos também mereciam ser ouvidos e, sem que nada o fizesse prever, um dia aparece lá em casa uma amiga já entradota com uma senhora desconhecida, toda vestida de preto e com um ar soturno. Era uma daquelas mulheres dadas ao misticismo e bruxarias e que sabia fazer umas rezas, uns truques com azeite, vinagre e outras ervas para expurgar o diabo que o Rainho tinha entranhado, na sua óptica, já se vê.

O Rainho desde criança que sempre fora pouco dado a crendices, talvez por influência do avô paterno, e, em vez de colaborar com a benzilheira, ria a bandeiras despregadas deixando a velhota muito constrangida. Vistas as coisas à distância pode dizer-se que tal inchaço era a defesa do organismo a uma nova adaptação depois de uma fraqueza quase absoluta.

O tempo veio a demonstrar isso mesmo e não as benzeduras que, diga-se de passagem, ninguém acreditava nessas coisas lá em casa. Nem pais nem filho.

O Outono invernal, como eram todos os Outonos da época, eram frios e chuvosos, por isso o Rainho passou o tempo até ao Natal metido em casa, junto da lareira, entediado, com uma vontade louca de poder brincar e ir para a escola como todos os seus amigos. Estes visitavam-no e davam-lhe novidades da escola. Do que aprendiam, das dificuldades, das lutas entre eles, do medo dos mais velhos, de tudo aquilo que fazia o dia-a-dia de escola.

Se durante as visitas o nosso menino estava alegre e bem-disposto com a saída dos amigos apoderava-se dele uma nostalgia que o prostrava.

Entretanto o pai já lhe tinha comprado uma ardósia e respectivo giz, um caderno de duas linhas, um aparo e um suporte para o mesmo, bem como um pequenino e lindo canivete para poder raspar no papel caso deixasse cair algum borrão, o que era, por assim dizer, quase inevitável dada a qualidade da tinta que era feita em casa e ainda servia para aguçar o lápis.

A mãe tinha-lhe confeccionado uma bolsa para transportar todas aquelas coisas e mais o livro de leitura que era peça fundamental naquela altura.

Apesar de débil o rapazinho ansiava poder ir para a escola apesar das histórias de pancada e castigos de que esta era, frequentemente, acusada.

Passou-se a Ceia da Consoada e o Natal, naquela casa humilde, mas que foi de festa e confraternização com a família alargada, avós paternos e maternos, tios de ambos os lados.

O Rainho pulava de alegria e, como centro de atenções, natural devido às circunstâncias e ao facto de ser o primeiro neto e o primeiro sobrinho, sentia-se com uma vontade férrea de viver e aprender.

Recebeu os dois tostões nas botas que colocou ao lado da lareira e que o Menino Jesus adornou com o seu presente de Natal. Não era uma prenda pessoal. A formação dos pais e dos avós indicava que a prenda recebida em dinheiro deveria ser entregue, também como prenda, ao Menino Jesus quando se fosse beijar o Menino no dia de Natal.

Apesar de saberem bem os rebuçados que o dinheiro poderia comprar era assumido que tal dádiva era uma obrigação e sem rebuço de nenhuma espécie, fazia-se com muito carinho.

Depois de cantadas as Janeiras em casa de familiares e amigos em dia de Reis, 6 de Janeiro, acabaram-se as festas e chegou o tão ansiado dia de ir, pela primeira vez, para a escola.

A entrada foi muito acarinhada por todos. Colegas do ano, mais velhos e também a professora que o recebera com um beijo na face e a recomendação de que deveria estar sempre com muita atenção, pois perdera o primeiro período de ensinamentos.

A ansiedade, a novidade e a expectativa fizeram daquele dia o dia mais feliz do Rainho. Apesar de as mãos não quererem obedecer à minúcia do contorno das letras e dos números – na época ninguém falava em estimular a motricidade fina – começou ali uma época muito feliz para o Rainho e para todos os seus familiares.

Aprendera depressa. Diariamente passava duas e três lições. Era borrão na escrita, mas muito sagaz na aprendizagem das letras, dos números e das contas de aritmética, adição e subtracção simples.

O tempo passa depressa e o rapazinho nas férias da Páscoa já lia bastantes palavras e interiorizara a técnica da leitura pelo que trouxe para casa o dobro dos trabalhos que os seus colegas.

Foram cópias, contas, leitura de lições para trás e para a frente daquela lição em que o grosso da turma ia.

Os dias de férias foram para ele dias de trabalho igual como se estivesse na escola. Sentado ao lume com o livro na mão ou a lousa no colo passava a maior parte do tempo a ler em voz alta ou a fazer contas de somar ou subtrair. Um treino indispensável e muito útil para recuperar o atraso na entrada na escola.

O Pai andava sempre a trabalhar no campo. A mãe, em casa, fazia a lida, sempre com algum esforço, pois andava sempre doente e a queixar-se do reumático, além do que não poderia ajudar porque não sabia ler nem escrever. Mas o miúdo desenvencilhava-se razoavelmente.


Capítulo 6

 

A escola, apesar de ser considerada retrógrada pelos intelectuais da época, tinha virtudes e defeitos como todas as organizações sociais tinham e ainda hoje têm.

Na circunstância, esta escola de aldeia teve professores que, pela entrega e denodo, profissionalismo e espírito de missão, conseguiu fazer de crianças filhas de analfabetos, na sua esmagadora maioria, alunos dedicados e ávidos de conhecer, de saber, de conquistar outras formas de vida.

Nesta aldeia e no final da década de quarenta e início da década de cinquenta do século vinte pode dizer-se, sem qualquer tipo de snobismo ou desprimor para as restantes gerações, anteriores ou posteriores, que conseguiu uma verdadeira geração de ouro.

Nunca tinha havido uma plêiade de gente que tanto tenha conquistado na vida.

Vamos por partes:

Como já se referiu, uma aldeia do interior profundo, de um Portugal cinzento e pouco dado a inovações, a maior parte das pessoas nasceu, cresceu e morreu sem ter visto outros horizontes que distassem mais de vinte ou trinta quilómetros. Consequentemente a vida dos pais era imitada pelos filhos e já vinha de avós, bisavós e tetravós.

No caso desta geração nascida entre finais da década de trinta e início da década de quarenta tudo foi diferente.

Muitas raparigas começaram a estudar fizeram-se professoras, na maioria dos casos, ainda que também houvesse juristas, escriturárias nos correios, nos registos civis e outros serviços públicos ou empresariais.

Já os rapazes fruto também da discriminação de género que era acentuadíssima na época, conquistaram espaços nas mais diversas actividades profissionais.

Desde logo a ascensão ao posto de General do Exército português um dos rapazes desta freguesia é desse tempo e está vivo.

Médicos distintos. Juristas de gabarito que se distinguiram nas barras dos tribunais quer como juízes quer como advogados.

Eminentes sacerdotes exercendo os mais diversos papéis, incluindo os de missionários da América Latina e África. Professores de todos os graus de ensino, incluindo o superior.

Mecânicos de diversas tipologias incluindo a da aeronáutica civil como é o caso da Air France.

Trabalhadores dos diferentes serviços públicos desde os de mais baixa condição até ao topo das carreiras de técnicos superiores.

Pilotos da Força Aérea. Militares de diferentes patentes que defenderam a pátria nos mais diferentes teatros de operações.

Imigrantes que se tornaram empresários de sucesso no domínio da construção civil, hotelaria e restauração e muitos outros sectores. Poucos, muito poucos, foram aqueles que seguiram as pisadas dos pais e ficaram na aldeia.

Foi uma sangria para a localidade, mas foi uma mobilidade social fantástica para os seus filhos.

O Rainho fez parte desta geração e, também ele, como muito esforço pessoal, atingiu o segundo grau académico mais elevado existente no país, mestrado e pós-graduação, diploma tirado numa das mais conceituadas e exigentes universidades públicas do país. A Faculdade de Ciências da Universidade de Lisboa.

A aldeia está mais pobre, de gente, de jovens, de crianças, mas os avós de hoje estão muito melhor na vida que os seus bisavôs.

Quando se diz que não há condições para progredir na vida pessoal e profissional porque não se dão condições aos jovens, talvez seja bom repensar esta posição. Pois as condições de hoje de acesso à formação, à cultura, às novas tecnologias são a antítese daqueles tempos.


Capítulo 7

 

O Rainho sempre foi um rapaz aplicado, respeitador, aplicado e dedicado ao trabalho, à família e aos amigos.

Pouco mais que uma criança começou a trabalhar, na dimensão exacta da sua capacidade física, no campo.

Teve a sorte do seu lado por ter partido para outra terra, outro país.

Devia ter ido parar ao seminário pois essa era a vontade do seu professor da segunda classe e a anuência do seu pai.

O Professor tudo fizera para que tal acontecesse e chegou até a estar aprazada a entrada num estabelecimento de ensino que se pautava pelo rigor na aprendizagem e na preparação para o sacerdócio.

O reitor tinha aceitado o rapaz e até tinha dado indicações para que se preparasse um enxoval que permitisse um internato durante a maior parte do ano.

Mas há procedimentos a que não se consegue escapar e, quando questionado o pároco da freguesia sobre o rapaz e respectiva família este, despudoramente, informou que era bom moço, que os pais eram católicos praticantes, mas que tinha um senão, o seu avô paterno era comunista. Este rótulo, no regime vigente, não só assustava como fechava todas as portas a quem quer que fosse. E assim aconteceu, o rapaz foi impedido de ingressar no seminário.

Porém, como a vida quando fecha uma porta escancara duas ou três janelas, o seu pai pediu ao tio Zé que lhe mandasse uma carta de chamada que lhe permitisse ir para Angola, para numa terra de oportunidades, poder dar ao seu filho outros horizontes e outras ferramentas que não fossem o arado ou a enxada.

Um dos protagonistas desta história de vida foi, desta forma, inundado de informação, de requisitos e exigências que o obrigaram a desenvolver a sua personalidade.

Desde logo quando chegou à Capital, Lisboa, que sendo uma cidade relativamente pequena, para os dias que correm, era imensa, comparada com a aldeia que o vira nascer ou a vila sede do concelho a que pertencia.

E aí começou a grande lição de vida. Era preciso apanhar transportes públicos, depois da primeira viagem de comboio de cerca de trezentos quilómetros. Calcorrear ruas, colinas, olhar o rio que mais parecia mar. Ver pequenos barcos ou grandes navios. Automóveis que circulavam a velocidade estonteante, mesmo que só se deslocassem a cinquenta quilómetros horários. Casas com vários andares, a que chamavam prédios, algo confuso para uma mente habituada a chamar este epíteto a terrenos de cultivo. Escritórios com muitos mangas-de-alpaca – escriturários que usavam umas mangas por cima dos casacos para que estes não se gastassem e rompessem nos cotovelos – luzes intensas para obviar à sombra que alastrava dentro de salas enormes.

Leitura de formulários que era necessário preencher. Escrita de documentos necessários para obtenção de vacinas no Hospital do Ultramar. Preenchimento de cupões para colar nas malas de porão e de bagagem. Todo um conjunto de tarefas, que agora, não só não são necessárias como consideradas obsoletas, mas que na altura eram fundamentais, complexas e indispensáveis.  

Fazer percursos de quilómetros a pé, para ir de Alvalade, bairro novo de Lisboa, onde viveram os oito dias que mediaram a chegada e a partida, até à Junqueira, Cais da Rocha, Alcântara e rua da Prata, sede respectiva do Hospital do Ultramar, Cais de embarque, ou sede da Companhia Nacional de Navegação.

Chegado o dia do embarque rumou-se num mar de desconhecimento, ora alteroso ora chão, até Luanda onde os pais pensavam dar novo rumo à sua vida e o Rainho não pensava nada. Só sabia que ia para um País do fim do mundo onde já vivia o seu tio Zé.

Depois de doze dias de viagem, apenas com duas paragens em pleno oceano  Atlântico, avistando-se ao longe o casario se fosse de dia ou a iluminação pública se fosse de noite, a primeira ao largo do Funchal, ilha da Madeira e a segunda em São Tomé, no arquipélago de São Tomé e Príncipe, chegou-se a Luanda, cujo cais era um amontoado de armazéns cobertos a chapas de zinco, guindastes gigantescos e muitos, muitos caixotes de diversos materiais e tamanhos.

O tio Zé estava à espera, mas estava tão magro, que toda a família pensou que acaba de aportar no inferno pior do que aquele de onde tinha saído. Porém, a beleza da Baía e a imponência do alcantilado que, mais tarde, veio a saber pertencer ao morro do Cacuaco, deram uma boa impressão desta terra nova, desta terra prometida, da tal terra de oportunidades.

Descidos do navio Moçambique onde viajaram, enjoaram, se cansaram de uma comida que consideraram horrível, o abraço caloroso do tio de um amigo de longa data do pai, serenaram os corações.

Depois da burocracia alfandegária lá se seguiu de carrinha chevrolet de caixa aberta, emprestada ao amigo do tio e do pai, até à casa deste, para a espera que demoraria o desalfandegamento da bagam de porão e rumar-se até à Fazenda onde o tio trabalhava, próximo de Malanje.

Passados quatro dias a família fez-se de novo à viagem, já se passara quase um mês desde o dia que saíram da sua terra natal rumo ao destino que se tinha dado por adquirido. Desta vez de comboio com máquina a vapor, alimentado a lenha que, para percorrer os cerca de quatrocentos quilómetros, demorava quase doze horas.

Partida pelas seis horas da manhã em carruagens com bancos de madeira onde se misturavam as pessoas com pequenos caixotes e pequenas malas que transportavam de tudo um pouco. Frutas, legumes, vários produtos comerciais e até dinheiro à vista de toda a gente.

Na carruagem onde colocaram os três viajantes, pai, mãe e filho, iam bastantes pessoas de etnias diferentes, de raças diferentes. Negros, mulatos, brancos e até albinos. Gente pobre que apresentava um aspecto pouco cuidado e abastados que com o seu “panamá” e a sua “balalaica”, sapatos bem lustrosos demonstravam a quem os observasse que tinham algo de seu e que estavam bem na vida. A vestimenta da família também mostrava que era recém-chegada do “puto” ou “Metrópole” como se designava a parte continental do país, pelo tipo de tecido que era mais grosso e mais quente daquele que se usava naquela terra tropical, quente e húmida.

A viagem era longa, não pela distância, mas pela demora, e dava para tudo. O Comboio rolava com preguiça, na “pouca terra”, “pouca terra” pausado e lento. Começavam-se a trocar algumas palavras. Mesmo entre os desconhecidos naquela terra era comum partilhar-se uma boa conversa. Perguntar quem eram, o que faziam ou esperavam fazer, para onde iam, estas conversas que, em regra, começavam por um “está um calor que não se pode”.

Nesta troca de palavras um dos tais brancos de “panamá” e “balalaica” que colocara, junto ao seu lugar, três caixas com notas de angolar – o dinheiro que circulava na altura – o senhor perguntou ao pai do Rainho se estavam a chegar do “puto” e para onde ia. À resposta afirmativa torceu o nariz, disse que ia mal encaminhado, que a fazenda de destino era pouco produtiva e mais mal gerida que, apesar de tudo, não desanimasse porque estava em terra de oportunidades e que o que era preciso era trabalhar. Acrescentou que, se por acaso, não se sentisse satisfeito com a apreciação da fazenda e as condições de trabalho que retrocedesse apenas vinte e cinco quilómetros pelo mesmo comboio e aí perguntasse pelo Paiva. Que era ele e que tinha uma fazenda produtiva e em franca expansão e que ali encontraria trabalho e remuneração compatível.

A viagem lá ia no seu rame, rame, lento, quente e viscoso, puxou-se do farnel, ofereceu-se aos mais próximos que declinaram e, cada vez se faziam mais e maiores confidências.

Quase ao anoitecer, dezassete e trinta minutos, mais ou menos, chegou-se ao Zenza do Itombe, local onde o Paiva se apeou levando consigo malas e as caixas do dinheiro que passava a um empregado negro que estava à sua espera com uma carrinha de caixa aberta estacionada junto da linha do comboio. Dizia-se ao anoitecer porque naquela terra às dezoito horas punha-se o Sol e pouco tempo depois era um escuro de breu.

Nas despedidas o Paiva reiterou a oferta feita à família do Rainho dando logo ali algumas garantias de trabalho e de sucesso para todos.

Chegados à Aldeia Formosa, terra de meia dúzia de casas e algumas dezenas de cubatas a família chegou ao seu destino. O tio Zé lá estava à espera e descarregadas as bagagens percorreram-se alguns quilómetros, poucos, por uma picada de terra batida até à casa de residência. Uma casa de tipo colonial com muita madeira e adobe, coberta de colmo. Não tinha água nem luz, coisas a que a família também não estava habituada, não sentindo a sua falta, havia uma moringa de barro de onde se bebia a água fresca, ou menos quente, segundo o ponto de vista, uma sala comum a mesa ao centro e algumas cadeiras e alguns quartos que, pela sua singeleza, não merecem qualquer tipo de referência.

Algumas cubatas que albergavam os trabalhadores indígenas rodeavam a casa do branco e o resto era um aparente matagal. Árvores de fruto, mamoeiros, mangueiras, goiabeiras, imbondeiros dispersos e, um pouco mais afastados pés de café que seria suposto que fosse o rendimento da sobrevivência e do lucro dos patrões que viviam em Luanda e que, da Fazenda, só queriam o lucro. Coisa que não dava, já se vê, devido à dimensão, à escala, à quantidade exígua do produto comercializável. Por isso o tio Zé há mais de um ano que não recebia salário e os trabalhadores indígenas estavam sempre a reclamar com ele pela falta de pagamento. A Fazenda dava para comer mal, para todos os que ali trabalhavam. Razão tinha o Paiva e o Manuel, pai do Rainho, depressa concluiu que ali não haveria futuro.

O Zé e o Manuel conversavam e chegaram à conclusão que era necessário tomar novo rumo.

O Zé começou a pensar ir fazer vida para Luanda já que se tinha casado por procuração há relativamente pouco tempo e a mulher não gostava de estar naquele isolamento. O Manuel, depois dos avisos do Paiva e da constatação dos recursos da Fazenda disse que iria aceitar a oferta do Paiva e desceria, em direcção a Luanda, mas apenas os vinte e cinco quilómetros que distavam da Aldeia Formosa até ao Zenza do Itombe.

Pensado e repensado, cada família se fez à vida. O Tio Zé meteu-se no comboio com a tia Maria, rumo a Luanda e o Rainho e os pais rumaram à fazenda do Paiva, em espaço de tempo reduzido.

Na sua tenra idade, ao Rainho, estas decisões passavam-lhe ao lado. Ele só queria estar junto dos seus pais e o futuro não era sua preocupação, mas há um momento para tudo e foi, naquele dia de Março de 1956, pela manhã e após a chegada à estação ferroviária de Zenza do Itombe que as preocupações começaram a tomar conta de si e da sua consciência pouco desperta para as dificuldades da vida.

À chegada da dita estação o pai falou com o chefe da mesma para que fizesse o favor de enviar um recado ao Senhor Paiva para lhe dizer que estava ali com a família para aceitar a sua oferta de trabalho.

Deve-se informar o leitor que aquela estação ferroviária perdida no meio de um aparente descampado, com floresta por todo o lado e poucas casas de habitação era um dos maiores entrepostos de recepção de manganês de toda a Angola. Por essa razão o movimento de camiões era intenso o dia todo.

Uma empresa japonesa explorava uma mina a céu aberto que distava apenas cerca de quinze quilómetros. Percurso que era constantemente percorrido por camiões basculantes que transportavam o dito minério até ao combóio e este levava-o até Luanda e aos navios que transportavam ao seu destino no longínquo Japão. O constante vai e vem dos camiões eram um bom meio de aviso ao Senhor Paiva já que tinham de atravessar, no seu percurso de ida e volta a fazenda do mesmo e, assim foi. Enviado o recado, pouco depois apareceu o fazendeiro que levou os pais do Rainho até à fazenda, que distava pouco mais de cinco quilómetros, num turismo chevrolet americano, como, aliás, eram quase todos os veículos automóveis existentes em Angola naquela altura, deixando o Rainho em cima das malas de porão à espera que chegasse o motorista que traria a carrinha de caixa aberta para poder transportar as malas.

Coitado do miúdo viu ali a primeira grande contrariedade da sua vida. Por um lado, ficar sem os pais num mundo desconhecido, sem ter noção da distância e da eventual demora, até ser recolhido, juntamente com a bagagem, por outro, por ver tanto negro que passava junto de si e arreganhava os dentes, excessivamente brancos – os negros sempre se esmeraram em ter os dentes muito brancos que poliam com cinza diariamente – o que fazia arrepiar de medo nosso Rainho.

O tempo que decorreu que, por certo, não ultrapassou a hora, pareceu uma eternidade e, não querendo dar parte de fraco, engolia as lágrimas que quereria derramar, em abundância, pela cara abaixo. Se o sofrimento foi muito até voltar a ver o seu pai com o motorista negro que conduzia a tal carrinha de caixa aberta, foi talvez, o início da interiorização das dificuldades em que foi moldando a sua personalidade, a sua determinação e a sua perseverança.

Pode dizer-se que aqui começou, verdadeiramente, a saga da história de vida do Rainho.


Capítulo 8

 

A etapa da vida deste rapaz que se inicia em Março de 1956, nesta fazenda do Norte de Angola, onde a paisagem era luxuriante, próximo das Quedas do Duque de Bragança, quais cataratas do Niágara, em ponto mais pequeno, mas mesmo assim imponentes, traz consigo vivências que são fruto de aprendizagem que não desperdiça.

O Paiva leva o miúdo para trás do balcão da loja que tudo de básico possuía para a vida naquela região. Ensina-lhe a consultar os preços, dos diferentes artigos, escritos em tabelas dispostas por ordem alfabética num volumoso dossier.

Ensina-lhe a estar atento aos movimentos dos clientes para que não haja tentação de qualquer acto fraudulento.

Diz-lhe que deve ser atencioso sem nunca descurar que o estabelecimento deve gerar lucro e que a boa compra permite melhor venda. Esta máxima serve para todos, desde o indígena que quer vender uns parcos quilos de milho, jinguba, farinha de mandioca, um cacho de bananas ou mesmo uma galinha até ao vendedor branco de peças de tecido ou outros.

Dá-lhe indicações para que, quando não há clientes, se arrumem os produtos trazidos até ao balcão corrido para a escolha dos clientes.

Mostra-lhe a máquina de escrever, uma velha Remington de teclado HCESAR, o designado teclado nacional, porque o internacional fora, desde sempre o AZERT, e diz-lhe que quando tiver tempo pratique para poder escrever cartas ou outros documentos necessários na vida. Não lhe ensinou a escrever. Não lhe ministrou técnicas pôs-lhe à disposição a ferramenta que ele deveria explorar e dominar.

