quinta-feira, 24 de setembro de 2020

PADRÃO SOCIAL!

 


Esta coisa dos velhos pensarem é uma cavalgada que nos deixa exaustos. Não porque canse o cérebro mas que aperta e dói o coração.

Sim, por que pensar não é apenas um acto displicente de cogitar. É muito mais do que isso. É intuir, inferir e concluir. Intuir sobre o modo, o processo e o resultado. Inferir sobre as circunstâncias e condições de aplicação do método. Concluir, para o bem e para o mal, se o modo e o processo foram bem escolhidos, melhor aplicados, para a obtenção dos melhores resultados.

Até parece que estamos para aqui a dar lições de sociologia mas é puro engano. Queremos, apenas, analisar o paradigma da vida dos concidadãos da nossa geração e das gerações que de nós nasceram.

Somos produto de um tempo e uma circunstância particular porque nascemos em plena segunda guerra mundial. Somos filhos homens e mulheres que nunca tiveram tempo de ser meninos, como diria o Soeiro Pereira Gomes, logo, trabalhadores que não foram à escola, nem tiveram oportunidades na vida, que lhe permitisse alargar horizontes. A maior parte dos nossos progenitores ou foram trabalhadores rurais, ou operários indiferenciados, com vidas plenas de dificuldades de toda a ordem, económicas, sociais, educativas. Fruto do seu tempo, a sociedade era patriarcal na ordem e no poder e matriarcal na dedicação, na superação e no amor.

O homem, chefe de família muito alargada - chegando muitas vezes à dezena de filhos - no desespero e miséria dos dias, não raro beberrão, para esquecer as agruras da vida, chegava a casa e, em vez de carinho, distribuía impropérios ou mesmo lambada, pelos que dele dependiam, mulher e filhos. Não foi numa casa destas que eu nasci e me criei, bem pelo contrário, mas estamos a falar de padrão social e não de casos particulares.

Daqui se infere que os nossos pais que só aprenderam a trabalhar, nos deram a nós, a possibilidade brincarmos, de irmos à escola e, pelo menos, fazer a quarta classe o que, só por si, num país de analfabetos, dava a possibilidade de aspirar a um emprego, ainda que modesto, em empresas, quase sempre familiares e até no Estado, nos escalões mais baixos da hierarquia, já se vê. Mesmo assim foi um salto qualitativo no elevador social.

Por sua vez, a nossa geração – quando falamos em geração falamos num horizonte temporal de vinte e cinco anos – procurou dar aos filhos todas as possibilidades que, mesmo assim, nós não tivemos. O nosso grande objectivo era proporcionar todas as condições para que os nossos filhos pudessem frequentar a Universidade e, na circunstância, a Universidade de Coimbra, por ser a que mais prestígio carreava junto da opinião pública, sem nenhum desprimor para as outras existentes, Lisboa, Porto e Évora, como é óbvio. Era apenas aquela percepção intuitiva e pouco substantiva da coisa, mas por alguma razão se dizia na época, que Coimbra era a terra dos doutores.

Como somos a geração do princípio da emancipação da mulher, pelo trabalho fora de casa, pelo aparecimento da pílula anticoncepcional, do Maio de 68, da paz e amor, do é proibido proibir, criámos os nossos descendentes com bonomia quando não, mesmo, com alguma lassidão, o que teve, como consequência imediata, a instalação de um certo egoísmo, porque quem não foi habituado a sacrificar-se, a partilhar dificuldades, mas também haveres, não se habitou a dar.

O que se assiste então: os pais de hoje dão tudo o que de material existe aos seus filhos, menos atenção e carinho. É mais fácil ver-se na rua um casal a passear o seu “bobi”, vestido e bem atrelado do que encolar uma criança. É frequente assistir-se a que os pais se concentrem em rodas de amigos até aos minutos finais antes da creche fechar para, no último minuto ir buscar o seu filho que ali deixou, muitas vezes ainda a dormir e o recebe também a dormir, estando o maior tempo possível longe dos seus rebentos. Talvez haja aqui algum exagero mas não me digam que não conhecem casos destes e só eu é que os vejo? Isto para não falar nos pais abandonados, sós, muitas vezes doentes ou depositados em lares clandestinos, por serem mais baratos e com menos condições. Também sou só eu que vejo?

O que virão a ser os nossos netos? É uma pergunta que me martela constantemente a cabeça e para a qual não encontro resposta. Dizem por aí que a geração dos quinze aos vinte e cinco é a mais bem preparada de sempre. Será? Preparada em quê? Porque tem diplomas? Onde estão os valores, a ética, a moral, os costumes, a tradição na inovação?

Não há muito ouvi uma jovem que estava a concluir o ensino secundário que, quando questionada sobre o que queria seguir respondeu categoricamente: “quero ser Juiz, porque se ganha muito dinheiro”. Atente-se no fundamento da aspiração.

Já o dissemos e repetimos. Estamos a falar de um padrão social e não de casos particulares que, felizmente os há e são bastantes, onde existe o inverso disto mesmo. Há altruísmo. Há solidariedade. Há amor ao próximo. Há honestidade.

Merecia maior aprofundamento este assunto mas o tempo e o espaço são escassos, por isso ficamos por aqui.

Estão a ver porque pensar é exaustivo?

23/09/2020

Zé Rainho

 

quarta-feira, 9 de setembro de 