Disse-lhe, igualmente, que por este trabalho não receberia nada, pois o pagamento seria a aprendizagem que faria para ser alguém na vida. O pai ganhava para que a família tivesse casa, todos os produtos que a fazenda dava para a alimentação de todos e que tudo o que comprasse na loja seria a preço de custo.

Deve dizer-se que o Paiva era um cinquentão robusto, seco de carnes, com alguns cabelos brancos e algo brusco, ou talvez pragmático, como se diria hoje, na abordagem das relações interpessoais. Sabia mostrar ser duro quer na condução dos negócios, quer na relação com empregados e mesmo com a esposa.

Tinha quatro filhos. Duas raparigas de 14 e 16 anos, que estudavam no colégio das freiras S. José de Cluny, em Luanda, que o Rainho nunca conheceu, apenas soube da sua existência por conversas ouvidas. Mais dois filhos pequenos, um de quatro anos e outro de seis, que brincavam por todo o espaço da casa, da loja, do armazém e do pátio, sempre guardados de perto por um rapazola indígena.

A esposa, mulher linda, viçosa, na força da vida, que não teria mais do que a idade da mãe do Rainho, trinta e poucos anos. Vivia a cirandar pela casa dando ordens ao cozinheiro e demais criados invectivando-os a que tudo estivesse no ponto para não desagradar ao patrão.

Nascida e criada por aquelas bandas, filha de pais pobres, nunca foi à escola e, por isso não sabia ler nem escrever. Fora dada em casamento, à boa moda medieval, ao fazendeiro rico, para assegurar um futuro melhor para si e para os seus, incluindo os pais.

Habituada àquele clima quente, usava vestidos de tecido muito fino, fresco, quase transparente, sem mangas e bastante decotados, deixando antever a raiz de uns seios fartos e rijos, bem como umas pernas bem torneadas e fortes. Tinha cabelos loiros, lábios carnudos e faces de uma tez um pouco pálida, mas de pele sedosa. Com aquela figura ninguém diria que já era mãe de quatro filhos. Visto à distância quase se podia afirmar que era o bibelot do velho. Ela, por sua vez, aparentava ter receio dele. Um respeito maior do que se fosse seu pai. Uma submissão que, sendo habitual nos mais velhos, não se adequava à sua idade. Aparentava ter tudo o que o dinheiro compra, menos amor.

O Rapaz, na sua timidez, educação e vontade de aprender e agradar, tudo fazia solícito junto de todos, incluindo os empregados indígenas que mais perto de si viviam e trabalhavam, como era o caso do motorista, que o era de facto, mas nem sequer tinha carta de condução, daí só conduzir nos limites da fazenda ou em picadas até próximo da estação. À senhora Rosa, a referida esposa do Paiva, tratava com muita delicadeza pelo que era correspondido com mimos diversos e confidências para as quais não estava preparado nem tinha idade para compreender.

Assim passavam os dias. O pai a trabalhar no cafezal com umas dezenas de homens que capitaneava e aos quais dava indicações de produtividade e destreza no manejo das alfaias e ferramentas agrícolas, no qual era exímio. Talvez por isso o Paiva, apesar da sua rigidez e grau de exigência, tenha demonstrado, desde a primeira hora, muita admiração e respeito, dizendo com muita frequência que o Manuel não era um agricultor de bengala, como ele conhecia muitos, talvez querendo fazer um paralelismo com o sogro que não queria, sequer, ver por perto. Dizia que finalmente encontrara um capataz em quem podia confiar, pelo seu denodo, empenhamento e saber, o que lhe deixaria tempo para todas as outras actividades que gostava de cultivar como os negócios e as caçadas com os seus vizinhos fazendeiros.

A mãe, a Adozinda, tratava da casa, fazia as refeições e companhia à senhora que estava mais habituada a falar com os indígenas do que com gente da sua cor. De tal forma que se expressava mais fluentemente em quimbundo do que em português, mas que encontrara na mãe do Rainho uma igual com quem podia desabafar e contar as suas mágoas e as suas alegrias.

Entretanto, o rapaz procurava assimilar o mais rapidamente possível tudo o que pudesse aprender naquela nova vida.

Daí a, de repente, começar a receber os elogios do senhor Paiva e mais ensinamentos ao ponto de poder saltar para dentro de uma carrinha velha cujo ronronar do motor era muito periclitante e poder andar cinco metros para a frente e cinco metros para trás sob orientação do motorista.

O mesmo se passava com a senhora que lhe pedira para a ensinar a ler pois, a sua maior ambição, naquele momento, seria poder escrever às filhas, que só via de ano a ano, já que o Paiva, que se deslocava muitas vezes a Luanda, nunca lhe permitira que o acompanhasse, nem que fosse só para visitar as filhas no colégio.

O tempo corria depressa. A casa do fazendeiro era enorme. Do tipo colonial. Um rés-do-chão elevado a pouco mais do que um metro do chão, com enormes salas, quartos e um espaço coberto de uns dois metros de largura a toda a volta. Espaço onde estavam espreguiçadeiras, cadeiras de lona e outras, com pequenas mesas, onde era possível passar um serão recebendo a brisa da noite e ouvir o batuque da sanzala que acomodava os trabalhadores indígenas.

Nestes dias de descoberta e adaptação respirava-se felicidade e a família recém-chegada da metrópole, achava que tinha encontrado o paraíso, contrastando com a vida cheia de dificuldades e carências na aldeia de origem.

Os dias somavam-se num estreitar de amizade, sempre com os conselhos do velho Paiva que não se esquecia de lembrar, que todos os dias era necessário tomar o comprimido de quinino pela manhã e o de paludrine ao jantar para evitar o paludismo, doença abundante na região e no país.

O Rainho procurava, na sua inexperiência e ignorância, que a D. Rosa aprendesse a ler a escrever com rapidez, pois esse era o seu sonho e era, igualmente, uma aposta do garoto. Em abono da verdade diga-se que a vontade de ambos era tanta que ao fim de um mês a D. Rosa soletrava a maior parte das letras do alfabeto e juntava-as para formar palavras. Era inteligente e tinha muita força de vontade.

Durante o dia e sempre que não havia clientes lá ia ele matraquear na máquina de escrever, qual galinha que procura aqui e ali o grão de milho, primeiro com um dedo, depois com dois, acrescentado mais um à medida que memorizava a posição das letras, e aproveitava para escrever para a família. Em primeiro lugar para o seu Tio Zé que estava em Luanda e o correio ia no combóio que passava três vezes por semana. Depois para os avós paternos, os únicos vivos na altura, pois os maternos há muito tinham passado para a vida eterna.

Nas cartas contava-se a aventura de uma família aldeã, do interior profundo de um Portugal triste, pobre e sem futuro, que vislumbrava horizontes largos num país enorme e de incomensuráveis potencialidades.

Mas a vida, toda a vida e todas as vidas, são feitas de altos e baixos, de corridas de obstáculos que é preciso ultrapassar e que às vezes parecem intransponíveis.

Na circunstância, o Rainho apanhou paludismo e esteve às portas da morte, durante oito dias, com doses reforçadas de quinino, sem acompanhamento médico, porque não havia médico, mas com a indicação do velho Paiva e da Senhora Rosa que tinham experiência destas coisas. Ao fim dos oito dias a febre foi cedendo e as melhoras eram visíveis. Foi um susto, que não passou disso mesmo, e até parece que foi um antídoto ou imunizador pois daí em diante, até à idade adulta, nunca mais teve doenças.

Revigorado, retomou as suas tarefas quer na loja, quer na casa do patrão a ensinar a D. Rosa, que a si se afeiçoou e tratava como um filho.

Enquanto isso, o seu pai tornava-se, cada dia que passava, mais indispensável ao Senhor Paiva que o levava para todo o lado. Desde conhecer os limites da fazenda que, em alguns sítios tinha alguns dez quilómetros de extensão, por ela atravessando rios, estradas (melhor dizendo, picadas de terra batida), com cafezais, mangais, terreno de cultivo de milho, todo o tipo de frutos tropicais, desde o mamão, papaia, goiaba, mandioca, e também grandes extensões de jinguba (amendoim) que, conjuntamente com a farinha de milho, de mandioca e óleo de palma, constituía a base da alimentação dos indígenas.

A mãe, depois de fazer as tarefas da casa, ensinava a D. Rosa no tricot, na renda e até na feitura de simples peças de vestuário. Pode-se dizer que ali vivia uma família alargada constituída pelas duas famílias de brancos.

Os negros gostaram, sobremaneira, do Manuel, pelo que o respeitavam sem temor ao contrário do que acontecia com o Paiva que era temido, mas não amado. A ponto de uma bela noite de sábado terem convidado toda a família do Manuel para uma batucada na sanzala, onde se serviu funje com galinha do campo e óleo de palma, se bebeu candingolo (aguardente de cana-de-açúcar, também abundante na fazenda) e se ouviram canções em quimbundo e se viram danças tradicionais. A noite demorou até de madrugada porque no dia seguinte era domingo e apenas era preciso ir à missa pelas nove horas da manhã o que, no país e na região era manhã alta, pois o Sol nascia antes das seis.

Dir-se-ia que tudo corria sobre rodas e o futuro afigurava-se risonho. Porém, há sempre um, porém, ao fim de dois meses e meio, o Paiva ainda não pagara nada ao Manuel e nem sequer lhe dissera quanto ganhava, apesar dos elogios constantes, quer na lavra quer nos serões passados na casa grande. E, nesta circunstância, a Adozinda todas as noites instava o marido a pedir contas ao patrão para que não lhe acontecesse o mesmo que ao irmão que ficou sem um ano de trabalho, pelo qual nunca foi ressarcido. O Manuel, coitado, apesar de reconhecer a razão da mulher tinha vergonha de enfrentar o Paiva porque se sentia agradecido por tudo o que ele lhe proporcionara até então.

A insistência era cada vez maior e o tempo cada vez se avolumava mais pelo que, não tendo más nem boas, um dia lá se decidiu pedir contas ao patrão alegando que era para pagar dívidas que deixara na Metrópole. Não sendo verdade era uma mentira que não prejudicava ninguém e servia de perfeito alibi para abordar tão delicado tema.

O Paiva prontificou-se logo a fazer as contas e a elaborar o contracto para que tudo ficasse dentro das normas e que o iria fazer no domingo próximo para não roubar tempo aos afazeres diários.

Tudo acertado esperou-se pelo dia aprazado com alguma ansiedade. O Domingo ia-se escondendo como o Sol que se punha para lá do horizonte e nada de respostas do Paiva. A angústia ia-se, igualmente, apoderando da família, porque nisto estava toda incluída, à medida que as horas se passavam. Depois do jantar, na aldeia de origem dizia-se ceia, voltaram todos para o terraço da casa grande à espera de que o Paiva dissesse alguma coisa e, por fim, muito tarde, apareceu com uma pasta e um contracto escrito à máquina com três ou quatro folhas, onde se escalpelizavam os direitos e deveres dos dois contraentes. Entregue o contrato, disse o Paiva ao Manuel: - Aqui tem homem. Leve para casa e com o seu filho leia com atenção e amanhã acertaremos as contas.

Lido com muita atenção o contrato onde sobressaíam palavras como outorgantes, completamente desconhecidas do Manuel e do Rainho, mas que intuíram referir-se ao nome do patrão e do Manuel, lá foram decifrando as palavras pouco habituais e concluíram que o contrato era satisfatório para o Manuel e Família. Este ficaria a ganhar dois mil e quinhentos escudos mensais, com direito a habitação e todos os alimentos que a fazenda produzisse e que tudo o que adquirisse na loja da fazenda seria a preço de custo acrescido, apenas, de dez por cento. Mais ou menos o que o Paiva tinha dito no primeiro dia só acrescentando o valor do vencimento mensal.

É evidente que todos ficaram satisfeitos pois o vencimento poderia ser considerado bastante bom para o nível de vida do país e, poder-se-ia dizer que era uma pequena fortuna se se fizesse o paralelismo com os quinze escudos diários que recebia na sua aldeia natal. Naqueles dois meses e meio, feitos os cálculos, ganhara metade do que tinham custado as passagens de navio para toda a família.

Logo ali se iniciaram as contas de cabeça e os planos, contando o tempo necessário para voltar a comprar a casa que vendera na terra natal e até algum prédio que fosse interessante adquirir na terra natal.

Sonhos. Quem não sonha? O pesadelo viria logo no dia a seguir.

Pela manhã, quando se encontraram, o patrão e o Manuel, este disse que concordava com o estipulado no contrato e que tudo estava bem, mas o Paiva disse-lhe que queria essas palavras por escrito. O Manuel virou-se para o Rainho e disse-lhe: “filho faz lá uma carta a dizer ao Senhor Paiva que eu concordo com o contrato que me fez e eu, quando vier à noite, assino a carta e entrego-a ao patrão”.

O Rainho passou o dia todo, nas horas livres e também nas outras, só que de forma diferente, a matutar no que iria escrever pois não estava habituado a tais missivas. Mas mesmo assim, lá se desenvencilhou e até a escreveu à máquina, depois de ter rasgado meia dúzia de rascunhos.

Entregue a carta, o Paiva chamou o Manuel ao fim do jantar e, na presença de todos, entregou-lhe dois mil e quinhentos escudos (dois contos e meio como era vulgar designar).

O Manuel num misto de estupefacção e incredulidade olhou para o dinheiro, contou e recontou as notas e, por fim disse: “Senhor Paiva aqui só estão dois contos e meio e eu já trabalho há mais de dois meses pelo que deveria receber, no mínimo, cinco contos”.

O Paiva, colono sabidão e pouco honesto, esquecendo todos os elogios que fez diariamente ao trabalho competente e esforçado do Manuel, disse: “Mas o primeiro mês é o mês da experiência e esse não é pago”.

Abriu-se um profundo abismo debaixo dos pés do Manuel, da sua mulher e do seu filho. A própria mulher do Paiva ficou com um ar apalermado de surpresa. Só o Paiva se mantinha sereno, tal era o hábito que adquirira de exploração de todos os que dependia dele, incluindo a mulher.

Passado o momento de total e profunda surpresa o Manuel, irado e revoltado, argumentou que tal não podia acontecer pois os elogios recebidos pressupunham não ter havido nenhum tipo de experiência, mas sim, uma mais-valia para a Fazenda pois modificara muita da rotina pouco produtiva e imprimiu uma dinâmica no trabalho e na organização, com total satisfação do pessoal e do patrão, como fora demonstrado, pelo próprio, todos os dias que ali trabalhara.

Porém, o Paiva era muito teimoso e não cedeu aos argumentos, plenamente justificados.

O Manuel tomou-se de brios, pensou muito rapidamente e disse: - Pois se não me quer pagar o mês que diz ser de experiência mesmo agora me despeço e vou-me embora. Apenas lhe peço que me deixe ficar cá em casa mais oito dias para eu organizar a viagem para Luanda. Para isso trabalharei todos os dias que cá estiver e não tem de pagar nada.

O Paiva ficou muito surpreso com a atitude do Manuel, pois pensou que um subordinado nunca colocaria em causa a sua autoridade e a sua decisão e, numa retórica cheia de maus presságios, tentou dissuadir o Manuel de tomar tal decisão. Porventura nunca esteve habituado a que alguém pusesse em causa a sua pseudo honestidade e, sobretudo, o seu poder.

Mas estava decidido e ali se despediram com alguma frieza e o Manuel lá se dirigiu mais a mulher e o filho para a sua acomodação.

Estava irritado. Muito irritado. Com um pensamento de que aquela terra era terra de ladrões. Com a experiência conhecida do que acontecera ao seu irmão Zé e agora com este “balde de água fria” começou a arrepender-se de ter decidido rumar a África. Nunca ninguém lhe fizera tal. Toda a vida tinha visto o seu trabalho e esforço reconhecido ainda que mal pago. Ali, apesar de considerar que o trabalho era razoavelmente bem pago, roubaram-lhe um mês desse mesmo trabalho. Considerou uma indignidade e isso roubou-lhe a serenidade e a alegria. Tinha consciência de que tomara uma decisão que podia ser perigosa, mas, ao mesmo tempo, não podia permitir tal desrespeito, tal desconsideração.

Não conseguiu dormir. Aliás, ninguém da família conseguiu dormir naquela noite de 2 de Maio de 1956.

A angústia do porvir povoava todo o pensamento. Até porque o ordenado acordado era considerado bastante bom. Mas estava decidido.

No dia seguinte logo o Rainho escreveu uma carta ao seu Tio Zé, em nome do pai, a contar o sucedido e a dizer que os esperasse, num prazo máximo de oito dias, em Luanda.

Durou menos de oito dias a espera. O Paiva, apesar de continuar a tentar dissuadir o Manuel da decisão que ele considerava precipitada, pôs-se à disposição dando ordens ao motorista para levar o Rainho a comprar os bilhetes de combóio e a propiciar todas as facilidades para lhe agradar.

Dia oito de Maio lá embarcou a família rumo a Luanda, não sem antes o Paiva, numa jogada de charme, tentar a alteração de planos. Para tal puxou da carteira e deu ao João 700$00 (Setecentos escudos) pelos dias que trabalhou a mais, acompanhados de uma recomendação: “Manuel, se se arrepender, se não encontrar trabalho em Luanda, não se esqueça, tem sempre aqui o seu lugar”. Seguiu-se o agradecimento educado e rumaram à capital de Angola. Mais um dia de viagem de combóio.

 

Capítulo 9

 

A chegada a Luanda foi um reencontro com a família e os amigos. A saudade já era bastante pois ainda não tiveram tempo de desfrutar de companhia uns dos outros havia mais de quatro anos, apenas com o interregno da passagem fugaz por Luanda quando desembarcaram.

Nessa noite foi encontrada a solução para a residência da família no Bairro Operário mesmo junto do grande largo que era, simultaneamente, campo de futebol, espaço de festas, bailes e passagem para a cidade dos ricos ou, pelo menos, para a cidade da classe média-alta.

Todos residiam muito próximo, num mesmo quarteirão, paredes meias com o Bairro do Cruzeiro, o bairro residencial do Estado destinado aos funcionários públicos.

Era uma quinta-feira e, no dia seguinte, o Manuel pôs-se em campo à procura de emprego. Não era nada fácil para quem da leitura e da escrita pouco sabia e, do trabalho, apenas era muito conhecedor das tarefas do campo.

O sábado, naquela terra e naquele tempo, já só era ocupado com o trabalho da parte da manhã pelo que os amigos que trabalhavam toda a semana tiveram tempo e disponibilidade para animar o Manuel dando-lhe esperança de que haveria de aparecer um emprego que permitiria começar uma nova vida.

Desde logo uma boa notícia o Rainho poderia começar a trabalhar na segunda-feira seguinte numa loja – espécie de tasca que vendia tudo o que era básico para a vida e ponto de paragem obrigatória para os indígenas que se deslocavam do musseque para o trabalho – onde compravam os artigos necessários para o almoço.

Em regra, cem gramas de fuba, outras tantas de amendoim (jinguba), açúcar, tabaco, óleo de palma, peixe seco e bebiam um copo de candingolo (uma espécie de cachaça que era feita da destilação da cana do açúcar), repetindo-se o ritual quando regressavam a casa e por ali passavam por volta das sete horas da noite.

Aproveitou-se o domingo para ir com o amigo e os pais para falarem com o proprietário da loja e acertar os pormenores da remuneração, horário e demais regras consideradas indispensáveis para iniciar funções.

Ficou decidido que começaria na segunda-feira e que o ordenado seria de cento e cinquenta escudos por mês, comidos e bebidos, com a obrigação de estar na loja às cinco horas da manhã para preparar tudo para receber os clientes que começavam a chegar por voltas das seis. Que a saída seria às nove horas da noite e que o trabalho era ininterrupto sem direito a folgas. Soube-se ali que nesse dia o Rainho começaria a trabalhar todos os dias da semana, incluindo domingos, dezasseis horas por dia, enquanto estivesse naquele emprego.

Logo foi aceite o emprego, apesar de ser quase um trabalho escravo, principalmente porque estamos a falar de um adolescente com pouco mais de doze anos de idade. É que os cento e cinquenta escudos davam para pagar a renda da casa e, enquanto o pai não arranjasse emprego, era uma ajuda preciosa.

Passou-se o fim-de-semana em amena cavaqueira e o Rainho a brincar com os filhos dos amigos do pai, uma rapariga mais velha três anos e dois rapazes mais novos, respectivamente, 5 e 3 anos.

Dia doze de Maio lá iniciou funções como trabalhador remunerado o nosso Rainho. Sem consciência do verdadeiro esforço necessário para desempenhar a função, mas sabedor que a vida é feita de trabalho e o que é preciso é ganhar dinheiro com honestidade, lá se levantou pelas quatro e meia da manhã, tomou um duche de água fria, que naquela latitude até é um factor de refrescamento e recomposição de força e atravessar o largo principal do bairro para entrar na loja que era a única casa com as luzes acesas àquela hora da madrugada.

A maioria dos trabalhadores iniciava o seu trabalho pelas oito da manhã, mas como as deslocações da maioria das pessoas para o trabalho era feito a pé, saía-se de casa, em regra, pelas sete da manhã para que se cumprisse a pontualidade. Dizer-se ainda que o sol nascia pelas seis da manhã e escondia-se para lá do horizonte, pelas seis horas da tarde. A proximidade do Equador fazia com que os dias e as noites tivessem a mesma duração todos os dias do ano.

Foi um trabalho duro. Muitas horas seguidas de trabalho. Muita tristeza. Muita aprendizagem. As defesas necessárias para enfrentar a dureza da vida. O que há de bom no ser humano e o que há de mesquinho, ambição, cretinice, malvadez no mundo do trabalho.

O patrão era um homem relativamente novo, talvez próximo dos trinta anos. De uma ambição inexcedível. Querendo enriquecer a todo o transe. Casado, com um filho ainda bebé, cuja esposa era o seu oposto. A bondade personificada. Uma jovem de vinte e poucos anos, bonita, que punha todo o seu carinho e a sua atenção no seu filho. Aos olhos de hoje não seria mais que uma escrava sexual. Mas já lá vamos para não perdermos o fio à meada.

António, de seu nome, tinha-se estabelecido há pouco mais de dois anos depois de ter sido empregado de balcão de uma média mercearia do centro da cidade de Luanda. Sem escrúpulos nenhuns, uma das primeiras coisas que ensinou ao Rainho era a forma de viciar a balança para poder subtrair nas pesagens e, assim, aumentar os seus lucros. Dizia constantemente que para ser um bom empregado devia roubar, sim roubar era o termo utilizado, o cliente sem que este desse conta. Com astúcia, com subtileza e demonstrava isso mesmo, na prática fazendo os gestos que tal proporcionavam.

É bom de ver que a um adolescente que foi criado num ambiente de rectidão e honradez esta atitude não agradava. Para além disso não tinha a sagacidade para fazer tais malabarismos sem que fosse descoberto pelos indígenas que estavam sempre desconfiados, porque eram vítimas sistemáticas deste tipo de expedientes.

Não raro o Rainho era descoberto nas artimanhas que o patrão lhe obrigava a fazer e a reclamação vinha sempre com alguma berraria do cliente que se queixava ao António dizendo: “patrão, o menino está a roubar na mesa”. Nunca o nosso garoto percebeu esta expressão, mas à qual se seguia uma descompostura com ar de azedume que muito entristecia o rapaz. Mas, mal o cliente virava as costas depois de ter sido ressarcido de alguns gramas, sempre menos dos que lhe tinham sido retirados, lá vinha a palmada nas costas com um sorriso malévolo e o incentivo. É assim mesmo rapaz, continua, não te preocupes, o que eu disse à frente do preto é para ele ir satisfeito não é por estar zangado contigo, pelo contrário.

À tristeza, o Rainho adicionava uma raiva que, se pudesse, na hora se despedia e ia embora para outro trabalho menos penoso e mais gratificante.

O descontentamento acentuava-se de dia para dia. Acrescia o facto de a Dona Lurdes, esposa do António, à hora das refeições que ela própria confeccionava e que comiam os dois, pois o marido comia primeiro para ir para o balcão já que a loja não permitia nenhum tempo de pausa, vir com conselhos sábios, prudentes, muito fruto da sua experiência e da sua infelicidade. “Rainho, não queiras isto para a tua vida. Olha para mim, vê como passo aqui a minha vida como se fosse prisioneira sem nunca sair de casa, tratar do meu filho e do meu marido e sem uma atenção dele e com muitas traições. Que arrependida que eu estou. Se soubesse o que sei hoje nunca me tinha casado com este homem que, no namoro, julguei ser um homem bom. Não queiras esta vida arranja outro emprego para, quando tiveres idade, poderes casar e dar à tua mulher a vida que eu não tenho”.

A cabeça do rapaz andava à roda com este tipo de aviso. Não compreendia o que era viver assim em casal. Já lhe tinha parecido haver falta de respeito do Paiva para com a esposa, na fazenda onde passara os primeiros dois meses e meio de Angola, agora com estes conselhos que eram ditos em segredo e era pedido segredo a confusão era total.

Não estava habituado a ver tal. Os seus pais respeitavam-se, amavam-se mutuamente, conversavam, faziam planos de vida, estimavam-se, viviam um ambiente de amor sem reclamações e agora via isto num casal bastante mais novo que os seus pais. Era muito estranho. Era muito confuso.

O desgosto do Rainho ia-se acentuando. Complementarmente começou a aperceber-se que entravam no armazém, através da loja, umas miúdas pretas mais novas que ele próprio, pois mal lhe começavam a despontar as maminhas acompanhadas por homens que julgava serem seus pais, uma de cada vez e o António entregava aos acompanhantes das miúdas uma garrafa de candingolo – aguardente de cana-de-açúcar – e outros produtos pelos quais não levava dinheiro, o que não deixava de ser estranho, para um homem tão agarrado ao dinheiro e tão ambicioso.

O tempo ia passando e, aos poucos, o Rainho foi-se apercebendo de que a Dona Lurdes tinha razão quando falava de traições. O António era um sabujo que aliciava os pais das pretitas, pouco mais do que crianças, para as desflorar. As miúdas saiam do armazém tristes, mas com alguns panos, bonecas ou brinquedos que, nem isso lhes trazia alegria ao rosto.

Os indivíduos sem escrúpulos tinham o péssimo hábito de coleccionar cabaços – desfloramentos de meninas – uma linguagem que, com a idade veio a compreender, mas que na altura lhe causavam estupefacção e depois asco, nojo. O António acumulava todos os defeitos que enojavam e enraiveciam o miúdo.

As conversas com a Dona Lurdes contribuíam cada vez com mais intensidade para que o Rainho se sentisse desgostoso com tal emprego, mas, o pai continuava desempregado e isso inviabilizava qualquer pretensão de mudança de trabalho.

O suplício durou cinco meses. Entretanto o pai empregou-se e, desde logo, o nosso rapazinho, que nestes meses amadurecera muito rapidamente, pediu ao pai para o deixar procurar outro emprego. Mais, que pedisse ao seu padrinho João António que trabalhava, porventura, na maior empresa multinacional que havia em Luanda na época, para lhe arranjar emprego o que aconteceu muito rapidamente.

Desta feita, quando chegou o fim do mês de Setembro, o Rainho despediu-se a chorar da Dona Lurdes, porque gostava muito dela e, ao mesmo tempo, tinha muita pena, mas, muito feliz por deixar de olhar para a cara do António, pessoa que detestava com todas as forças do seu ser.

 

Capítulo 10

 

No primeiro dia de Outubro de 1956 entrou na oficina da Robert Hudson & Sons, empresa de origem inglesa, cujos quadros superiores eram todos ingleses, na sua maioria engenheiros e economistas, e quadros intermédios portugueses que, em conjunto, geriam uma empresa que, bem se pode dizer, tinha tudo e fazia de tudo.

Era o único importador e representante da marca Ford. Viaturas de fabrico americano e marca de prestígio internacional, com tecnologia de ponta à época, principalmente nos automóveis que produzia. Na altura ainda não havia fábricas da marca na Europa e, muito menos na China.

Eram carros de luxo e de potência. Geralmente com motores de oito cilindros em forma de V, a gasolina que debitava uma potência superior aos duzentos cavalos. Naquele ano até foi importado, com destino a um fazendeiro do Norte de Angola, um modelo descapotável que tinha uma capota metálica que recolhida na bagageira e aparafusada electricamente por acção de motores eléctricos accionados pelo condutor. À vontade do utilizador podia ser um automóvel normal ou descapotável. O Ford Tunderbhird, o que dava muito jeito no clima existente. Pois tão depressa estava um Sol abrasador como, de repente, vinha uma carga de água de encharcar os ossos.

Para além dos automóveis também importava e distribuía tractores, Camionetas, mais ou menos de grande porte, mas não só viaturas e máquinas. mas, também, leite em pó “Nido”, azeite português em latas de cinco litros, ou detergente “Omo”, e outros produtos necessários à vida e ao bem-estar, como frigoríficos e outros electrodomésticos.

Uma grande empresa na verdadeira acepção da palavra. Cada secção tinha o seu encarregado que geria os trabalhadores e contactava com os clientes, já que toda a prestação de serviços era personalizada. Toda a gente conhecia toda a gente.

Acrescente-se que, na época, Luanda não tinha recenseamento obrigatório e, segundo se dizia, não teria mais do que trinta mil brancos e pouco mais do que duzentos mil negros e mestiços. Havia também, alguns milhares de emigrantes, cabo-verdianos que, em regra, viviam nos musseques juntamente com os negros e não se distinguiam muito destes.

O trabalho nesta empresa começava, para todo o pessoal, independente da cor, etnia ou nacionalidade, às oito horas da manhã. Terminava ao meio-dia para o almoço, retomava-se às duas da tarde e encerrava às seis da tarde, todos os dias da semana, excepto ao Sábado, que encerrava à uma hora da tarde e no Domingo que não se trabalhava.

O Ordenado era diário e pago à semana. O Rainho passou a ganhar dez escudos por dia e, como é bom de ver, não ganhava os domingos. Tinha de comer em casa dos pais, mas, mesmo assim, era muito melhor do que na loja do Bairro Operário.

Havia mais alguns rapazes com idades aproximadas que, tal como o Rainho, pretendiam aprender a arte de mecânico. Arte considerada de algum prestígio no meio operário, porque se ganhava razoavelmente e se tinham contactos com as classes mais endinheiradas.

O relacionamento entre os aprendizes era fantástico o que originou grande amizades que perduraram no tempo por muitas décadas depois, mesmo quando houve separação por motivos profissionais, de serviço militar obrigatório, e outros.

Com os mestres, o chefe de oficina, os empregados de balcão da secção de peças e até de alguns engenheiros que passavam bastantes vezes pela oficina, eram de respeito, consideração, obediência, mas de abertura ao diálogo.

Bom ambiente de trabalho. O vencimento é que não correspondia aos anseios da maior parte dos trabalhadores. Eram frequentes as queixas dos mais velhos que sentiam que não estavam a ser pagos de acordo com as suas competências. Talvez por isso, houvesse mudanças para outras empresas do ramo, que disputavam os bons artistas.

Apesar de tudo houve uma espécie de núcleo duro que se aguentou durante algumas décadas.

O Rainho esforçava-se por aprender e, talvez por isso, passou a ser disputado como ajudante dos mecânicos mais prestigiados e com mais poder dentro da oficina. Durante um ano passou por três mestres, sempre obedecendo às ordens do chefe da oficina que era para si, como se fosse o dono daquilo tudo.

Mas, ao fim de um ano, surgiu-lhe uma oportunidade para ir ganhar vinte e cinco escudos diários, com farda própria fornecida pela empresa, assistência médica e outras benesses, numa empresa diferente, mas que, inicialmente, julgava ser de continuidade de aprendizagem da arte da mecânica, puro engano.

A diferença monetária era de grande monta e, numa família que estava no princípio de uma nova vida, isso fazia toda a diferença. Desta feita, em franco diálogo com os superiores hierárquicos, o Rainho deixou a Robert Hudson e foi trabalhar para a Fábrica de Tabacos Sital, uma filial da Fábrica de Tabacos Ultramarina, uma grande empresa portuguesa, que recebia, tratava e embalava, nas mais diversas formas, os cigarros que eram distribuídos por toda a Angola. Em maço de vinte cigarros cada, ou em “roda” que continha trezentos cigarros e era para serem vendidos avulso.

Foi em finais de 1957, que o Zé entrou para a fábrica Sital e que também foi introduzida uma nova máquina de aplicação de filtro no cigarro e de uma nova forma de maço, em rectângulo, com papel mais duro.

O nosso rapaz já estava com catorze anos. Na fábrica trabalhavam mais cerca de vinte jovens, entre eles duas raparigas brancas, mais ou menos da sua idade ou pouco mais velhas, e havia apenas, um encarregado geral branco, já com cabelos brancos e mais dois empregados brancos, homens. Os restantes eram negros, homens, mulheres, rapazes e raparigas.

Muito bom ambiente de trabalho. Todos se tornaram rapidamente amigos. Passavam os intervalos juntos. Os momentos de espera pela hora de entrada a brincarem e faziam o percurso para as respectivas casas de residência juntos, ainda que alguns tivessem de dar uma volta maior do que o caminho em linha recta. Era o caso de dois ou três que morávamos para a alta da cidade e que dávamos uma volta, ao fim da jornada, para deixar em casa, as duas meninas brancas que eram irmãs.

A mais velha, de seu nome Rita, já meia mulher, de seios fartos e hirtos, já se pintava e arranjava antes de sair da fábrica e era o derriço do António, colega do Rainho. A Maria com menos dois anos, mais ou menos da idade do Rainho, que começava a despontar como mulher, com pequenos seios que estavam a despontar e se adivinhavam por debaixo do tecido fino do vestido. Ambas muito bonitas, de cabelo acastanhado, lábios carnudos, olhos castanhos e sorriso fácil e sempre pronto. Boas miúdas que, de alguma forma, foram o despertar para a sexualidade do nosso jovem. Não que tivesse algo mais do que amizade por alguma delas, mas cuja companhia lhe agradava e compensava a solidão de filho único.

O rapaz levava uma vida divertida, mas de muito trabalho e algumas preocupações. Quando chegava a casa, à noite, via a mãe preocupada com o pai a preparar-lhe uma bacia de água morna com bastante sal para amenizar as dores e sarar as bolhas que tinha nos pés de tanto calcorrear aquelas ruas da cidade que, não sendo muito grande, sempre tinha locais a distarem, entre si, cinco ou mais quilómetros.

O pai, o Manuel, conhecia mal a cidade e não sabia onde ficavam as empresas onde trabalhavam os sócios do sindicato dos trabalhadores do comércio. Sim, o emprego que arranjara fora o de cobrador das quotas que os trabalhadores tinham de pagar para terem assistência médica.

Na época tudo era pago em dinheiro contado e, muitas vezes, o Manuel seguindo a ordem alfabética dos talões das quotas, saía de uma ponta da cidade para outra quando depois descobria que, afinal, havia ainda outra empresa próxima do local onde tinha estado e que, por desconhecimento, o obrigava a lá voltar. Para cúmulo ganhava apenas mil e quinhentos escudos (um conto e quinhentos) e tinha de comer à sua custa o que contrastava com o ordenado que tinha na Fazenda do Zenza do Itombe.

A dureza da vida era mais que muita para todos mas havia a esperança de dias melhores e toda a família se entregava com todas as suas forças ao trabalho de transformar os momentos difíceis e tempos mais favoráveis.

Desde logo o pai do Rainho começou a estudar à noite, com um professor primário que lhe dava explicações, para fazer o exame da quarta classe, não só para ter o diploma que era muito importante, mas para melhorar as suas condições de empregabilidade e, sobretudo, para aprender mais e poder efectuar as contas e a escrita que o seu trabalho exigia.

Nos primeiros meses era o Rainho que, noite dentro lhe fazia as contas enquanto o pai contava o dinheiro recebido e as quotas cobradas para tudo dar certo sem qualquer tipo de erro. Era pouco dinheiro, mas eram muitíssimas parcelas. Apesar das dificuldades o tesoureiro do sindicato e o presidente sempre elogiaram o trabalho do Manuel, pois sabiam o esforço que fazia para que tudo estivesse correcto, apesar da insuficiência dos seus conhecimentos académicos.

Mas para quem quer trabalho e se esforça para cumprir o seu dever não há barreiras intransponíveis. Há desafios que é preciso superar e se superam.

No ano lectivo de 1957/1958 abriu, pela primeira vez, um curso nocturno na Escola Comercial que, na altura, funcionava no edifício da Associação Comercial de Luanda, na Vila Clotilde, bairro próximo da casa da família que situava na avenida dos combatentes da grande guerra.

O Rainho, desafiado por amigos, que já tinha alguns naquela altura, matriculou-se no primeiro ano do curso comercial para o frequentar à noite e, assim, melhorar as suas habilitações académicas e as suas condições de progressão na vida profissional. Foi uma porta que se abriu a muitos jovens que não tiverem a possibilidade de estudar para além da quarta classe do ensino primário.

Até parecia ser fácil conciliar as oito horas de trabalho diário com mais quatro horas de estudo em sala de aula, mas, de facto, não era.

O curso era frequentado por adultos, já casados e com filhos que queriam progredir na carreira, e por uma boa dezena de jovens, a maioria mais velhos do que o Rainho que viam naquele curso a possibilidade de virem a ser guarda-livros, hoje técnicos oficiais de contas.

Apesar do Rainho andar muito satisfeito com a vida, mais por inconsciência do que por facilidades, essa satisfação não resultaria em bom aproveitamento escolar.

Apesar do rapaz ser inteligente, segundo dizia toda a gente e, principalmente os professores, não dedicava horas suficientes ao estudo para poder obter melhores resultados.

Havia uma disciplina que se chamava Caligrafia onde se aprendia o cursivo inglês, a letra francesa e outras que necessitavam de treino. Não era difícil de aprender a técnica era difícil de executar, tinha uns aparos próprios que era necessário estar continuamente a molhar no tinteiro e para isto o jovem não tinha muita paciência.

Cumulativamente, em frente ao prédio onde funcionava a Escola Comercial, do outro lado da rua, havia o clube desportivo da Vila Clotilde onde se jogavam matraquilhos, ténis de mesa, cartas e outros jogos de mesa, como damas e xadrez.

É bom de ver que a atracção do Rainho pelos matraquilhos fazia com que os intervalos não chegassem para satisfazer a vontade de jogar e, as consequências foram a reprovação por faltas no fim do ano lectivo.

Esta reprovação foi um desgosto para os pais que nunca estiveram habituados a esses percalços e tinham a ideia de que o filho era um super-herói. Mais que aborrecimento foi a decepção por verem o filho cair do pedestal em que o alcandoraram. O rapaz tinha consciência de que não fizera o mínimo e que o castigo do chumbo era perfeitamente merecido. Serviu de lição, nunca mais na sua vida reprovou.

 

Capítulo 11

 

O Manuel ao fim de um ano de trabalho ganhou muitos conhecimentos, quer no domínio do trabalho, quer no domínio do saber, porque foi fazer o exame da quarta classe e foi aprovado sem qualquer benesse ou condescendência e, ainda, no domínio das relações pessoais. Conheceu muitas empresas e nessas empresas muitas pessoas, o que lhe permitiu arranjar novo emprego, mais bem remunerado e muito mais estável e sem necessidade de calcorrear as ruas da cidade.

Assim arranjou emprego na, então, fábrica da borracha que, como o nome indica, foi a precursora da fábrica de pneus. No caso concreto preparava a borracha para a recauchutagem de pneus de todas as medidas e feitios.

O Manuel foi para uma secção pioneira dentro da fábrica, que estava e esteve sempre em permanente ampliação e diversificação de produtos, que era a secção dos plásticos. Estamos a falar de pentes, botões, e até sapatos tudo produtos feitos através de injecção de plástico liquefeito que era introduzido em moldes.

O dono da fábrica era um empresário de muito valor. Empreendedor, bom conhecedor do ramo, antigo operário e que dava valor ao trabalhador. O Manuel encontrou no patrão, o senhor Macambira, mais do que um patrão, um amigo e, talvez por isso, ele tivesse sido mais do que um trabalhador, um homem preocupado com o trabalho sistemática e continuamente, a ponto de sair da cama às duas ou três da manhã para ir à fábrica ver se o turno estava a funcionar bem e se não havia preguiça ou desperdício.

A Fábrica que começara como manufacturação da borracha em poucos anos tornou-se uma das maiores empresas de Luanda que chegou a empregar mais de mil trabalhadores.

Diversificou a produção passando a tecer tecidos para lençóis, toalhas, pano para sapatilhas de ténis, aprimorou os plásticos onde passou a produzir tudo o que era possível pensar, mantendo os pentes, o calçado, mas indo para as embalagens de comida ou coisa maior, embalagens grandes para os mais diversos produtos, desde a fruta, aos galináceos. Passou a ser um potentado naquele domínio e uma referência em toda a cidade e, com o seu desenvolvimento, também os seus trabalhadores melhoraram substancialmente a vida.

O Manuel, no fim do ano de 1962, já era empregado naquela fábrica há cinco anos, foi chamado ao patrão para este lhe dizer: “Manuel não queres contruir uma casa”? Ao que este lhe respondeu: - querer queria, mas não tenho dinheiro para tal. E o Macambira lhe disse: - vai procurar um terreno no Bairro Popular como estão a fazer muitos dos teus colegas que eu te empresto o dinheiro para a construíres que é o que estão todos a fazer, ou julgas que eles têm mais dinheiro do que tu? O Manuel agradeceu a oferta do patrão, mas respondeu que não sabia conviver com dívidas e por isso não ia arriscar a construir a casa. Então o Macambira, homem justo, pegou num cheque onde escrevera cinquenta mil escudos (cinquenta contos), na altura já havia Bancos Privados em Luanda, nomeadamente o Banco Pinto & Sotto Mayor, e entregou-o ao Manuel dizendo que, já que era tão honesto que não queria dívidas merecia, pelo menos, uma bonificação pela dedicação e trabalho que dava àquela empresa.

Como já se disse, a vida dá tantas voltas que, um trabalhador rural que nada mais sabia do que tratar do amanho das terras, nas mais diversas tarefas, ao fim de pouco mais do que meia dúzia de anos se transformou num trabalhador altamente qualificado e grande amigo do grande empresário que era seu patrão. Era tão amigo que ele e toda a sua família fora convidado para o casamento dos filhos do patrão. Também ali trabalhou toda a vida até se vir embora para Portugal após a descolonização dita, exemplar, mas que melhor se diria desastrosa para portugueses e angolanos.

O Manuel quando melhorou as suas condições de vida profissional e económica achou que deveria dar aos seus irmãos que tinham ficado na Metrópole a mesma oportunidade que o seu irmão Zé lhe dera a ele e, por isso, começou a chamar para junto de si o seu irmão mais novo, o António que foi para Angola, Luanda em 1958, começou a trabalhar num escritório de uma boa empresa e que, continuando a estudar à noite, chegou a licenciar-se em Ciência Política e Administrativa pela Universidade de Lisboa.

Seguiram-se as suas irmãs mais novas e seu cunhado Joaquim pouco depois de ter estabilizado o estado da colónia depois do Golpe de 4 de Fevereiro de 1961.

Angola, até esta data, tinha sido ostracizada pelo regime político nacional e servia apenas para garantir à Metrópole a receita em matérias-primas que não possuía no seu território continental e insular. Porém, o golpe militar dos nacionalistas angolanos fez uma reviravolta na política e, com o envio de milhares de soldados para o combate, também se aboliu a carta de chamada e facilitou a entrada no país e este desenvolveu de forma exponencial.

Foram as obras públicas. A construção civil. A diversificação da agricultura com a cultura de frutas e criação de gado. Toda a mão-de-obra era escassa e o emprego era mais dos que os pretendentes. Também os ordenados subiram e as condições de vida de uma vasta classe média melhoraram substancialmente o que dinamizou o comércio interno e externo, bem como as importações e exportações.

A este desenvolvimento também não é alheio o incremento do transporte aéreo, até aí quase inexistente e à sua democratização, o que facilitou imenso o intercâmbio entre os portugueses de cá e de lá.

Deixou-se de ir para Angola como quem ia para o fim do mundo, para quem as famílias se despediam até ao dia do juízo, como se a separação fosse igual à morte e a perspectiva de visitar Portugal tornou-se bastante comum.

A família, agora alargada, pois viviam na cidade de Luanda seis dos oito irmãos do Manuel, com os respectivos filhos, mulheres, maridos e até sobrinhos, faziam uma grande família que todos os fins-de-semana se reuniam para confraternizar. Pode dizer-se sem margem para qualquer tipo de dúvida que eram felizes. E essa felicidade durou mais de dez anos.

Construíram as suas próprias casas e à medida que economizavam dinheiro investiam-no no seu bem-estar e no desenvolvimento daquele território que consideravam seu e onde queriam ser sepultados. Não foi assim, mas devido a vicissitudes que um dia a História Científica há-de clarificar.

 

Capítulo 12

 

Enquanto isso o Rainho mudara de novo para a Robert Hudson e ingressara num Movimento Católico já que a Acção Católica, também naquele tempo se desenvolveu e se incrementou, muito fruto do Concílio Vaticano II.

O rapaz ingressou na JOC (Juventude Operária Católica), verdadeira e autêntica escola de vida, de solidariedade, de amizade e de consciencialização pessoal, política e social.

Crescia, aprendia, lia muito, li tudo, estabelecia redes de amizades, conhecia pessoas diferentes do seu mundo até aí.

Apaixonou-se de tal forma pelo Movimento que, apesar do muito trabalho diário constituído por trabalho e estudo nocturno, não deixava de, nos domingos, ir às seis horas da manhã à primeira missa da sua paróquia para depois poder prosseguir com as tarefas inerentes à militância jocista, como era a venda do Jornal Operário, a visita aos doentes do Hospital, as reuniões sistemáticas e sistematizadas através do Método introduzido pelo Cardijn “RVO – Revisão de Vida Operária” onde se avaliava a semana passada e se projectava a semana seguinte.

Tudo isto era feito sem prejuízo de uma vida social intensa onde o Cinema tinha um papel importante. A leitura dos clássicos era também uma tarefa obrigatória, mas muito atractiva. As récitas e as festas na sede da JOC onde se congregavam jovens e as respectivas famílias já que o respeito existente atraía sem dificuldades pais e mães de jovens, principalmente das raparigas, que ali se sentiam protegidas e se podiam divertir sem correr riscos.

No trabalho as coisas também corriam bem. O Rainho viu, sem que o previsse, o seu trabalho reconhecido e compensado.

De um dia para o outro tudo mudou.

O Engenheiro Inglês, Senhor Pelikington, responsável pelo comércio de máquinas, sua instalação e manutenção, homem rigoroso, muito sabedor, mas também muito humano, entendeu que o melhor auxiliar que podia ter nessa tarefa era o nosso rapaz, agora com dezassete anos de idade e com um capital de experiência acima da média. Desta feita fez-lhe a proposta nestes termos:

“Olha Rainho eu preciso de um jovem que me ajude na implementação e desenvolvimento de um projecto que tenho na empresa que se traduz, sinteticamente, na reparação das bombas injectoras e injectores dos veículos a gasóleo que, como tu sabes, vendemos muitos nos últimos meses e anos, e já comprei uma máquina com tecnologia de ponta para afinar essas peças de precisão, que são o coração dos motores a diesel. Preciso que me ajudes nesse trabalho que é de grande responsabilidade e rigor. Para tal já mandei fazer as obras necessárias à instalação de um laboratório que ficará todo envidraçado e revestido a azulejo. Naquele laboratório só entrarás tu e eu. É vedado o acesso a qualquer outra pessoa incluindo o chefe da oficina. Só respondes perante mim com o teu desempenho. As instruções vêm em inglês e, qualquer dúvida na reparação e afinação consultas os manuais que te vou facultar e perguntas-me sempre que tiveres dúvidas. Vais passar a ganhar ao mês e ganharás dois mil escudos”.

Perante esta imensa responsabilidade o Rainho sentiu-se acanhado, intimidado, preocupado com eventuais ciúmes que poderia causar a colegas mais velhos e superiores, mas agradou-lhe sobremaneira o aumento significativo que iria receber e o estatuto que iria ter dentro da empresa ao depender apenas de um dos administradores mais importantes e, por isso mesmo ainda disse: “Senhor engenheiro eu domino mal a língua inglesa que, como o senhor sabe, só comecei a aprender há três anos e com muito poucas aulas por semana e, por isso, tenho receio de não ser capaz de corresponder às expectativas que o senhor engenheiro tem acerca de mim”. O Engenheiro respondeu rapidamente: “com isso não te preocupes. Eu sei do que és capaz e estou aqui sempre para tirar qualquer dúvida que tenhas. Com isso não te preocupes. Para além do mais eu, no início passarei por aqui todos os dias e, quando tu tiveres mais confiança em ti próprio, passarei a vir só quando for preciso. Há mais uma coisa. Estamos a importar do Reino Unido, da Alemanha e da América algumas máquinas para lavandarias, para fábricas de batatas fritas e outras indústrias que eu quero que tu acompanhes a respectiva instalação. Para isso vais escolher uma equipa de três pessoas da tua confiança e vais orientá-los nesse tipo de trabalho com a minha supervisão, ok?”.

O Rainho passou pelos momentos mais empolgantes da sua vida. Aceitou sem rebuço e começou, desde logo, a ler toda a documentação fornecida mesmo antes de o laboratório estar concluído. Deixou de usar fato-macaco e passou a usar calças, camisa e sapatos, facto que, como previra, causou alguma inveja àquelas pessoas cuja índole e carácter são propícios a sentimentos mesquinhos. Nesse pequeno grupo estava incluído o chefe da oficina que nunca gostara muito do Rainho e que com esta promoção se sentiu desautorizado e mais dois colegas, um mecânico e outro bate-chapas que nunca morreram de amores por si. Mas, em abono da verdade deve dizer-se que a maioria dos colegas e principalmente o subchefe da oficina, o Senhor Marques, grande amigo do Rainho e, porventura, a pessoa que informou o senhor engenheiro Pelikington, das capacidades deste, ficaram felizes e orgulhosos de verem o amigo a singrar de forma tão fulgurante na empresa que, de dia para dia, também crescia a olhos vistos.

A Empresa sempre foi uma referência da década de 20, do século passado, mas sofreu grande incremento e espalhou-se por toda a Angola no final da década de 50 e princípio da década de 60.

O Rainho sentiu, com aquele incentivo, que deveria ser mais estudioso, mais aplicado e muito mais responsável do que fora até aí apesar de ter sido sempre um trabalhador exemplar.

Deixou de ter tempo para alguns dos passatempos de que usufruía, mas, por outro lado, viu crescer em todos os seus amigos, mesmo os não colegas de trabalho, a sua admiração o que fez com que cada vez mais se aplicasse nas diferentes aprendizagens que a vida lhe estava a proporcionar e a amadurecer para a vida ainda de forma mais rápida. Sendo um jovem de apenas dezassete anos era, todavia, um adulto que passou a ser solicitado para dar a sua opinião sob muitos aspectos da vida.

Desde logo o seu pai que o consultava sobre a vida familiar. A dar-lhe toda a liberdade entregando-lhe uma chave de casa para poder entrar e sair sem ter de pedir autorização, apenas com a recomendação de ter cuidado com os perigos da cidade que começava a ser grande demais.

Também os tios e, sobretudo, os seus companheiros de trabalho e da JOC que, cada vez mais, o solicitavam como confidente de todo o tipo de preocupações.

 Decorria o ano de 1958 e, como se está a contar a história de vida do Rainho, bem se pode dizer que todas as décadas seguintes foram marcantes.

Não nos apressemos. Já lá vamos.

O ano de cinquenta e oito foi um ano agitado sob o ponto de vista político. Houve eleições presidenciais, coisa rara desde a aprovação da Constituição de 1933 e do poder absoluto do homem do leme, que era o Presidente do Conselho, Professor Doutor Oliveira Salazar. Com ele presidiu o General Carmona até à morte deste. Também o General Craveiro Lopes que, segundo alguns rumores, nunca se dispôs a ser seu pau mandado pelo que, depois de terminar o mandato foi substituído pelo Almirante Américo Tomaz.

Neste ano, na sequência de alguma movimentação política com o MUD e o MDPCDE, partidos políticos organizados, mas sem representação popular e com o PCP na clandestinidade, lá se deram passos para que houvesse eleições, ditas, livres podendo candidatar-se mais do que um candidato.

Desde logo o Candidato do Regime, Américo Tomaz apoiado pela União Nacional, partido único de então e o demais poder instituído.

Apoiado pelos movimentos políticos mais liberais também apareceu o General Humberto Delgado que, num arroubo de valentia, a uma pergunta de um jornalista sobre o que faria ao Dr. Salazar se fosse eleito, lhe saiu a frase assassina que lhe ditou a derrota naquele momento, apesar da onda de apoio popular que vinha sentindo em todo o país. Eis a frase: “obviamente, demito-o”.

Ainda houve um outro candidato, na circunstância um civil, de seu nome Arlindo Vicente, muito conotado com o comunismo internacional que, por não ter sentido o apoio que julgava poder vir a obter do povo, desistiu à boca da urna. Foi eleito, como era previsto, num regime sem liberdades, o candidato do Regime, o Almirante.

A Campanha eleitoral foi interessante sob todos os pontos de vista e até proporcionou, aos mais atentos, algumas lições. Desde logo com as palavras-chave dos candidatos. Os da oposição ao regime não tinham acesso à rádio e aos jornais, já o candidato do regime tinha até direito a cartazes informativos. Este candidato não dizia ao que vinha, mas apontava as consequências se algum dos outros fosse eleito. Então sobressaiam as seguintes frases: “quereis perder Angola votai no Arlindo Vicente”; “quereis a desordem e a anarquia, votai no Humberto Delgado”; “quereis continuar da senda da paz, progresso e bem-estar, votai no Almirante Américo Tomaz”. Curiosidades.

O Rainho ia tomando a consciência política e de ordem social, quer pelos factos narrados, quer pelos ensinamentos aprendidos na JOC. Concluindo, sem rebuço, de que só poderia aceder ao elevador social e melhorar a sua condição de vida se, cumulativamente, com a aprendizagem profissional aumentasse os conhecimentos académicos e respectiva certificação.

Enveredou então pelo ensino liceal por se coadunar melhor com o seu interesse. Mas o Liceu ainda não ministrava ensino nocturno, pelo que teve de se socorrer do ensino privado pagando mensalidades algo pesadas para fazer as aprendizagens necessárias para se poder propor a exame e obter resultados, como é bom de ver. Sim, naquele tempo, ou se mostrava o que se sabia ou ficava-se pelo caminho.

Mesmo assim valeu a pena porque num só ano conseguiu fazer aprendizagens que lhe permitiram candidatar-se, como aluno externo e maior, a fazer exame do 2º ano, no Liceu Salvador Correia de Sá e Benevides, em Luanda tendo ficado aprovado.

A consciência de que seria necessário ir mais longe levou-o a frequentar a secção de Letras do 5º ano. Naquele tempo o ensino Liceal era composto pelo primeiro, segundo e terceiro ciclos, sendo que o primeiro correspondia ao 2º ano, o segundo ao 5º e o terceiro ao 7º ano. No segundo ciclo havia a possibilidade de fazer exame a Letras e a Ciências de forma conjunta ou separada e no terceiro ciclo era disciplina a disciplina sendo que se podia fazer todas ou uma de uma vez.

Mais um ano de estudo e a candidatura à secção de Letras do segundo ciclo e também aqui obteve aprovação. Tal feito mereceu o elogio de colegas e amigos e até houve alguns amigos que decidiram enveredar pelo mesmo caminho.

Entretanto chegámos ao ano de 1961 e, logo no início, mais precisamente em 4 de Fevereiro eclode uma pequena revolta na Casa da Reclusão – assim chamada a penitenciária que albergava militares castigados por infracção às leis militares e alguns civis punidos por crimes comuns – da qual resultaram uma dezena de mortos entre os militares da ordem pública e os revoltosos. A história veio a demostrar que se iniciou, naquele dia, aquela que viria a ser a designada a guerra colonial, que durou cerca de catorze anos e provocou alguns milhares de mortos de um lado e do outro da contenda.

Aquilo que pareceu uma derrocada para quem vivia em Angola, principalmente, depois dos ataques terroristas do Úcua, onde chacinaram homens, mulheres e crianças, brancos, negros e mulatos, à catanada, com violações e castrações hediondas e com manifestações canibalescas indescritíveis veio, no imediato, a revelar-se como o arranque do desenvolvimento daquele território, há cerca de quinhentos anos, em perfeita estagnação.

Uma evidência era o facto de haver em toda a Angola, uma estrada alcatroada com, apenas, sessenta quilómetros de distância, fora das cidades. A Estrada Luanda Catete. Depois de 1961 e até 1968 todas as capitais de distrito foram ligadas pelo asfalto incluindo nestas estradas a célebre serra da gleba a mais acidentada de toda a Angola e, segundo se dizia, cada quilómetro custou mil contos.

Passou-se de um território onde era extremamente difícil arranjar emprego a emprego pleno. À construção de escolas e hospitais para todos, para além do apetrechamento dos portos marítimos e do desenvolvimento de aeroportos internacionais ou aeródromos locais com pistas alcatroadas e iluminadas.

As Infraestruturas de saneamento básico em todas as cidades e vilas com especial relevo para Luanda onde fizeram adutores para águas pluviais que obviaram às derrocadas tendo sido a última, de grandes dimensões, nos últimos dias de Março e primeiros dias de Abril de 1963.

Assim, apesar da guerra, com a chegada maciça de militares da Metrópole, Angola desenvolvia-se a olhos vistos.

Havendo focos de instabilidade a Norte do país, com mortes e outros malefícios de qualquer guerra, nem por isso se vivia com medos, particularmente, nos centros urbanos, nomeadamente em Luanda.

Pode até dizer-se que era época áurea de progresso de bem-estar de vida feliz para todos, brancos e negros. Porque havia a política de não discriminação houve até uma maior e mais acentuada integração de negros no Estado, através dos diferentes tipos de Administração, escolaridade obrigatória para todos e escolas espalhadas por todo o lado incluindo os musseques.

Até se criou a Universidade com a maioria dos cursos disponíveis, incluindo medicina, o que permitiu à classe média por os seus filhos a estudar, de forma muito natural, prosseguindo estudos, porque já não havia a necessidade de os enviar para a Metrópole com os consequentes custos económicos e emocionais.

Capítulo 13

 

O ano de 1963 foi para o Rainho um ano de muita animação, alegria e mudança de vida.

Era o ano em que completaria vinte anos de idade e, consequentemente, se sujeitaria, obrigatoriamente, à inspecção militar como todos os rapazes da sua idade.

Em Fevereiro foi-lhe proposto ir à Metrópole, para participar no Grande Encontro da Juventude, para representar a JOC de Luanda. Para tal, o Movimento iria desenvolver actividades para angariação de fundos que permitisse custear as viagens e estadia de oito dias em Lisboa. Ficou de pensar no assunto e pensou.

Decidiu que iria solicitar à empresa onde trabalhava há cerca de seis anos que lhe concedesse a licença graciosa a que tinha direito, que era um dos benefícios concedidos aos trabalhadores com mais de cinco anos de serviço. Se a empresa aceitasse, naquele momento, abria-se a possibilidade de se deslocar a Lisboa sem custos para si e sem custos para o Movimento e permitiria que prolongasse a estadia por seis meses com o ordenado pago por inteiro.

Aceite esta solução pela empresa foi decidido, em tempo record, que o Rainho se deslocaria à Metrópole. Foi preciso comprar roupas adequadas ao frio já que em Luanda se passava o ano inteiro em mangas de camisa e, quando muito, na estação do Cacimbo, com um muito ligeiro casaco de malha e, consequentemente, não dispunha de roupas quentes. Era necessário mandar fazer fatos completos para rechear a mala de viagem. Não havia pronto-a-vestir e fazer por medida levava o seu tempo. Uma correria, portanto.

No dia um de Abril, dia dedicado à mentira, mas que, neste caso, infelizmente fora bem verdade, caiu uma borrasca de chuva que tudo levou à frente. A cidade de Luanda tinha crescido muito e muito depressa e, como diz o povo, “depressa e bem não há quem” com muitas lacunas e com um sistema de drenagem e até de saneamento básico muito rudimentar. Daí que a quantidade de água fora tanta que rompeu estradas e fez dela autênticos rios tumultuosos, muito caudalosos e destruidores de ruas, passeios, residências, casas comerciais, principalmente na Baixa de Luanda.

Também este episódio condicionou os últimos preparativos para a viagem do Rainho, como a compra de prendas para a família e outras coisas necessárias para uma estadia longa e distante.

Conseguiu-se uma viagem no navio Angola para o dia 3 de Abril. O evento em Lisboa realizava-se nos dias 19, 20 e 21 de Abril. A viagem demorava 11 dias. O Avião ainda não era um transporte muito usado e demasiado caro. Tudo se conjugava e se revelou como possível de concretizar porque a determinação era total.

O navio Angola, não sendo dos mais modernos da frota nacional, já tinha alguma qualidade e porte. O Rainho viajava em 2ª classe – de referir que ainda havia 3ª e 1ª classe – os bilhetes também custavam um valor diferenciado de acordo com estas classificações e as condições de alojamento eram, também, bastante diferentes, de acordo com a tipologia da classe em que se viajava.

Em segunda Classe havia camarotes de 2, 4 e 6 lugares, em primeira havia camarotes individuais e em terceira os dormitórios eram colectivos.

O mesmo se passava com as salas de jantar que também eram diferenciadas.

Mas o Rainho preocupava-se pouco com estes pormenores. Viajava com um outro sujeito bastante mais velho, mas o tempo era passado na piscina a nadar ou nos espaços de lazer, a disputar torneios de ténis de mesa onde se safava bastante bem. E, como é bom de ver, a viagem correu maravilhosamente. Foram onze dias de puro lazer e divertimento.

Para quem, desde criança, só tinha tido tempo para trabalhar, no duro, era uma experiência incrível.

Dia 14 de Abril lá chegou ao cais da Rocha. Naquele ano o dia 14 de Abril era domingo de Páscoa. Dia de festa da família na aldeia, mas que passava muito tenuemente despercebida na cidade grande.

 Esperava-o uma prima do pai que residia numa casa muito modesta no Campo de Santa Ana, onde com a boa vontade e hospitalidade característica da família sempre havia lugar para mais um.

Ali esteve durante cerca de dez dias. Os primos trabalhavam muito. Cada um tinha dois empregos. Ela, no Matadouro Municipal e de madrugada, entregava Jornais porta-a-porta. Ele, numa indústria de produtos químicos, principalmente detergentes e que, ainda mais cedo, ia à distribuidora dos Jornais para deixar um molho para ela e ele carregava com outro para territórios mais distantes para poupar a mulher a um esforço tão significativo. Tudo era feito a pé. Naquele tempo os transportes privados eram só para os ricos e os públicos eram caros e não davam a resposta necessária.

Esperava o evento que foi o primeiro motivo da sua vinda à Metrópole o Grande Encontro da Juventude, assim designado por ser um encontro de jovens de todo o país e que comungavam os ideais da Acção Católica portuguesa e mundial. Uma grande aposta do Papa João XXIII com o empenho total do cardeal-patriarca de Lisboa.

O evento que sob o ponto de vista espiritual, mas também de vivência e comprometimento social marcou a sua vida, indelevelmente, para sempre. Mas houve outro factor que foi o despoletar de todo o seu projecto de vida para futuro. Encontrou, reencontrou, como se queira, uma jovem lindíssima que se apoderou, de imediato e para sempre, do seu coração virginal.

Moça esbelta, olhos castanhos, tez morena, cabelo negro, longo, enrolado no cocuruto de forma artística, cintura fina, seios firmes e arredondados, pernas bens torneadas, sorriso franco e aberto, recato nas atitudes e comportamentos, porventura até um pouco tímida. Mas, muito mais do que estes atributos físicos que eram muito atraentes e cativantes, foi a sua pureza de sentimentos nobres e, igualmente, o seu coração virginal que prendeu, com amarras indestrutíveis, o coração do nosso jovem.

Falou-se em reencontro porque, de facto, tinham sido colegas na escola primária, no ano em que fizeram a quarta classe. O primeiro ano de uma turma mista, na aldeia da naturalidade, quando tinham dez anos de idade e nunca mais se tinham visto, desde a partida do Rainho para a África.

A Teresinha, assim se chamava a jovem tinha, entretanto, ido estudar para um colégio privado, com sede no concelho da sua residência e ingressado também num Movimento da Acção Católica designado por JEC (Juventude Estudantil Católica) e essa circunstância também a encaminhou para o evento juvenil que mobilizou milhares de jovens em todo o país.

A vida nem sempre é o que queremos, mas é aquilo em que se transforma por circunstâncias, mais ou menos fortuitas, e um evento que seria um sacrifício pessoal no seu início, veio a revelar-se como um desígnio de felicidade para todo um futuro. 


Capítulo 14

 

A vida destes dois jovens, oriundos de uma aldeia do interior profundo, dum país a preto e branco, naquele mês de Abril de 1963, sem saberem bem o porquê, deu a guinada que iria marcar o futuro. Apesar de muito novos sabiam muito bem o que queriam para si e para a família que iriam constituir.

Desde logo, porque não eram dados a aventuras ou namoricos inconsequentes. Tinham no seu íntimo a nobreza de carácter que não permite brincadeiras com os sentimentos mais nobres e mais profundos do ser humano.

Desta feita foram estabelecendo a relação de amizade que iria permitir dar o passo em frente para uma relação mais comprometida entre um homem e uma mulher. Tal veio a oficializar-se em 4 de Agosto do mesmo ano, já depois da Teresinha ter efectuado os exames no Liceu da sede do distrito.

Foram tempos idílicos de enamoramento permanente.

Durante o dia acompanhava a Teresinha mais as suas irmãs até ao campo para recolher frutas, legumes para consumo da casa. Ia à fonte e aos poços – na época não se falava nem se sentia o fenómeno, poluição – buscar água, já que ainda não havia água canalizada em casa. A aldeia não dispunha de um sistema de saneamento básico.

À noite reunia-se a um grupo de amigos para, além dos “comes e bebes” saíam umas cantorias e umas guitarradas.

Dormia depressa, o mesmo é dizer pouco, como é próprio de quem está apaixonado. Lá diz o adágio popular: “duas horas dorme o estudante; três o amante; quatro o pastor; cinco o almocreve; seis quem tem a vida leve”...  e, no caso, havia um amor abrasador, inquieto, delirante.

O mundo não existia para além destes seres que saboreavam com deleite o amor partilhado e, por isso, faziam planos.

As suas conversas eram, quase sempre, a projecção do futuro. Com o presente bem consolidado olhavam para futuro com alegria, ambição, esperança. Havia, porém, duas coisas que toldavam essa antecipação da felicidade. A primeira era a reserva que o pai da Teresinha tinha relativamente àquele namoro com a consequência, imediata, não a deixar continuar a estudar. A segunda era a, cada vez mais próxima e eminente, ida para a tropa do Rainho. Em tempo de guerra esse destino não deixava de trazer angústia, principalmente, para quem ficava e deixava de saber o que se passava com aqueles rapazes, a quem faltava vida e experiência para se confrontarem com tantos perigos e outras vicissitudes.

A separação que se antecipava era dolorosa e, por isso, era debatida entre os dois definindo estratégias que minimizassem o sofrimento que tal iria acarretar.

Os vinte anos dos rapazes daquele tempo era tempo de viragem e mudança de vida para quase todos. Inspecção militar, que dava quase sempre como resultado “apurado para todo o serviço militar” e ingresso no Serviço Militar Obrigatório que, na época, era muito longo e penoso para todos.

Verdade se diga que, também, trazia alguns benefícios no que respeita ao amadurecimento da personalidade, apuramento de valores como ética, disciplina, amizade, solidariedade e um sentimento de dever patriótico. Mas, em regra, trazia três ou quatro anos de suspensão da vida pessoal e profissional, para a maioria dos jovens do sexo masculino, da década de sessenta do século passado, para além do sacrifício, do risco da própria vida, com morte ou invalidez para muitos.

As guerras nunca trouxeram nada de bom, a não ser para os magnatas das armas ou para os que beneficiam da ruptura social que qualquer guerra traz consigo. A guerra colonial como, erradamente, muitos apelidam o conflito, foi a afirmação de uma nação que se queria una e que era entendida, pela maioria da população como tal, foi uma luta pelo poder de ideologias com pouco de confessável e muito menos de altruísta. Mobilizou mais de um milhão de mancebos portugueses de cor, etnia e territórios diversos.

No caso vertente o Rainho passou por todas as vicissitudes inerentes, com as angústias implícitas, os medos e as incertezas conexas.

Ilustra o facto de ter ido a um laboratório fotográfico tirar uma fotografia com seus pais pois, naturalmente, estes queriam ter uma recordação em imagem se acontecesse alguma desgraça.

Para o Rainho a ida para a tropa, assim se dizia corriqueiramente, fora encarada com a normalidade a que se vinha mentalizando desde os seus dezasseis anos de idade. Porém, agudizou-se a angústia pelo facto de se ver sozinho num ambiente diferente daquele em que fora criado com o fardo da saudade do seu amor e da impossibilidade de lhe escrever diariamente como estava habituado.

Na circunstância, esta mudança de vida, fora tão dolorosa quanto a ausência da sua amada com a qual desejava ardentemente contrair matrimónio o mais rapidamente possível a, tal ponto, que ainda durante o tempo de cumprimento do Serviço Militar levou a cabo o seu intento, ainda que fosse na fase final do mesmo. Casou-se em Setembro e passou à disponibilidade no dia trinta e um de Março do ano seguinte.

Daqui se infere que, ainda que não houvesse sofrimento físico, já que fora colocado num batalhão de armas de serviço especial, transmissões de engenharia e, por essa circunstância, tenha cumprido todo o tempo de militar na capital de Angola, Luanda, cidade sem conflito e com uma qualidade de vida excepcional, já não se pode dizer o mesmo do sofrimento emocional.

Como graduado que era, também recebia um soldo que lhe permitia manter uma qualidade de vida acima da média dos jovens do seu tempo.

Apesar de, passados muitos anos e recordar a boa experiência que foi a vida militar, vista à distância, também ressalta a ideia de que não se identificava com a vida militar. Foi convidado, talvez seja mais rigoroso dizer-se, foi pressionado a remeter-se a uma nova comissão com uma promoção imediata, mas não era, de facto, aquilo que pretendia para si e para a família que pretendia constituir, o mais rapidamente possível e recusou, liminarmente, tal sugestão. Cumpriria se fosse obrigado. Dando um passo que fosse para que tal acontecesse, jamais.

Assim, ainda antes de terminar o tempo obrigatório resolveu casar-se. Não aguentava mais tempo longe do seu amor.

Aos vinte e dois anos, quase a completar os vinte e três, deu o passo que ambicionava dar desde os vinte e contraiu matrimónio cristão, católico, com a mulher que sempre considerou ser a única de toda a sua vida.


Capítulo 15

 

Em meados de Setembro de 1966, numa capelinha afastada do centro urbano, mas não muito longe deste, na presença de cerca de cento e cinquenta convidados que para ali foram transportados por autocarros alugados, presidida pelo Arcipreste da altura, Reverendo Padre Manuel Toscano, realizou-se a cerimónia de casamento entre os nubentes Teresinha e Rainho.

Um dia de felicidade plena se, porventura, há plenitude na felicidade humana enquanto peregrinos neste vale de lágrimas!

Depois de cerimónia, das assinaturas no livro próprio dos registos matrimoniais e das fotografias da praxe - sim, havia um fotógrafo contratado, que veio da sede do distrito e que cobrou 500$00 pelo serviço, uma extravagância cara, mas que valeu a pena, pois deixou umas fantásticas fotografias para memória futura, que o casal guarda com todo o carinho - rumaram à sua aldeia para a “boda”.

A boda eram os comes e bebes para todos os convidados.

O uso e costume era os convidados do noivo irem para a boda do noivo e os convidados da noiva irem para a boda da noiva. Enquanto isso, os noivos iam almoçar a um dos lados e jantar a outro, acompanhados pelos padrinhos de ambos os lados.

Também neste casamento se cumpriu a tradição. Porém, os convidados jovens, solteiros, eram convidados dos dois lados pelo que, ao almoço, se juntaram todos na boda do noivo. Depois de comidos e bem bebidos, de partir do bolo de noiva começaram a verificar-se algumas movimentações, durante o baile, dos jovens amigos.

Começava a haver, na altura, algumas partidas aos noivos nos automóveis que os conduzissem para fora da aldeia.

Para os que ficava na terra eram as jovens raparigas que se encarregavam, desde tempos muito remotos, de fazer algumas tiranias na cama, para criarem situações embaraçosas na hora de se deitarem.

No nosso caso, como tínhamos um Volkswagen 1300 parado à porta da casa onde decorria o baile, começou a sentir-se que havia segredinhos entre os jovens, rapazes e raparigas, o que nos ia deixando com a pulga atrás da orelha. 

Então, sorrateiramente, com receio justificado, de que os amigos do novo casal fizessem alguma partida que desse brado e mote para as conversas dos dias seguintes, pegaram no carro que o Rainho tinha alugado em Lisboa e partiram para uma Lua-de-mel que teve início na capital de distrito e prosseguiu em Lisboa durante mais oito dias.

Pelas oito horas da manhã do dia 15 de Setembro de 1966 saímos de Castelo Branco rumo a Lisboa. Parámos em Nisa para tomar o pequeno-almoço. Não o tínhamos feito antes porque a Teresinha, naquele tempo, não gostava de comer e quando eu propus que fossemos comer antes de sairmos da cidade ela não quis. Disse não ter vontade. Porventura teria, também, medo de enjoar o que veio a acontecer pouco depois de termos comido. Parámos para ela aliviar e depois retomámos a viagem pela estrada nacional que era miserável, quer em termos de traçado, dimensão e pavimento. Não raro demorava-se mais de cinco horas para se chegar a Lisboa.

A Teresinha, mal retomámos a viagem, adormeceu e, não fora um camião dos bombeiros vir a assinalar a marcha à entrada de Santarém, não sei o que poderia ter acontecido. Também eu adormeci, por segundos, ao volante. Foi um susto que me serviu para parar à saída de Santarém debaixo de uma árvore para dormitar e, assim, me libertar do sono. Também a Teresinha se assustou muito e, nunca mais, até hoje dormiu numa viagem.

A ida para Lisboa em lua-de-mel tinha também algumas obrigações. Desde logo o exame final do estágio nos CTT – Correio, Telefone e Telégrafo de Portugal - que a Teresinha tinha concluído em finais de Agosto. Mas também a confirmação da passagem aérea para ela, que já tinha sido adquirida, mas da qual era necessário resgatar o Bilhete e demais acessórios existentes na altura. Quem viajou naquela época de avião sabe que as companhias ofereciam um saco de viagem muito interessante e muito útil para levar pequenas coisas connosco. A bagagem toda, era obrigatório, ir no porão.

Para além destas questões de ordem prática havia também o interesse em conhecer melhor a cidade de Lisboa, frequentar alguns espectáculos e cinemas, tudo aquilo que a Teresinha ainda não tinha podido usufruir.

Não sei se já se disse, mas nós, até casarmos e, desde os 14 anos de idade, éramos cinéfilos compulsivos. Em Luanda corríamos todos os cinemas e víamos todos os filmes em cartaz e, alguns, até víamos mais do que uma vez.

Fizemos questão de ir ver uma revista com o Raúl Solnado no Teatro Vilaret, recém-inaugurado, junto a Picoas. Uma peça interessantíssima, mas da qual já não recordo o nome. Mas que estava na Moda em Lisboa já que o Solnado, naquela altura, era um expoente máximo do teatro da comédia em Portugal.

Fomos passar um dia com a Laura, a melhor amiga da Teresinha que, por trabalhar no SNI – Serviço Público muito virado para a propaganda política do regime – não pôde assistir ao casamento. Desde logo resolvemos passar um dia diferente. Apanhámos a Cacilheiro e fomos até Cacilhas almoçar a um dos melhores e mais conceituados restaurantes, o Ginjal. Depois de almoço regressámos a Lisboa e fomos ao cinema e ao fim da noite fomos levar a Laura à casa onde vivia que era de um seu tio.

Um episódio deveras interessante se passou no dia 15 de Setembro à chegada a Lisboa. Como conhecíamos mal a cidade resolvemos estacionar o carro no Campo das Cebolas, um espaço enorme, apenas terraplanado muito próximo do Terreiro do Paço e apanhar um táxi que nos levasse a um hotel na Baixa. O taxista homem bastante simpático, depois de lhe expormos a nossa pretensão resolveu levar-nos até ao Hotel Bragança junto ao Cais do Sodré no início da Rua do Salitre. O tal Hotel onde viveu o Eça de Queirós. Deu-nos por conselho que fossemos lá ver se havia quartos disponíveis antes de retirarmos a bagagem do táxi pois, caso não houvesse levava-nos a outro hotel.

Fui lá eu como é bom de ver. Fui em mangas de camisa, uma triple marfel preta de veludo que estava na moda. Barba por fazer de dois dias. Como é expectável, o aspecto não seria dos melhores. E o aspecto era extremamente importante no País naquele tempo. Quem não usasse fato e gravata era mais ou menos labrego.

Dirigi-me à recepção onde um recepcionista, já entradote na idade muito aperaltado, me atendeu. Quando lhe perguntei se tinha disponíveis quartos de casal o senhor, num misto de delicadeza e desconfiança devolveu-me a pergunta assim: “sabe que isto é um hotel?”. De sobrolho franzido respondi-lhe: “eu perguntei-lhe se tinha quartos disponíveis não lhe perguntei que tipo de estabelecimento era”. O senhor não estaria à espera de obter de um jovem de 23 anos e um pouco mal vestido para os padrões ficou muito atrapalhado e respondeu que sim. Então disse-lhe: vou ao táxi buscar as malas e a minha mulher e já volto para fazer efectuarmos os procedimentos normais.

Assim foi e, depois de tudo tratado por um período de oito dias, o senhor para compensar fez questão de me ir mostrar o quarto e levar as malas. Quando chegámos ao quarto dei-lhe uma nota de vinte escudos (20$00) de gorjeta. Abriu muito os olhos, até porque vinte escudos era muito dinheiro naquele tempo, e então desfez-se em amabilidades, que ia mandar servir o jantar no quarto que faria tudo o que nós precisássemos, etc. Rimo-nos muito com a situação, mas era a prática num país cinzento onde a servidão era total, mas também o abuso dos pequenos poderes e os preconceitos eram o pão nosso de cada dia.

Depois destes dias passados em Lisboa regressámos à aldeia, deste Portugal Profundo que, sem estradas condignas, mais parecia situar-se no fim do mundo, para se viverem mais uns dias em que se sentia a angústia dos pais, dos irmãos e, especialmente, do avô da Teresinha por sentirem a separação, que cada dia que se passava mais se aproximava da sua concretização. Um misto de angústia e inevitabilidade. A separação dos entes queridos, seja temporária ou permanente, causa dano. Machuca o coração.


Capítulo 16

 

A chegada a Luanda, dia 27 de Setembro foi uma festa. A minha família e os meus amigos fizeram questão de receber bem a minha mulher. Almoçámos em casa da minha tia Paulina, depois fomos fazer uma sesta porque passámos a noite no avião e não dormimos nada, como é natural.

À noite juntámo-nos com alguns amigos, fomos ao cinema e depois ainda demos uma volta pela Ilha tendo parado na Barracuda para beber um copo.

Toda a gente queria que a minha mulher não se sentisse deslocada. A JOC, no primeiro fim-de-semana que se seguiu à nossa chegada organizou um bailarico e uma pequena festa onde nos foi entregue uma prenda de casamento, um quadro grande de Jesus Cristo Ressuscitado que ainda existe cá em casa. Foram momentos de felicidade indescritível.

Iniciámos uma vida diferente. Uma vida a dois. Começámos por ir às compras para casa. Bens alimentares e outros. Não estávamos habituados. Nenhum de nós alguma vez o tinha feito e foi estranho. Andámos às aranhas, como costuma dizer-se. Mas, como em tudo na vida, aprendemos e foi mais uma peripécia de uma vida a dois.

Eu ia para o quartel às oito horas da manhã e a minha mulher ficava sozinha em casa. Tinha a sorte de ter uns tios meus que viviam nas proximidades o que lhe permitia ir até lá e passar melhor o tempo.

Quando regressava procurava mostrar-lhe a cidade. Metíamos no carro e dávamos uma volta.

Ao fim de quatro meses mudámos de casa. Fomos viver para um prédio de cinco andares com elevador numa das avenidas mais movimentadas da cidade, a Avenida Paiva Couceiro junto ao Complexo de S. Paulo, que incluía uma igreja, um colégio para meninas e a residência dos sacerdotes, franciscanos italianos.

Fomos viver para o quarto andar. No rés-do-chão havia comércio de tudo, desde um stand de automóveis até uma agência funerária, passando por um quiosque de jornais e mercearia onde nos podíamos abastecer de tudo.

A gravidez da Teresinha ia-se acentuando e desenvolvendo. Os meus pais, entretanto, tinham regressado de Portugal e, consequentemente, fazíamos-lhe visitas constantes.

A Teresinha passou a dar umas explicações para que uns adultos familiares e amigos se pudessem candidatar ao exame do 1º ciclo, assim se designava o segundo ano do liceu.

Em Janeiro de 1967, sabendo que passaria, durante o decorrer desse ano, à disponibilidade do serviço militar decidi meter as férias a que tinha direito, ou seja, os trinta dias de licença mais os cinco dias da alínea do Regulamento de Disciplina Militar.

Se a minha vida militar até me casar fora um mar de rosas, pouco tempo depois houve mudanças de chefias militares e, particularmente, o segundo-comandante do Batalhão, um major que nem quero mencionar o nome, só me trouxe problemas.

Começou por querer revolucionar as instalações para as viaturas querendo como que expô-las como frota visível do exterior da vedação do quartel, que era em rede de arame até ao controle total dos boletins das mesmas viaturas, controlando até a viatura do Comandante, Tenente-Coronel Morais Leitão.

Queria que todos os condutores estivessem numa espécie de prevenção mesmo aqueles que não tinham tarefas atribuídas.

Ao mesmo tempo, não tinha pudor em mandar o seu motorista para sua casa ficando à ordem da sua mulher. A propósito disto não havia nenhum motorista que quisesse ser efectivo dele o que me causava alguns constrangimentos porque, cada um que ia para aquele serviço, passado poucos dias, dava baixa na enfermaria com hipotéticas doenças para não suportar o feitio miserável do major.

Um dia aparece-me o condutor (motorista) pálido, à minha frente, a pedir-me para o retirar daquele serviço. Preferia ser enviado para o mato. Estranhei tal pedido e pressionei para que me dissesse a razão que intuía ser de força maior. Depois de muita insistência o rapaz lá me disse o motivo. A mulher do comandante, uma trintona pouco assisada, aparece ao condutor em lingerie transparente a convidá-lo para entrar em casa e o rapaz não sabia o que fazer. Ficou atrapalhado desculpou-se como pode e fugiu para o quartel. Por um lado, não queria atraiçoar o Major com medo das represálias, por outro não queria deixar a mulher ressabiada com a recusa de atraiçoar o marido e que ela se pudesse vingar de ser desfeiteada.

Talvez isso fosse do conhecimento do Major, mas nós, rapazes de vinte e poucos anos é que não estávamos habituados a conviver com este tipo de situações.

O certo é que eu e o Major passámos a dar-nos com alguma frieza. O homem era muito egocêntrico e queria que toda a gente lhe dissesse amém.

Começou por me pedir opiniões para tudo e para nada só para ouvir a minha concordância. Quando tal não acontecia procurava argumentar e, com as suas ideias fixas, quando perguntava já tinha decidido levar a sua ideia avante. Percebendo esta atitude comecei por dizer a tudo que sim. Deixei de dar opiniões e limitei-me a dizer que sim a todas as barbaridades que ele cometia. Não se passou só comigo, mas com todos aqueles que tinham que trabalhar directamente com ele como era o caso do primeiro-sargento da companhia o Vultos que, coincidentemente, era meu vizinho no prédio ao lado do meu e muitos outros. Não se dava bem nem com o comandante já se pode ver o tipo de pessoa.

Como era vingativo procurava sempre prejudicar-me chamando-me à hora de saída para qualquer tipo de conversa da treta, só para me reter no quartel entre outras coisas. O que quer dizer que a vida militar passou a ser um fardo.

Como disse atrás umas férias deste pesadelo calhavam-me e, por isso, meti o papel durante a primeira quinzena de Janeiro. O Vultos, homem dos seus quarenta anos, com experiência quando eu fui meter o papel disse-me: olha que não deves por a residência onde vives porque o Major é suficientemente cretino para ao fim de meia dúzia de dias te mandar chamar alegando que és imprescindível ao serviço. Põe que pretendes gozar as férias em todo o território de Angola e assim, se fores chamado não vens e ele não te pode castigar.

É evidente que segui as indicações de homem experiente e assim fiz. As férias foram autorizadas e assinadas pelo Major sem que tenha posto qualquer obstáculo. Como aconteceria a maior parte das vezes nem olhava para o que assinava e deixou passar sem qualquer objecção.

Dia 15 de Janeiro entrei de férias. Pegava na minha mulher íamos para a praia, vínhamos ao fim da manhã, dormíamos uma sesta e tudo se passava lindamente quando, ainda não tinham passado oito dias e eu regressava a casa vi uma viatura à entrada do meu prédio e, como é bom de ver, desconfiei que era para me chamar de regresso ao quartel.

Como os condutores todos eram meus subordinados e meus amigos, posso dizê-lo, encostei o carro ao jeep e perguntei ao condutor o que estava ali a fazer e confirmei as minhas desconfianças e a premonição do primeiro-sargento.

Disse ao rapaz para informar o Major que eu não estava em casa e, a partir daí, saía de manhã e só regressava à noite pelo que, as várias vezes que o Major me mandou chamar nunca ninguém me encontrou.

Quando terminei as férias dia vinte de Fevereiro apresentei-me ao Major e ele recebeu-me com três pedras na mão. Questionando-me: mandei-o chamar e você não se apresentou ao serviço pelo que o vou punir. Fingindo-me de ingénuo retruquei: como é que eu me poderia apresentar se eu nunca recebi nenhuma intimação, nem podia, já que gozei férias fora de Luanda?

Fora de Luanda? Quem o autorizou? Foi, o meu Major. A licença foi assinada pelo meu Major. Olhou para o papel e ficou roxo. Irado disse-me retire-se. Vai ver o que lhe vai acontecer! A ameaça era latente. Mas todos os furriéis da minha incorporação já sabiam que o quartel-general tinha decidido que passássemos à disponibilidade no dia 31 de Março, consequentemente, pensei que pouco me poderia afectar a ameaça. Não foi bem assim.

Havia uma grande azáfama no quartel porque tinham chegado rádios novos com antenas especiais para melhorar a qualidade das comunicações militares no teatro de guerra em Angola e, enquanto eu estive de férias tinha sido constituída uma grande equipa para ser distribuída pelo Leste de Angola para montar todo aquele equipamento novo, mas, da qual, eu não fazia parte. Estava no fim do serviço militar obrigatório e nunca tinha sido mobilizado para o mato nem nunca tinha trabalhado com aquele tipo de equipamento logo, não era a pessoa competente para tal missão, mas era a oportunidade ideal para o Major me castigar.

Passados dois ou três dias mandou-me chamar para me dar a ordem para me juntar à equipa constituída para ir para Henrique de Carvalho. A vingança serve-se fria e o Major era um tipo muito vingativo. Argumentei que não era a pessoa com competências para aquela missão. Mais, que estava para passar à disponibilidade e tinha emprego onde me devia apresentar a 1 de Abril e a missão tinha uma duração de cerca de três meses e, por essa razão, todos os graduados nomeados para a missão eram mais novos e tinham mais de um ano de serviço militar obrigatório. Eu seria a excepção. Incompreensível. Mas, como é evidente, anui porque na vida militar as ordens não se discutem. Apenas fiz uma advertência: meu major, como sabe sou casado, a minha mulher está grávida e eu tenho de me apresentar no local do meu emprego civil sem adiamentos. Se, por causa desta sua vingança eu perder o emprego garanto-lhe que estarei aqui no fim de cada mês a exigir-lhe o ordenado que vou deixar de ganhar. Esta advertência era uma ameaça velada que fazia questão de cumprir. Mais, fiz circular no meio, para que lhe fosse aos ouvidos, que lhe daria um tiro nos cornos. Mas o senhor parecia inflexível. Mandou-me requisitar a arma e deu-me uma guia para me apresentar na segunda-feira no aeroporto para embarcar para Henrique de Carvalho. Fiz tudo direitinho, mas nunca tive ideia de ir. Já tinha decidido que me ia apresentar no Hospital militar com uma pretensa dor na madrugada de segunda-feira. Mas, não foi preciso. No sábado pelas dezassete horas mandou uma ordenança dizer-me que não havia lugar para mim no avião e que iria na segunda-feira seguinte.

A minha mulher sofria imenso com esta incerteza e sofreu até ao fim desde finais de Fevereiro até ao dia 31 de Março, dia em que passei à “peluda” (disponibilidade). Sai da tropa nesse dia ficando-me um amargo de boca que, não fosse o despotismo de um idiota teria sido evitado.


Capítulo 17

 

Passada a vida militar retomámos a nossa vida civil tomando posse como segundo oficial da Administração (3º Bairro Administrativo), um serviço do Estado que passava documentos de identificação na ausência destes, atestados, procedia ao recenseamento da população e todas as outras actividades ligadas à administração pública.

Entretanto e ainda durante a vida militar tinha feito um concurso público para as Obras Públicas. Um serviço público de carácter geral que englobava toda a Província Ultramarina. Mal comparado podia dizer-se que seria um Ministério se o país fosse independente. Tentava-se preparar o futuro.

Em 9 de Agosto de 1967 nasce a nossa primeira filha. A nossa Lena. Foi uma imensa felicidade. A primeira bisneta que o meu avô Ricardo e só ele, todos os outros avós já tinham falecido, ainda teve a oportunidade de conhecer.

A primeira criança, da quarta geração, desta família a que nos orgulhamos de pertencer.

Pouco depois da nossa filha nascer veio ter connosco o nosso cunhado António que ainda chegou a tempo de ser seu padrinho de baptismo.

Passado um ano fomos chamados para ingressar nas Obras Públicas e, pouco tempo depois, fomos enviados para Silva Porto – Bié, no planalto central de Angola. Capital de Distrito tinha a missão de desenvolver uma imensidão de território que se afirmava pela sua enorme capacidade agrícola, arroz, sisal, algodão, mas também pelas frutas, principalmente abacaxi e manga e, também a pecuária, principalmente gado vacum.

Era uma zona de influência da UNITA, partido político moderado que lutava em armas pela independência, mas, apesar disso, um território muito tranquilo onde se podia andar sem preocupações.

Chegámos lá no dia 28 de Setembro de 1968 depois de uma viagem fantástica. Por total e absoluto desconhecimento do que íamos encontrar programamos a viagem de forma a levarmos algumas coisas básicas, mas pesadas, pelo que decidimos ir de barco até ao Lobito e ali apanharmos o combóio da linha de Benguela até Silva Porto. O combóio seguia no seu trajecto total até à Zâmbia.

A gare do combóio fica a sete quilómetros do centro da cidade pelo que apanhámos um táxi com as malas de mão, deixando os restantes pertences ao cuidado do Chefe da Estação e dirigimo-nos à cidade, particularmente ao Hotel Girão onde nos hospedámos os três, eu, minha mulher e a minha filha, a família vai junta seja para onde for. Foi assim quando eu era criança foi quando assumi a minha própria família.

Quando me dirigi à sede das Obras Públicas locais verifiquei que estava encerrada e apenas um guarda estava de serviço. Perguntei a razão e fui informado que havia tolerância de ponto pela tomada de posse do Professor Doutor Marcelo Caetano como Presidente do Conselho de Ministros em substituição do Professor Doutor Oliveira Salazar que, meses antes, tinha sofrido um acidente e ficara incapaz.

Como a tarde ainda há pouco começara resolvi dar uma volta pela cidade para tentar conhecer. Lá fomos os três dar uma volta a pé. A cidade era pequena e tudo era muito perto do seu centro onde se situavam os edifícios públicos, Câmara Municipal, Palácio do Governador Civil, Banco de Angola, Obras Públicas, Hospital, por exemplo. Também a Igreja que era Sé episcopal, já que a cidade tinha um Bispo no seu comando religioso.

No dia seguinte apresentei-me no serviço e fui recebido com bastante agrado e delicadeza. Desde logo o Chefe de trabalhos que, na ausência do engenheiro, chefe da repartição comandava todo o conjunto de funcionários, desde a secretaria que contava com três, a secção técnica com outros três, um dos quais desenhadores, um mecânico e a secção do trânsito que contava com dois funcionários e mais uma patrulha da polícia de trânsito que trabalhava em articulação. Falamos de funcionários do quadro de Obras Públicas e Transportes por que, para além destes havia mais de uma centena de trabalhadores eventuais, carpinteiros, pedreiros, motoristas e outros indiferenciados. Portanto, este serviço público, tinha a seu cargo desde a construção de uma escola ou um posto administrativo até uma estrada com as suas pontes e viadutos.

Cabia à secção técnica a elaboração de projectos, concursos públicos e até a execução de obras públicas de pequena dimensão e monta. Para tal tinha de submeter à Direcção Provincial, anualmente, um conjunto de projectos e respectivo orçamento para ser cabimentado no orçamento geral da Província.

Quando cheguei não sabia nada desta matéria e, como tal, assim me apresentei ao Rosas, o referido Chefe de Trabalhos, com toda a humildade. Bonacheirão como era respondeu-me que isso era o que acontecia a todos e o que era preciso era força de vontade para aprender. Acrescentou, então: é casado, solteiro, veio sozinho, onde está alojado, como é? Respondi que era casado que tinha uma filha e estava alojado no Hotel Girão. Disse logo com toda a sua prestimosa atenção: Vamos lá encontrar uma casa para morar que isto de estar no Hotel não ganha para as despesas.

Assim foi. Fez um telefonema e passada meia hora estávamos todos a ver uma casa, melhor, um apartamento num terceiro andar mesmo em frente da Sé Catedral, pertencente a um dos grandes comerciantes da cidade que era, também, fornecedor de materiais de construção para a repartição.

O Rosas era uma pessoa muito conhecida e estimada na cidade. Para além da posição que detinha na repartição, fora jovem para aquela cidade, ali casara e fizera vida há mais de trinta anos. Era também presidente do clube Sporting Clube do Bié que, para além da equipa de futebol, tinha grandes equipas de desporto amador como o andebol e o basquetebol.

Foi uma experiência extraordinária para si e para a sua família nuclear. Muita aprendizagem. Já vinha desde os seus primeiros tempos de vida consciente a máxima aprendida através do pai e dos avós que “o saber não ocupa lugar” e já jovem adulto, de um professor de português, no quinto ano do liceu, outra complementar que era “a faculdade de aprender é a faculdade de esquecer” e tudo isto fez com que muito rapidamente tivesse aprendido o básico para desempenhar com eficácia as funções. Com tal agrado por parte do Rosas que passei a ser seu confidente, seu braço direito e seu pupilo dilecto, perdoe-se-me a imodéstia.

Entretanto o conhecimento com os demais colegas, vizinhos, outros funcionários das demais repartições fizeram com que estabelecêssemos uma rede de amizades e de convivência social muito interessante.

Outra coincidência que não esperava foi o encontro, poucos dias depois, com um conterrâneo que estava instalado no Vouga, concelho limítrofe da cidade, comerciante muito querido e poderoso no meio, vereador na respectiva Câmara Municipal, a título gracioso, como era normal na época e nomeado pelas entidades oficiais por ser pessoa conceituada no meio e que eu conhecia de Luanda por ser visita da casa dos meus pais, o Senhor João Manteigas. Grande amigo que já era e, cuja amizade, se fortaleceu com o convívio, no mínimo, semanal.

Poucos meses depois já sabíamos tudo da vida uns dos outros. Éramos sócios da mesma Cooperativa que nos fornecia todos os produtos alimentares, para assim, ser mais económico para todos.

Já toda a gente sabia que a minha mulher tinha o quinto ano do liceu, tinha trabalhado nos Correios em Portugal continental e que ali só cuidava da casa e da filha pelo logo, alguém, soube de uma vaga nos serviços da Administração e o Rosas lá foi indicar a minha mulher como potencial candidata. Um mês ou dois depois, lá foi ela trabalhar como administrativa, repartição igual aquela em que eu comecei em Luanda.

Ela não gostava muito do trabalho porque tinha dificuldades em escrever à máquina e porque a maior parte do trabalho era passar guias para os contratados para as fazendas do Norte de Angola. Talvez por isso, e porque eu comecei a conhecer o que se passava nos meandros da função pública local, soube que estavam abertas as inscrições para o exame de admissão ao Magistério Primário local. Conversámos sobre o assunto e, pouco menos de um ano de estarmos naquela cidade a minha mulher entrou no Magistério para tirar o curso de professora primária.

Início de Setembro de 1969 lá foi para as aulas e eu levava a minha filha Lena, já com dois anitos, mas uma menina educada, simpática, linda que toda a gente queria apaparicar para o meu gabinete já que a mãe não a podia ter com ela e eu estava sozinho no meu gabinete e, consequentemente, ela não incomodava ninguém. Brincava com os brinquedos e, como atrás referi, era o biju de todos os colegas. Apesar disso o Rosas um dia disse-me: Caldeira porque é que a miúda não fica lá em casa com a minha mulher e a minha filha mais nova? Acanhado, tentei recusar a oferta, extremamente generosa, dizendo que não queria incomodar. Mas ele insistiu. Vai para lá de manhã antes do você vir para o trabalho e vai lá buscá-la ao fim da tarde. Isto não custa nada. Ela brinca com a minha Vanda e com a Isabel (uma miúda preta sua afilhada e que eles criavam como filha) escusa da sua mulher andar atarefada na hora do almoço e de você estar preocupado com a miúda quando precisar de fazer qualquer serviço externo.

Isto foi sair a sorte grande já que o serviço externo era muito frequente, duas três vezes por semana e a minha filha condicionava muito quer a minha actividade quer a da mãe.

Lá fomos levar a nossa Lena à Dona Aurora que a recebeu com extremo carinho. A partir daí a nossa filha foi tratada como se fosse outra filha do casal e a minha mulher pode fazer o curso do Magistério Primário com tranquilidade e empenho o que lhe rendeu uma das melhores notas desse ano (dezasseis) valores havendo apenas outra colega que obteve igual classificação.

Neste intervalo foi colocado a Chefiar a Repartição um engenheiro, português, Licenciado no Porto, mas nascido em Cantão, China, filho de pai português e mãe chinesa, mas criado em Macau. Depois de licenciado voltou para Macau onde iniciou funções nas Obras Públicas locais. Muitos anos lá trabalhou até que um militar que foi lá colocado como governador lhe moveu um processo disciplinar e o transferiu para Angola e para Silva Porto. A mulher era chinesa e tinha filhas a estudar em Macau. Este rude golpe para o engenheiro, que não sabemos se foi justo ou injusto, transformou-o num péssimo funcionário público. Não queria saber nada do que se passava e tudo deixou nas costas do Rosas.

Nós lá íamos continuando com as nossas aprendizagens e fazendo a nossa vida profissional. Como o Rosas construiu uma moradia geminada de raiz numa zona muito bonita da cidade alugámos-lhe uma das casas deixando o terceiro andar onde iniciámos a nossa estada naquela cidade.

O mês de Março em Angola era de férias escolares e, por isso aproveitei o Março de 1970 para ir de férias para Luanda aproveitando as férias da minha mulher. Na tarde de 28 de Fevereiro assisti, na minha secção de trabalho, a um acerto de contas entre o Rosas e o Zé Luís, aquele comerciante de materiais diversos entre eles de materiais de construção, amigo do Rosas e fornecedor das Obras Públicas através de requisições que eram liquidadas quando o orçamento da Repartição fosse concretizado em pagamentos pelo Governo-geral. Nesse acerto começou por haver discordância entre os dois acerca dos valores em dívida e do montante do cheque passado ao comerciante. O Rosas esclareceu que o Zé Luís estava errado, demonstrou-lhe o erro e acrescentou que as Obras Públicas ficavam com um crédito de 150 placas de fibrocimento que ainda não tinham sido fornecidas. A coisa ficou assim acertada e, entretanto, chegaram-se as dezassete horas e depois de dar conta ao Rosas do trabalho que tinha em mãos e que era preciso continuar despedi-me até ao dia um de Abril. Mal sabia eu que seria até à eternidade.

No dia 16 de Março regressado com a minha mulher e a filha – na altura ainda só tinha a minha primeira filha – da praia cheguei a casa e tinha um telegrama do engenheiro a pedir-me para regressar urgentemente porque se dera, no dia anterior a morte prematura e inesperada do Rosas quando se deslocava, em serviço externo, ao Quando Cubango, um dos extremos do distrito do Bié, para inspeccionar a construção da Administração e da casa do Chefe de Posto. Fiquei para morrer. Tive de regressar de avião porque, entretanto, tinha tido um pequeno acidente com o carro, do qual não tive nenhuma responsabilidade e o culpado responsabilizou-se perante a oficina a pagar os estragos e a reparação demorou mais do que se esperava e ainda não estava pronto.

Já não cheguei a tempo do funeral, mas no dia seguinte lá estava eu junto daquela família, muito querida, a chorar uma morte cujas causas aparentes, nunca comprovadas, foram as obras na estrada e o nevoeiro intenso.

A amizade com o casal e filhos perdurou até à perda sucessiva de alguns elementos nomeadamente a viúva, passados mais de vinte anos e do filho mais de trinta. Com os sobreviventes ainda hoje perduram ainda que nos vejamos pouco pois residimos a distância considerável.

O Rosas deixou a viúva e os filhos com graves problemas financeiros. Desde logo devido a uma dívida desconhecida da viúva, junto do já referido Zé Luís, referente à construção da moradia geminada onde eu vivia e uma outra família. O Rosas contava pagar a dívida com as rendas que recebia mensalmente dos inquilinos.

A viúva desconhecia totalmente de quem o Rosas era devedor, mas também de quem era credor e também era de muita gente. Era uma dona de casa a quem não faltava nada porque quando precisava de dinheiro pedia e era-lhe entregue. Formas de viver em casal da qual eu não comungo, mas que respeito.

No mês de Abril desloquei-me a Luanda com a viúva e a filha mais velha que, na época teria os seus dezassete anos, para junto do Montepio dos Servidores do Estado obter a indeminização devida e a pensão de sangue. Logo ali nos foram entregues cem contos em dinheiro vivo que aliviou o sufoco da família enquanto esperava os trâmites da pensão de sangue que demorou cerca de um ano, mas que veio.

Para cumular a desgraça, ainda não tinha completado oito dias depois de sepultado já o nome do Rosas estava a ser enxovalhado. O Zé Luís foi ter com o engenheiro e apresentou uma dívida das Obras Públicas no valor de setecentos contos. O Engenheiro ficou atarantado. Não sabia nada do que se passava nem queria saber, como já se disse, estava numa situação de castigado e via-se embrulhado num hipotético, desfalque ao Estado. Era muito castigo.

Foi ter com o Governador Civil e deu-lhe conta do que estava a passar. O Governador, um tenente-coronel de cavalaria que era extramente amigo do Rosas ficou em pânico, mas, ao mesmo tempo, irritado com o comerciante que também era vereador municipal e tudo isso se conjugava para arrastar o nome do Rosas pela lama. Perguntou ao engenheiro o que é que poderiam fazer para não enxovalhar o nome do Rosas e ele disse nada saber porque, desde a primeira hora, tinha dado carta-branca ao Rosas. Com a insistência do Governador a tentar perceber quem poderia ajudar na solução do problema o engenheiro disse-lhe que eu era o braço-direito do Rosas e, eventualmente, poderia ajudar. Estava no meu trabalho no gabinete e recebo um telefonema do Governador a convocar-me para uma reunião. Diga-se de passagem, que eu era um jovem de vinte e sete anos com a inexperiência inerente à idade. Lá fui de imediato, os edifícios eram quase contínuos e cinco minutos depois estava a ser anunciado pelo secretário do Governador que me mandou entrar de imediato para o gabinete onde ainda se encontrava o engenheiro.

O Governador conhecia-me, vagamente, por eu ter fiscalizado a construção de um muro a toda a volta da sua residência oficial.

Mal entrei o Governador disse-me, não quero que o nome do Rosas seja manchado. Tudo o que falarmos aqui fica aqui. Prometi sem rebuço.

Fui então informado que o Zé Luís tinha apresentado requisições no valor de cerca setecentos contos que estavam em dívida pelas Obras Públicas e o serviço não tinha como pagar. Fiquei atónito e contei ao Governador a conversa que ouvira no dia 28 de Fevereiro, que não sabia de mais nada, mas que me parecia uma malvadez do Zé Luís – que eu tinha por vigarista - diga-se de passagem. Não tinha como provar nada, pois a conversa fora entre os dois e eu apenas assisti, porque estava a passar o trabalho ao Rosas antes de me despedir para férias e seria a palavra dele contra a minha, já que o Rosas tinha falecido.

O Governador ficou de pensar no assunto dizendo que nos convocaria aos dois, a mim e ao engenheiro, para uma reunião no dia seguinte.

Assim foi. Pediu-nos para elaborar projectos no valor de cinco mil contos para ele ir a Luanda solicitar o financiamento. Em tempo recorde assim fizemos e numa semana apresentamos os projectos e respectiva localização das obras. Em boa verdade eles estavam feitos há muito tempo e destinavam-se às zonas mais remotas do distrito e, por essa razão, ano a ano firam ficando para trás. Só foi preciso fazer as actualizações de preços e de concertação com os Serviços da Administração.

Dois dias depois chamou-nos e entregou ao engenheiro um cheque nesse valor para executar as obras por administração directa e de forma muito parcimoniosa, poupando o mais que fosse possível para se pagar a dívida apresentada, que, em boa verdade, nunca existiu, mas que as requisições permitiam ao detentor criar graves problemas ao Governador, ao Engenheiro e enxovalhava o nome do Rosas.

O Governador fez mais. Deu-me ordens expressas para pôr em marcha todas as obras ao mesmo tempo e pôs à minha disposição o seu avião particular e respectivo piloto todas as quartas-feiras para eu poder fiscalizar as obras sem muita perda de tempo, já que as distâncias eram longas e a estradas eram picadas. Qualquer viagem de carro demora muitas horas o que me obrigaria a andar todos os dias em serviço externo, o que era impraticável. Desta maneira visitava as obras todas nas diferentes localidades uma vez por semana fazendo as deslocações de avião.

Foi um ano de trabalho muito intenso. Valeu-nos as equipas contratadas que foram fantásticas. Faziam-me chegar o pedido de materiais com regularidade de forma atempada, eu encomendava aos fornecedores, os motoristas – naquele ano tivemos de contratar mais um, passando a ser dois – distribuíam, os encarregados da obra mandavam aplicá-los e a chefe da secretaria encarregava-se de pagar os materiais e salários. A nós, eu o engenheiro fizemos um verdadeiro périplo pelas redondezas para conseguir os melhores preços para poupar o máximo com vista a pagar a dívida.

Na circunstância conseguimos em Nova Lisboa, cidade capital do distrito limítrofe, preços que nunca nos tinha passado pela cabeça.

Aqui vai a história: - Um dia fomos a Nova Lisboa tratar de assuntos ligados à Repartição e passámos por uma grande loja de materiais de construção e entrámos por curiosidade, mas também para aquilatar dos preços praticados já que até aí só comprávamos aos comerciantes de Silva Porto.

Um material usado, em grandes quantidades, eram placas de fibrocimento para os telhados e os respectivos parafusos com anilhas para fixação das mesmas na estrutura de madeira. Para se ter uma ideia, esses parafusos, em Silva Porto custavam, a unidade, entre os sete escudos e os sete escudos e cinquenta centavos. Na referida loja em Nova Lisboa vendiam-nos a dois escudos e cinquenta a unidade. Ficámos atónitos. Nunca nos tinha passado pela cabeça que pudesse existir um diferencial tão grande entre Silva Porto e Nova Lisboa apesar de Nova Lisboa ser uma cidade muito maior e mais importante que Silva Porto e que distavam entre si cento e cinquenta quilómetros de boa estrada rodoviária. Mas não ficámos por aqui. O Empregado que nos atendeu acrescentou: - se levarem mil parafusos faço-lhe a um escudo e cinquenta a unidade. Ficámos de queixo caído. Para os nossos projectos precisávamos de cinco mil parafusos. Retorquimos: - Somos das Obras Públicas de Silva Porto e até levávamos cinco mil, mas não viemos preparados com cheques da Repartição ao que o senhor respondeu: - não há problema nenhum. Levem os parafusos e depois mandem o cheque.

Não nos conhecia de lado nenhum. A confiança era base de trabalho daquela grande empresa e por isso ganhava dinheiro sem especular como acontecia com aqueles comerciantes de Silva Porto que usavam o monopólio da distribuição para sugar o máximo a quem não se deslocava dali e, mais facilmente ao Estado já que este não discutia o preço.

Quando contámos ao Governador ele ficou indignado e, logo ali, nos deu aval para podermos ir a Nova Lisboa comprar tudo o que fosse preciso e assim, com a poupança nos materiais pudéssemos concluir as construções mantendo a qualidade e sobrasse o dinheiro suficiente para pagar a, hipotética dívida. Aliás queria mais. Queria que pagássemos, imediatamente, a dívida mesmo antes de concluídas as obras ao que eu manifestei a minha oposição frontal. Se qualquer coisa corresse mal e não tivéssemos dinheiro para concluir todas as obras teríamos problemas nós, que não tínhamos participado em nada daquele imbróglio. O Governador assentiu considerando razoável a oposição.

Assim fizemos e ao fim do ano e da conclusão de todas as obras fomos levar o cheque ao Governador e as contas certinhas e ele chamou o comerciante a quem deu uma sarabanda de todo o tamanho e entregou o cheque exigindo-lhe um documento de quitação. Ele ainda se queixou de nós que nunca mais lhe comprámos nada e que isso comprometia o desenvolvimento do distrito, mas não valeu de nada. Enfim estórias de vida como é o título deste manuscrito.

 

Capítulo 18

 

A minha mulher quando acabou o curso, Junho de 1971 foi para Luanda para concorrer a um lugar naquela cidade onde eu adorava viver e ela nem tanto. Mas lá foi ela com a filha, já com quatro anos de idade, para juntos dos meus pais e da maioria da minha família. Eu fiquei porque, apesar de ter pedido imensas vezes para ser transferido para Luanda o argumento de que fazia falta ao serviço pesou sempre para não ser concedida.

Mas, ao fim de três meses depois da minha mulher ter sido colocada em Luanda, porque podia requerer a transferência ao abrigo da Lei dos Cônjuges, lá me transferiram para a sede em Luanda, Janeiro de 1972.

Quando a minha mulher e a minha filha foram para Luanda eu, para além de ter solicitado a transferência, mais uma vez, comecei a procurar vagas noutros serviços em Luanda. Encontrei uma vaga na Câmara Municipal onde o meu currículo se encaixava na perfeição e concorri. Havia apenas uma vaga e dois concorrentes. O concurso para além do currículo tinha uma prova escrita e uma prova oral. Perdoe-se-me a imodéstia, mas fiquei em primeiro lugar.

Como atrás se referiu, em Janeiro fui transferido e voltei a ter uma vida familiar e profissional normal para o meu padrão de vida, mas, entretanto, chamaram-me para a Câmara onde as condições de trabalho e o próprio vencimento eram substancialmente melhores.

Estávamos no início de 1972 e a minha mulher tinha imensas saudades dos pais e das irmãs. Entretanto tinha perdido uma das suas maiores referências, o seu avô materno sem que pudesse despedir-se dele. Tudo razões para eu sentir que necessitava de fazer alguma coisa para lhe proporcionar alegria e felicidade.

Começámos a equacionar a ida dela mais da filha à metrópole para mostrar a menina aos pais, irmãs e demais familiares. Era o seu primeiro ano de trabalho pelo que só tinha direito às férias nos meses de Julho e Agosto, mais alguns dias de finais de Junho e princípios de Setembro o que, bem-feitas as contas daria para aí uns três meses. Não era muito, mas já daria para colmatar a saudade acumulada durante quase seis anos de ausência. É evidente que era necessário suportar todas as despesas. Era também preciso o sacrifício familiar já que eu não poderia vir tanto tempo porque, como funcionário do quadro, só tinha direito a um mês de Férias por ano e, em última instância, poderia também pedir a licença graciosa – seis meses – que era um privilégio obtido a cada cinco anos. Poderia utilizar este privilégio, mas não me dignificava. Acabara de entrar para aquele lugar na Câmara Municipal faria pouco sentido solicitar logo a licença graciosa. Decidimos que as viagens se fariam de avião, bastante mais caras do que em navio, mas com um ganho de tempo de mais ou menos vinte dias.

Analisadas todas as prerrogativas familiares conseguiu-se conciliar a viagem de navio para os meus pais, de licença graciosa. Para a minha mulher, férias de três meses, não pagas. Para o meu cunhado férias, de um mês e para mim o mesmo, pagas, mas sem direito a viagens. Combinámos então virem os meus pais e a minha mulher e filha logo em Junho e eu e o meu cunhado apenas no mês de Agosto. Assim fizemos.

Foi um reencontro com as raízes, muito aprazível e o rever da família muito gratificante.

Viviam-se os primeiros anos de férias dos emigrantes que foram para a França a salto. Nos primeiros anos, desde a primeira metade da década de sessenta, foi necessário arranjar documentação legal, amealhar alguns Francos para transferir para Portugal e, então, poder visitar as famílias que, na circunstância, eram a maioria das pessoas que viviam na Meimoa.

Num daqueles momentos de lazer e em conversa com o meu primo Joaquim Pina que fizera a tropa em Angola e passara todo o tempo que pôde em nossa casa. A terminar duas semanas de férias na terra concluímos que se fossemos a Paris conseguíamos comprar um carro em França que permitiria aos meus pais percorrer a metrópole em visita sem grande investimento e que depois poderia levar para Luanda e até ganhar algum dinheiro.

Fomos experimentar. Eu e o meu pai fomos com o meu primo de autocarro até Paris e, no dia seguinte à chegada à cidade Luz, um deslumbramento para mim devido a muitos aspectos, mas, especialmente, aquele que mais me marcou, a venda pelos ardinas do jornal do parido comunista francês à porta do Metro. Fiquei estupefacto. Em Portugal tal era impensável. Quem se atrevesse seria imediatamente preso pela PIDE.

Era domingo. Metemo-nos no Metro e fomos até Bicêtre arredores de Paris onde decorria um mercado (feira) de automóveis usados de todas as qualidades e feitio, de todas as marcas e dos mais variados preços, em plena avenida. Eram muitos milhares. Vi um carro que me agradou, um fiat 124 que estava na moda por um preço acessível. Feitas as contas da conversão da moeda, um Franco valia cerca de cinco escudos, custava cerca de vinte e cinco contos. Começámos a negociar e o dono do carro quis pô-lo a trabalhar para demonstrar o bom funcionamento do motor já que o exterior, carroceria e chassis estavam impecáveis. O motor não funcionou, no imediato, e o dono do carro disse-me: desculpa, mas já não te posso vender o carro porque não está em condições.

Fiquei de queixo caído com a honestidade demonstrada. Nunca tinha assistido a tal forma de negociar em Portugal onde, os negociantes, quase sempre procuravam enganar os compradores. Deu-me alento esta atitude e percorri quase toda a avenida que tem alguns quilómetros procurando o carro que me servisse. Não queria luxos, mas também não queria nenhuma sucata.

Cansados e já com algum desânimo cerca das dezassete horas, deixei o mercado porque não encontrara mais nada que me tivesse agradado e entre num stand de ocasião quase no fim da avenida. Vi um Renault 16 em excelente estado de aparência, último modelo da marca, com menos de um ano de serviço e com 20.000 km. Encantei-me pelo carro, mas custava sessenta contos. Quantia muito elevada para adquirir um carro que depois das férias seria para vender em Luanda já que, tanto eu como o meu pai tínhamos carros novos comprados no ano anterior.

Pensámos no assunto, muito rapidamente e decidimos que valia a pena o investimento. Apalavrámos o negócio e ficámos de, no dia seguinte, segunda-feira, depois da abertura dos bancos, fazer o câmbio e levantar o carro. Assim aconteceu e, por volta do meio-dia, já tinha a documentação provisória na mão e seguro. Nessa altura até o meu pai era novo e eu muito jovem pelo que, apesar da viagem de autocarro no sábado até quase de madrugada, no calcorrear quilómetros a pé para adquirir o carro durante o domingo, não meteu medo nenhum um regresso a Portugal.

Saímos de Paris sem um mapa, qualquer tipo de indicação excepto a do meu primo que me disse mete-te no periferique e sai pela estrada nacional dez. Não era altura de haver GPS ou qualquer outra tecnologia. Os mapas eram o único meio de navegação por terras desconhecidas, mas o tempo e a lembrança não deram para adquirir um, pelo que ficámos reduzido à informação oral recebida.

Estou convencido que tudo correria bem porque, apesar da velocidade obrigatória naquela via, sempre com o helicóptero da polícia a incentivar à velocidade constante para tornar o trânsito fluido, eu não tinha grandes problemas em conduzir porque já tinha carta há cerca de dez anos e muitos quilómetros percorridos e conduzia desde os catorze anos de idade, fora das povoações e com condutores familiares ao lado mas, há sempre um mas, no percurso havia obras no periferique e era obrigatória a saída e, depois de um desvio, nova entrada e tal foi fatal. Perdi-me. Depois de umas voltas estava num bairro que ainda hoje não sei o seu nome, mas vi que era residencial e, por isso, não seria o percurso certo. Enquanto andava e pensava se devia ou não pedir a um taxista que fosse à minha frente até entrar na estrada nacional dez passei junto de um polícia sinaleiro e encostei-me à peanha e pedi-lhe auxílio. Foi extremamente simpático e deu-me indicações preciosas que eu segui à risca. Ia devagar pela incerteza que me acometia e, pouco depois, encostaram-se a mim dois polícias de viação e trânsito de moto dizendo-me que deveria aumentar a velocidade para não empatar o trânsito. Respondi que não tinha a certeza se ia bem para a estrada nacional dez que queria ir para Portugal ao que eles, delicadamente, me disseram: segue-nos, nós vamos para lá. Rapidamente cheguei à estrada que conduzia a Portugal e aí foi só pisar o pé do acelerador.

Uma aventura em terras estrangeiras, com uma língua estudada apenas no liceu, com pouca prática, mas mesmo assim deu para desenrascar. Estórias de vida.

Viajámos toda a tarde quase sem parar até à fronteira com Espanha onde chegámos cerca das 4 da manhã. Descansámos um pouco e metemo-nos de novo a caminho e às 14 horas de terça-feira chegámos à Meimoa onde soubemos que a minha mulher, minha filha e minha mãe tinham ido a Penamacor arranjar o cabelo pelo que deixei o meu pai em casa e fui para Penamacor buscar os meus amores.


Capítulo 19

 

A vida no seu continuum desenrolava-se com toda a normalidade até que, sem contarmos, fomos confrontados com a nova gravidez da minha mulher.

Apesar de não programada ficámos felizes com o acontecimento começando, desde logo, a preparação para receber o novo ser que vinha a caminho.

Não havia ecografias e só se sabia se era menino ou menina após o nascimento. A nossa filha Lena queria que fosse uma mana e não um mano.

A minha mulher continuava a trabalhar na escola onde iniciou a sua profissão, um bairro, maioritariamente indígena, encastrado entre dois bairros, maioritariamente, de residentes brancos. Na circunstância os bairros, Madame Berman e Popular, este último junto do Cemitério Novo na Estrada de Catete.

Eu continuava o meu trabalho na Câmara Municipal de Luanda na dependência directa do Engenheiro Chefe da Repartição e do Chefe de Secção, um velho funcionário à beira da aposentação. Pessoas extraordinárias com quem aprendi muito da profissão, mas, sobretudo, da vida.

Em Janeiro de mil novecentos e setenta e três o chefe de secção que já tinha informado que queria vir de licença graciosa à Metrópole nesse ano, numa reunião informou as chefias de que teria de reagendar essa licença para mil novecentos e setenta e quatro já que tinha que casar uma filha no ano de setenta e três.

Eu, que tinha feito planos para vir de Graciosa em setenta e quatro levantei a questão da impossibilidade de virmos os dois, chefe de secção e chefe de trabalhos principal no mesmo ano e ausentarmo-nos do serviço seis meses ao mesmo tempo. É evidente que as chefias superiores sabiam que eu já que não gozava a licença graciosa há seis anos teria a preferência para gozar essa licença. Mas rapidamente chegámos a um consenso estipulando que viria eu em setenta e três e o chefe de secção em setenta e quatro. Uma troca simples e do agrado de todos. E assim se programou as respectivas licenças graciosas.

A minha mulher seguia com a gravidez acompanhada por um obstetra que também exercia funções no Hospital Universitário de Luanda. Sim, porque, entretanto, já tinha sido criada a Universidade em Angola e em Luanda, mais concretamente, construindo-se também um novo Hospital para apoiar a Faculdade de Medicina.

A nossa criança, segundo o médico, nasceria nos fins de Maio ou, no máximo, nos primeiros dias de Junho. Assim marcámos viagens para 30 de Junho com o aval do médico para a criança viajar.

Comprámos um carro novo para ser entregue em Lisboa no dia 1 de Julho de 1973. Dizia-se que se adquiria um carro em trânsito. Comprámos um carro que estava na moda, na altura, um Ford Capri 1600 GT de cor amarela. Naquele ano os carros mais vendidos foram precisamente o Ford Capri e o BMW.

No dia 14 de Junho a minha mulher foi internada no Hospital Universitário por que, na opinião do médico, a criança já devia ter nascido e podia estar em sofrimento. Consequentemente era necessário provocar-se o parto. Nunca se pensou em cesariana. Felizmente, no dia 15 de Junho, pelas 12 horas nasceu a nossa filha Raquel. Uma alegria imensa partilhada por todos e em grande júbilo pela nossa filha Lena que queria uma mana e não um mano.

Tudo correu bem e os nossos planos de viajar para a Metrópole para mostrar a filha aos avós maternos e às tias.

Chegámos a Lisboa pelas oito horas da manhã do dia 1 de Julho. Fomos recebidos no aeroporto pelos nossos familiares e alojámo-nos em casa da nossa cunhada Alice e o nosso cunhado Honorato.

Estes nossos cunhados andavam destroçados porque lhes tinha falecido uma filha com dois anos e meio por morte súbita que nunca ninguém entendeu. A chegada da nossa bebé foi um bálsamo para a minha cunhada que a encolava a todo o momento.

No dia seguinte dirigi-me ao stand representante da Ford no Campo de Santa Ana em Lisboa e, qual a minha desilusão, houve um atraso no fornecimento do carro vindo da Alemanha, de Colónia, mais concretamente. O atraso era de um mês. Apresentaram as mais variadas desculpas, mas não me resolveram o problema da falta do carro para as minhas deslocações o que me deixou em fúria. O carro estava pago há mais de quatro meses e, consequentemente, só me restou reclamar, mas, como é habitual em Portugal, a culpa morre sempre solteira.

Tive de me deslocar para a Beira Baixa de comboio com a família. As férias não começavam bem, mas esperávamos que se compusessem.

No dia 30 de Julho lá voltámos a Lisboa para levantar o nosso carro. Era lindo e chamava à atenção de toda a gente. Era do tipo desportivo e muito vistoso.

Fizemos um périplo pelo País desde Viana do Castelo até ao Algarve e ficámos a conhecer este Portugal desconhecido, pelo menos, para nós.

Descansámos alguns dias e fizemo-nos à estrada para a Europa. Visitámos a Espanha, a França, o Luxemburgo, Andorra fazendo o regresso no dia dos anos da minha mulher, 21 de Agosto, uma viagem longa de Madrid a Lisboa, mas ainda a tempo de comemorarmos o aniversário em família em casa dos meus cunhados onde tinha ficado a nossa Raquel que, por ser recém-nascida não a poderíamos sujeitar a viagens tão longas.

Foram umas férias de sonho e, em Janeiro, a minha mulher recebe uma carta da directora da sua escola a dizer que havia lá uma vaga, mas que teria de a ocupar até 15 de Janeiro.

Muito rapidamente tratámos das passagens aéreas para a minha mulher e as minhas filhas e para um primo meu, o Pina, que estava no ano de ser chamado para a tropa para ver se conseguíamos que fosse incorporado pelo contingente de Angola e, assim, garantir que cumpria o serviço militar num local onde tinha família e não ia parar à Guiné ou a Moçambique. Embarcaram no dia 14 de Janeiro de 1974 pela meia-noite. Pelo que me contaram foi uma viagem turbulenta com condições atmosféricas adversas desde o início. Só a meio da viagem o temporal desapareceu e a viagem foi tranquila.

Entretanto eu tive de ir de navio para poder levar o carro comigo. Esse procedimento era norma das Companhias de navegação que davam prioridade às viaturas dos passageiros, caso contrário a viagem do carro era muito mais demorada e só quando havia vagas de carga é que despachavam as viaturas. Isto podia implicar uma demora de dois ou três meses e eu não queria o meu carro debaixo da ponte Salazar (assim se designava ainda em Janeiro de 1974) a apanhar o salitre das águas do Tejo e as intempéries de um Inverno em pleno.

Assim embarquei no dia 28 de Janeiro de 1974 no navio Príncipe Perfeito. Um navio novo e com todas as condições para uma viagem de sonho. Viajava em primeira classe, num camarote de duas camas que eu partilhei com um agente da PIDE-DGS, um rapaz mais ou menos da minha idade com quem gostei de viajar.

Apresentámo-nos no dia do embarque e ele disse-me ser funcionário público, como eu era, aliás.

Com o decorrer da viagem o jovem, muito simpaticamente, disse-me que era da PIDE e a sua função no navio era prevenir ataques semelhantes àqueles que tiveram lugar no navio Santa Maria em 1961, pelo Henrique Galvão e mais uma certa esquerdalha, como o ladrão do Banco da Figueira da Foz, o Camilo Mortágua e outros de igual quilate.

Foi uma viagem maravilhosa fazendo paragem no Funchal e em São Tomé. Dez dias depois desembarcávamos em Luanda.

Em Luanda retomámos as nossas funções profissionais e a nossa vida familiar que era de verdadeira felicidade.

Trabalhávamos toda a semana, mas ao fim-de-semana juntávamo-nos para nos divertirmos e petiscarmos.

Nesse tempo tínhamos como Presidente da Câmara um Dr. Cunha (não lembro do restante nome) que era um homem de visão estratégica e que começou o seu mandato com o objectivo de acabar com a construção clandestina, que era um flagelo, e dotar todos os bairros habitados por indígenas de fontanários. Paralelamente dotar a cidade de uma rede de saneamento básico mais adequada ao tipo de cidade em que Luanda se transformara, considerada a mais bela e mais civilizada cidade africana.

A propósito, o Dr. Cunha, como muitos daqueles que, como eu, nasceram ou viveram em Angola desde crianças, queriam que a Província tivesse mais autonomia política e financeira, dizia: “Angola é uma vaca que tem os cornos cá e as tetas em Portugal continental. É preciso alterar este estado de coisas. É preciso virar os cornos para a metrópole e as tetas para Angola, para podermos desenvolver este país como deve ser”. Eu, e muitos como eu concordávamos, plenamente com isso. Isto quer dizer que o Presidente do Conselho Professor Doutor Marcelo Caetano que tinha visitado Angola em 1971 e que fora recebido pelas populações, todas as raças e etnias, em ombros não tivera ou não lhe deixaram ter a coragem de avançar com a autonomia que toda a gente aspirava, com vista a uma independência pacífica e devidamente controlada.

Foi pena. Em 25 de Abril de 1974 um grupo de capitães que estavam a sentir, cada vez com mais força, que a sua carreira na progredia como eles queriam porque, devido à guerra, em poucos anos chegavam a capitão, mas depois a progressão era muito mais lenta já que os quadros de pessoal estavam preenchidos por generais novos, organizaram-se para derrubar o governo da república e assim resolverem dois problemas da sua vida. Primeiro acabavam com a guerra do ultramar e deixavam de correr riscos e segundo depunham os generais que existiam e tomavam o seu lugar. Foi um golpe de estado egoísta onde não se ponderou nada a não ser os próprios interesses. Acrescentou-se a isto a influência do Partido Comunista Português, na clandestinidade desde 1926, com uma influência política soviética poderosa junto de uns ignorantes e incapazes jovens nada politizados.

Foi a desgraça total. Poucos dias depois do 25 de Abril começaram os boatos de ataques e maus tratos a brancos e mestiços. A propaganda do MPLA, até aí moribundo, começou a dar resultados. A população branca começou a reviver o período de 1961 em que o terror foi uma constante.

A anarquia nos quarteis começou a desenvolver-se e a perder-se a disciplina. Em Maio, os militares pretos fizeram uma marcha até ao quartel-general para entregar as armas. As manifestações de rua sob a batuta do PCP em conluio com o MPLA – os outros dois movimentos independentistas, FNLA e UNITA – nunca foram tomados em conta, eram quase diárias.

Ao fim de um dia de trabalho, antes de ir para casa, disse ao motorista que me levasse a ver os trabalhos de implantação de fontenários no bairro da Boavista e, quando lá cheguei, dei com um drama que nunca mais me saiu da memória. Os trabalhadores tinham implantado o fontenário e estavam a abrir o poço roto para escoamento das águas sobrantes. Quando o poço já tinha uns quatro metros de profundidade um dos trabalhadores, sem saber, deu com a picareta num tubo de abastecimento de água que rebentou e começou a verter em grandes quantidades água para dentro do poço. O terreno era arenoso e desabou uma boa parte em cima de dois trabalhadores. Desgraçadamente para um, o desabamento causou-lhe o quebrar de uma perna impossibilitando-o de fugir de soterramento naquele mar de lama e água. Quando lá cheguei detectei uma azáfama para tentar salvar o homem, mas uma azáfama descoordenada e ineficaz. Saltei do jeep peguei numa picareta e cinco ou dez metros a montante do local do acidente rebentou com o tubo condutor de água para o fontenário passando a água a derramar-se num local que não ia para o poço onde o trabalhador estava quase soterrado. Tina água pelo pescoço.

Mandei um trabalhador ir até ao comerciante mais próximo pedir para ligar para os bombeiros municipais para mandarem socorro e, entretanto, comecei a orientar os trabalhos de remoção lenta de terras para que se retirasse o homem da situação aflitiva que tinha passado. A morte tinha parecido iminente e sem retorno.

Retirámos o homem do lamaçal quando os bombeiros chegaram e detectaram que o homem, para além de uma perna partida tinha uma enorme ansiedade, angústia e medo, apesar de ser um homenzarrão fisicamente.

Aquele dia, quando cheguei a casa já era de noite e a família estava em pânico.

Nos dias que se seguiram fui ver o trabalhador ao Hospital e dar-lhe todo o apoio necessário a ele e à família. Quando o homem teve alta e começou a trabalhar dei-lhe um lugar onde não fizesse esforços. Pu-lo num sanitário público apenas de guarda onde não fazia esforços nenhuns.

Poucos dias depois o homem veio dizer-me que se ia embora para a sua terra, o Lucala porque ali os colegas ameaçavam-nos dizendo que era amigo dos brancos já que eu lhe tinha proporcionado um trabalho diferente daquele que fizera até ao acidente.

Tentei demovê-lo da decisão solicitando-lhe informações do local onde as ameaças partiam. Eram feitas no musseque onde residia.

No estaleiro da Câmara havia imensas casas de madeira que foram demolidas por serem clandestinas e se destinarem a tapar a verdadeira construção de pedra e cal, como se costuma dizer, que era feita por dentro. Eram casas enormes e com boas condições de habitabilidade. Ofereci uma dessas casas ao trabalhador ameaçado e ele aceitou perdendo aquela ideia de deixar o emprego e ir para trabalhos muito mais esforçados na terra dele.

Em mais ou menos quinze dias voltou o homem com a ideia de ir para a terra dele dizendo, mais uma vez, que ele era amigo dos brancos e por isso eu o protegia. Não era nada disso eu apenas o estava a ressarcir no mínimo, do sofrimento que o homem tinha passado em serviço. Mas isto demonstra bem o clima de insurreição e intimidação que se estava a criar.

As coisas agravaram-se quando em Junho estava eu no meu trabalho sossegado e chega uma colega minha a pedir-me que autorizasse o meu motorista a levá-la até à escola do filho porque, segundo ela, havia grupos de terroristas a atacar as escolas. É evidente que autorizei com a ressalva de me levar a mim primeiro a minha casa para apanhar o meu carro e ir em socorro da minha mulher e da minha filha mais velha que estavam na escola.

Eram para aí três horas da tarde quando cheguei à escola e estava tudo num silêncio sepulcral. Apareceu lá do fundo um contínuo preto a dizer-me que as senhoras professoras e os alunos tinham todos saído e ido para as respectivas casas, mas que não houvera nada, apenas o boato.

Mais tranquilo desloquei-me a casa para falar com a minha mulher e saber pormenores. Apenas o susto pelo que poderia ter acontecido, mas que não aconteceu. O que não me deixou descansado a partir daí. O boato poderia tornar-se realidade, de um dia para o outro.

Dias depois disse à minha mulher: está a chegar a altura de concorreres para o próximo ano lectivo e deves fazê-lo só para o centro da cidade. Mesmo que fiques sem lugar não há problema, mas não quero viver em constante sobressalto.

No dia um de Agosto, um nosso conterrâneo, furriel miliciano que passava todos os dias livres em nossa casa veio à metrópole de férias e eu pedi-lhe que trouxesse papel selado assinado e os demais documentos necessários para que o meu cunhado Honorato, em Lisboa, pudesse ir ao Ministério da Educação para se informar da possibilidade de a minha mulher concorrer a um lugar de professora na metrópole. Caso o pudesse fazer elaborasse os requerimentos necessários para tal.

Entretanto todo o quotidiano se ia transformando em sobressalto constante. Desde uma tentativa de assalto ao quartel-general até roubos, espancamentos e muito mais.

Era tudo tão preocupante que, mais por instinto do que por razão, fui a um armeiro comprar uma caçadeira e um revólver de cano curto para a minha mulher. Consegui com dificuldade pois os armeiros estavam a ficar sem armas. Legalizei tudo, mas nunca dei um tiro com nenhuma delas.

No dia 14 de Agosto vou ao apartado que tinha na estação dos correios na Rua Brito Godins antes de ir para o trabalho e dou de caras com um aviso de registo de uma carta vinda de Lisboa. Esperei que abrisse a repartição e levantei a carta que era do meu cunhado Honorato. Dizia-me que ele não podia concorrer pela minha mulher, mas que o concurso para o ano lectivo 1974/75 decorria até ao dia 15 de Agosto e, como era feriado nacional, o prazo passava para o dia seguinte, dia dezasseis.

Já não fui trabalhar e regressei a casa intimando a minha mulher a decidir se queria continuar na angústia e no medo do que poderia acontecer ou se queria ir para Portugal e tentar arranjar emprego concorrendo a um lugar na Metrópole.

Foi angustiante. Dilacerante mesmo, posso dizer. Momentos inesquecíveis de dor. Era preciso decidir no momento, sem tempo para pensar. Até porque, se decidisse vir para a Metrópole era preciso mover influências e socorrer-me de amizades para arranjar um voo para aquele mesmo dia à meia-noite e, na altura, todos os voos estavam esgotados.

Quando decidiu sim desloquei-me a uma agência de viagens de um grande amigo meu para que me arranjasse a tão almejada passagem para a minha mulher e para as minhas filhas. Os amigos são para as ocasiões e eu jamais pagarei o favor daquele meu amigo que se esfarrapou para arranjar um lugar para a minha mulher e só para ela arranjando depois lugares para a minha mãe e para as minhas filhas no dia 26 de Agosto.

Foi um sufoco. Uma angústia e uma choradeira. A minha mulher não queria vir sem as filhas. Como eu a compreendi e melhor a compreendo hoje, mas teve de ser.

Assim aconteceu e, no dia 15 de Agosto de manhã a minha mulher estava em Lisboa indo no dia 16 ao Ministério para fazer o concurso. Foi informada que o concurso decorria nas Direcções Escolares Distritais e que, por despacho ministerial, principalmente por causa das mulheres dos militares, quem provasse ter vindo das Províncias Ultramarinas poderia concorrer até ao início do ano lectivo que era no dia sete de Outubro.

A minha mulher pensou que, valia a pena concorrer ao Distrito de Castelo Branco, o nosso distrito de origem, pelo menos ficava mais próximo da família.

 Dava-se assim início à debandada de brancos, pretos e mulatos não enfeudados ao MPLA e ao PCP, para Portugal, Brasil e outros países onde se podia viver em paz e democraticamente.


Capítulo 20

 

A minha mulher conseguiu concorrer e teve a sorte de ficar colocada na escola da terra que nos viu nascer e isso foi uma alavanca para decidirmos abandonar, definitivamente, uma terra onde fomos imensamente felizes e que julgávamos que nos iria guardar para além da morte.

Não sendo possível este nosso projecto de vida resolvemos mudar de rumo e ajustar os nossos objectivos.

Organizámos tudo o que era possível organizar, em tempo record, para regressar a Portugal.

Arranjámos caixotes onde embalámos as coisas fundamentais para um recomeço de vida e o meu pai embarcou com o seu carro e os caixotes no dia 31 de Agosto de 1974.

A minha mãe e as minhas filhas já estavam instaladas na Meimoa e eu comecei a pensar na forma de vir embora, logo que possível.

Juntámo-nos na nossa casa eu, o meu cunhado António, o meu primo Pina, o Frederico Pixote. Cozinhávamos e lá vivíamos sempre alerta.

Tínhamos a sorte de viver no centro da cidade e raramente se ouviam tiros. Até um dia em que um grupo de indivíduos quis atacar um vizinho nosso. Saímos em sua defesa e tudo acabou bem. Viemos a saber depois que era um ajuste de contas.

Quando começámos a gizar o nosso regresso a Portugal fomo-nos informar sobre a possibilidade de enviar algum dinheiro. Foi-nos dito que poderíamos fazê-lo desde o dinheiro estivesse depositado num estabelecimento bancário e o depositante fizesse uma declaração, devidamente reconhecida pelo notário, de que a sua ausência era definitiva ou, no mínimo, por um prazo de cinco anos.

Juntámos o nosso dinheiro com o do meu pai e este fez a tal declaração que entregámos no Fundo Cambial pedindo então a remessa do dinheiro para Portugal. Entretanto viemos com cinco contos cada um no bolso, o valor máximo autorizado. Qualquer coisa como vinte e cinco euros nos dias de hoje ainda que, naquele tempo, a vida era muito diferente e os ordenados eram baixíssimos. Um professor ganhava três mil e trezentos escudos (3 contos e trezentos).

Toda a restante família começou a vir embora. A Vida começou a ser insuportável mais pela sensação de insegurança do que por efectiva perseguição.

Tentei convencer o meu cunhado António a regressar, mas ele, porque era solteiro, achou que devia arriscar e quis ficar. Eu trouxe comigo o meu primo Pina. Regressei no dia 5 de Outubro de 1974 tendo trazido uma guia de marcha sem termo de regresso. Um favor que me foi feito pelo meu Director de Serviço e pelo Director dos Recursos Humanos da Câmara Municipal de Luanda.

Quando me dirigi ao Ministério do Ultramar que ainda não tinha sido extinto uma senhora que me atendeu disse-me que, segundo a Guia eu poderia ficar o tempo que quisesse. Agradeci, mas pedi que me propusesse para ir à Junta Médica pois sentia-me doente. Era meia-verdade. Tinha tido durante o mês de Setembro uma crise renal muito violenta que só atenuou com algumas doses de injecções de um analgésico forte e isso foi o suficiente para me darem três meses de licença.

Entretanto as coisas agravavam-se dia-a-dia. Houve o acordo de Alvor com os três movimentos de libertação que, na prática, só serviu para distrair os políticos portugueses e internacionais pois, em Angola, o almirante vermelho, Rosa Coutinho, que era Governador-Geral até à data da independência aprazada para dia 11 de Novembro de 1975, deixava reforçar as posições do MPLA e hostilizava os outros dois Movimentos Políticos. Mandou desarmar todos os brancos e cometeu outras atrocidades que a História um dia há-de mostra. Igualmente demonstrará como alguns traidores à Pátria foram capazes de, num ano, acabar com um império de quinhentos anos. É, pelo menos, a nossa convicção.

Agarrei esta oportunidade com determinação e comecei, desde logo a procurar trabalho.

No ano anterior tinha tido uma oferta muito vantajosa para trabalhar numa grande empresa de construção civil, J. Pimenta, Lda. Desta forma foi a minha primeira opção ir à empresa para ver se a oferta anterior se mantinha de pé. Tal não foi possível porque, entretanto, o dono da empresa teve de fugir para o Brasil.

Voltei para a terra e deslocava-me várias vezes a Lisboa para ver se o meu carro já tinha vindo de Luanda. Na altura era o bem mais valioso que possuía. Quando saí de Luanda deixei-o na alfândega para que fosse embarcado o mais depressa possível tendo deixado pago o respectivo transporte. Tardava a vir até que, em Janeiro de 1975 lá apareceu. Para o retirar da Alfândega de Lisboa foi mais um martírio apesar de ter tudo legal. Em situações daquelas é que me vinha ao pensamento a ideia de que o Salazar foi pouco sagaz porque tratou sempre as colónias como se de países estrangeiros se tratasse. Para transaccionarmos fosse o que fosse entre Portugal Continental e Angola era precisa pagar direitos alfandegários para além da burocracia inerente. Uma estupidez como estupidez foi a necessidade de carta de chamada nos anos cinquenta do século vinte para se poder ir para lá. Felizmente tal lei foi abolida no início da década de sessenta, mas as restantes leis inerentes à moeda e aos restantes produtos mantiveram-se sempre com prejuízo para Portugal e para Angola, pelo menos no que respeita aos respectivos povos.

Entretanto arranjei emprego, precário, na Câmara Municipal de Penamacor. O ordenado mal dava para as despesas de deslocação e alimentação no restaurante, mas era um emprego e isso era um alívio para quem, de um momento para o outro, passou de uma vida estável, confortável e até de um bem-estar assinalável, para uma situação de quase penúria.

Entretanto a política no país degradava-se de dia para dia. O PCP e seus satélites dominavam pelo terror todo o país. Foram as ocupações selvagens de casas de habitação, muitas delas por acabar, a nacionalização da banca, a ocupação das herdades com a malfadada reforma agrária, que o povo sério e honesto começou a apelidar de reforma agarra, tal o abuso na delapidação do património em proveito apenas de alguns que estavam na cúpula do partido comunista.

Em 11 de Março deu-se aquilo que se veio a chamar o PREC (processo revolucionário em curso) com o apoio dos militares comunistas e a tomada do poder da rua pelo PCP.

Enquanto isso em Angola tornava-se insustentável a vida para os brancos. Começavam a vir em magotes muitos daqueles que vieram a ser apelidados de retornados. Mais uma imprecisão porque muitos desses vinham para uma terra estranha já que tinham nascido lá e muitos dos seus pais e avós também.

Vivíamos numa casa emprestada pela minha tia Iria que estava no Luxemburgo e tinha a casa vazia, mas impunha-se arranjar casa própria. Não havia dinheiro e a angústia apoderava-se de todos nós. Aquele dinheiro que esperávamos que viesse através do Fundo Cambial como tínhamos previsto e era de lei nunca mais aparecia. Para mim essa apreensão era muito grande porque estava a ver a minha filha Raquel a crescer sem lhe poder dar aquilo que tinha dado à minha filha Lena que, até aquela data tinha sido criada como uma princesa, mas à Raquel, não lhe faltando nada do essencial todos aqueles mimos que eu gostava de lhe dar não eram possíveis.

Em Maio chegou uma boa notícia. Todos os funcionários públicos do ultramar iriam ter um quadro de pessoal com todas as regalias a que tinham direito no dia em que saíram de lá excepto, como é óbvio, ao chamado vencimento complementar. Isto é ao remanescente que acrescentava ao vencimento base que era igual em todo o território nacional. Na altura o vencimento dos funcionários públicos era regido pelas letras do alfabeto. Sendo a letra A o vencimento de um director-geral e a letra z a de um contínuo. Nós tínhamos a letra G.

Metemos o requerimento necessário para a integração nesse Quadro que iria, segundo a publicação da Lei no Diário da República ter início efectivo no dia 12 de Agosto de 1975. O Diário da República do dia 13 de Agosto trazia o nosso nome como integrante desse Quadro de Pessoal que depois iria disponibilizar pessoal pelos diferentes órgãos do Estado, desde Ministérios a Autarquias. No mês seguinte começámos a receber o que tínhamos direito seis mil e seiscentos escudos mensais. A vida voltou a dar alguma esperança.

A questão renal é que cada vez se agravava mais, por isso fui a um urologista em Lisboa que me receitou termas da Curia. No mês de Setembro de 1976, coloquei uma tenda de campismo em Mira, onde deixei a mulher e as filhas e eu deslocava-me todos os dias de manhã para fazer os tratamentos e à tarde dava uma volta pela praia.

Coincidência encontrei-me lá com o Luís Vaz e família e, em conversa, informou-me que havia um curso do magistério primário no Fundão e que se me matriculasse até me ajudavam a pagar as despesas de transporte.

Convém aqui dizer que eu tinha feito o exame de admissão ao Magistério no ano anterior em Castelo Branco e tinha sido aceite. Não frequentei porque as condições económicas não me permitiam. Esta conversa ficou a pairar na minha cabeça e comecei a pensar que se eu tirasse o curso isso permitiria que, ao abrigo da Lei dos Cônjuges, conseguíssemos colocação para os dois, aliás era o que acontecia com a maioria dos colegas do nosso concelho.

Acabadas as férias desloquei-me ao Fundão e falei com a Directora que me aceitou e me deu garantias de que o apoio social me iria ajudar no pagamento da gasolina já que não havia transporte público directo para o Fundão, caso contrário estava garantido o passe.

Resolvi deixar o trabalho na Câmara Municipal e ir estudar para o Magistério com a ideia de que em dois anos seríamos um casal de professores o que nos permitiria criar as nossas filhas com as condições necessárias para serem alguém na vida.

Iniciámos o ano lectivo de 76/77 e pouco tempo depois um novo ministro da Educação o Sotto Mayor Cardia decidiu que o curso teria de ser de três anos em vez de dois para aqueles que iniciaram o curso nesse ano lectivo e daí para a frente. Isto quer dizer que ainda tive colegas que andavam no segundo ano que quando eu terminei o primeiro eles acabaram o curso e a mim ainda ficaram a faltar-me mais dois anos. Foi uma contrariedade, mas depois verificámos que as aprendizagens que fizemos tiveram, efectivamente, um salto qualitativo considerável e, por isso, valeu a pena.

Em Maio de 1979 fui colocado pelo Ministério da Administração Interna na Câmara do Porto no meu lugar de origem de Luanda. Mais uma contrariedade pois só me faltava um mês para concluir o Curso do Magistério Primário e essa colocação deitava por terra o meu projecto e todo o esforço familiar durante três anos. Se não aceitasse o lugar seria exonerado do cargo que detinha no funcionalismo público com todas as perdas de regalias que isso acarretava. Fiz uma carta ao Ministro a expor a situação pedindo-lhe que adiasse a minha colocação por mais dois meses e ele aceitou.

No início do ano lectivo de 1979/80 fui colocado como professor no concelho de Oleiros e a partir de Janeiro na Meimoa. Trabalhei mais de seis meses e isso garantia a vinculação ao Estado ainda não como professor efectivo, mas, mesmo assim, com vínculo e com as regalias quase iguais às dos colegas do Quadro com excepção de que tinha de concorrer todos os anos para escola diferentes e, por conseguinte, mudar de escola todos os anos.

Desvinculei-me do Quadro Geral de Adidos e rumei a minha vida na carreira docente.

A Minha Lena, entretanto, tinha começado o ciclo preparatório no Fundão e aí deu continuidade até ao oitavo ano. Em Penamacor na altura só havia um colégio privado ao nível do secundário e o seu ensino tinha algumas lacunas que eu não queria para as minhas filhas. Entretanto a minha Raquel estudava no ensino primário e era aluna da mãe, na Meimoa, onde esta já era professora efectiva.

Entretanto ficámos colocados, por concurso, na Educação de Adultos então criada pelo Governo da Aliança Democrática chefiada pelo malogrado Dr. Francisco Sá Carneiro, na localidade de Aranhas, terra nossa vizinha aqui do concelho e começámos a fazer aquilo que muito gostávamos, ensinar alguma coisa àqueles que nunca tiveram a possibilidade de aprender, porque nunca puderam frequentar a escola.

Isto não invalida que não tenha gostado de todas as outras actividades que desenvolvera até aqui, mas, ensinar adultos foi para mim uma paixão.


Capítulo 21

 

A vida na Meimoa começou a trazer constrangimentos devido à necessidade das nossas filhas terem de estudar fora de casa. A Lena que, entretanto, tinha passado para um colégio privado de freiras, como alojamento, para poder frequentar o Liceu de Castelo Branco, chorava sempre que se telefonava, mesmo vindo passar os fins-de-semana a casa. A Raquel faria naquele ano lectivo o quarto ano de escolaridade e também necessitaria de sair de casa para estudar.

Eu sempre fui contra internatos. Não há razão objectiva para tal, mas é um sentimento que carrego desde jovem. Talvez por isso não tenha gostado do serviço militar apesar de não ter sofrido os horrores da guerra.

Por vicissitudes da vida o meu pai teve de ser operado em Coimbra e esteve lá internado cerca de uns quinze dias. Nós fomos lá visitá-lo e decidimos que nos deveríamos deslocar à Direcção escolar para nos informarmos da possibilidade de colocação naquela cidade e, assim, as nossas filhas ali poderem estudar até onde o seu interesse e capacidade lhes permitisse, já que que era ali que estava a Universidade Clássica, mais prestigiada no país e no mundo, naquela altura.

Tentámos obter informação sobre a localização, mas quem nos informou indicou-nos a Delegação escolar, em vez da Direcção escolar e isso, constatámos mais tarde, que foi uma preciosa ajuda.

O Delegado escolar foi simpatiquíssimo e demonstrou-nos que nós não tínhamos, ainda classificação para ficar colocados na cidade mas que havida arredores muito bons e onde a classificação que possuíamos permitia alcançar aquele objectivo. Para tal elencou alguns concelhos e deu-nos uma lista dos mesmos.

A minha mulher, com já era do quadro de efectivos, podia concorrer todos os meses para a escola e concelho que pretendia e, sem demora, assim fez.

O primeiro concelho que apareceu na lista que nos foi facultada pelo delegado era Cantanhede e, sendo assim, quando abriu o concurso lá concorreu para Cantanhede e, passado pouco tempo lá veio publicado no Diário da República a sua colocação naquele concelho. Eu teria de o fazer no início do ano lectivo 1982/83.

Assim aconteceu e em Setembro de 1982 lá fomos parar a Cantanhede a duas escolas diferentes.

Foi uma mudança difícil e com grandes sacrifícios para nós mas que foi fundamental para a vida futura das nossas filhas.

Ali estudaram até concluírem o ensino secundário e depois entraram as duas na Universidade de Coimbra, numa altura em que os números clausus  eram altamente restritivos no acesso ao ensino superior e ambas fizeram os seus cursos que, graças a Deus, tinham um bom grau de empregabilidade e hoje, são profissionais competentíssimas e de alto gabarito nos posto de trabalham que desempenham, ambas com funções de chefia, o que é um enorme orgulho para nós pais, que entendemos que não fizemos mais do que a nossa obrigação ao sacrificarmo-nos pelo futuro delas.

Em Cantanhede a Teresinha percorreu várias escolas e apaixonou-se pela educação especial, devido a uma criança com paralisia cerebral que foi sua aluna dois anos, salvo erro.

Eu dei aulas na mesma escola, durante cinco anos, onde levei dois grupos do primeiro ao quarto ano. Senti-me bem, mas com a minha irrequietude sempre aceitei novos desafios. Assim, fui desafiado para ser subdelegado escolar e aceitei, mas o hábito enraizado da “cunha” fez com que o Director escolar, depois de ter aceitado o meu nome para propor ao Ministério, virou o bico ao prego para meter no lugar um amigo.

Fiquei furioso, como se calcula. Não pelo lugar que não me trazia benefícios por aí além, mas pela sacanagem desta endémica corrupção, desde a base até ao topo da pirâmide do estado.

Coincidência ou não – competência, profissionalismo, rigor, honestidade e muito trabalho trazem alguma fama e prestígio - pouco tempo depois fui convidado para ir para Coimbra para Divisão do Ensino Especial como orientador pedagógico, o que aceitei. Assim, no ano que era para ser subdelegado escolar fui para a DEE como orientador pedagógico.

Naquele mesmo ano foram criadas as Direcções Regionais de Educação, num projecto de descentralização que, na prática não passou de projecto, pois as Direcções-gerais mantiveram a maior parte dos poderes que deveriam ter delegado nas direcções regionais e os serviços descentralizados dos Serviços Centrais, como era o caso da DEE (Divisão do Ensino Especial) foi integrados na Direcção Regional de Educação do Centro, com sede em Coimbra e nós, também passámos a integrar o pessoal da direcção regional. Éramos 27 elementos, na sua esmagadora maioria, professores, homens e mulheres, como é óbvio.

No ano seguinte, 88/89 a directora regional Dra. Fernanda Mota Pinto pediu-me para integrar a equipa da Educação de Adultos já que eu era experiente nessa área.

Aí desempenhou funções durante dezasseis anos numa actividade muito trabalhosa, mas muito gratificante.

Entretanto a filhas formaram-se e estavam empregadas e nós decidimos que nos deveríamos valorizar academicamente já que, profissionalmente, estávamos confortáveis na carreira.

Fizemos a licenciatura em educação especial no Piaget de Viseu e aproximávamos a passos largos para atingir a reforma.

A minha mulher atingiu logo o topo da carreira e a mim ficava a faltar-me um escalão.

A nossa Raquel, no seu espírito empreendedor, já que nós tínhamos acabado a licenciatura, ambos com dezassete valores e isso deva acesso directo ao Mestrado incentivou-me a eu prosseguir estudos e assim, no ano seguinte, aventurei-me a mais essa tarefa já com 58 anos de idade.

Foram dois anos de um trabalho imenso. De uma aprendizagem fantástica. Elaboração de uma tese que teve dez versões, mas fui o primeiro da minha turma a defender a tese de mestrado em ciências da educação com especialização em didáctica das ciências. Esse diploma deu-me acesso directo ao décimo escalão o topo da carreira docente e passado mais dois anos reformei-me. A minha mulher reformou-se dois anos antes.

 

Capítulo 22

 

Quando nos reformámos vivíamos sozinhos porque as nossas filhas tinham seguido as suas vidas profissionais em locais diferentes do nosso.

Felizmente, na altura ainda tínhamos vivos os meus pais e o meu sogro que, devido à sua doença prematura o fazia andar já na casa dos filhos há alguns anos.

Os meus pais viviam sozinhos na Meimoa e precisavam também do nosso apoio pois já tinham ultrapassado os oitenta anos.

Um pouco contrário à ideia da minha mulher resolvemos vir para a Meimoa para apoiar os nossos pais que tanto fizeram por nós e assim fizemos.

Ainda pudemos desfrutar da sua vida alguns bons anos o que nos encheu de alegria.

Nesta altura estamos outra vez sozinhos, mas deslocamo-nos a Lisboa para estarmos com as nossas filhas várias vezes por ano.

Não sei se é felicidade plena, mas não a menor dúvida que é muita felicidade.

 

CONCLUSÃO

 

Este arrazoado de estórias de vida não tem pretensões de género nenhum. Não pretende ser um livro, não pretende divulgação, não pretende ser um acto de saudosismo, de auto-elogio, de comiseração ou outra coisa qualquer excepto deixar às minhas filhas uma herança de vida.

Tal como pretendo deixar-lhe alguns dos poucos bens materiais que consegui angariar ao longo desta vida de setenta e sete anos também lhe quero deixar este testemunho de vida para que um dia, se tiverem oportunidade e quiserem lembrarem o pai, a mãe e, complementarmente, os avós e bisavós.

Por isso me fiquei pelo início dos anos oitenta porque, acredito que, a minha Lena e a minha Raquel, a partir dessa data, quando assentámos arraiais em Cantanhede, em Setembro de 1982, para lhes proporcionar a elas as melhores condições, a nível de formação, já tinham consciência das tomadas de decisão dos pais e com eles viveram todas as aventuras que fizeram delas grandes mulheres.

Óptimas profissionais. Insatisfeitas com os seus conhecimentos e por isso continuam, todos os dias e sempre, a procurar conhecimento, saber para, preservando os valores que lhes foram incutidos desde crianças, possam subir na vida a pulso, como os seus pais fizeram, porventura como mais algumas ferramentas, mas, certamente, com desafios iguais ou superiores em tenacidade e valentia.

Portanto toda a restante estória de vida é uma herança conhecida e não precisa de ser escrita. Quem sabe possa ser reescrita com as suas histórias pessoais, seus anseios, seus projectos, suas conquistas, suas desilusões, mas, sobretudo, o orgulho de serem quem são e donde vieram sem mancha que as possa envergonhar.

Estas estórias de vida ficam por aqui. Gostei de as escrever.

Agradeço tudo o que sou aos meus maiores, pais, avós, à minha mulher e às minhas filhas. Não posso esquecer os amigos que, em muitas circunstâncias da vida, foram os irmãos que não tive.

Até sempre.

 

José Rainho Caldeira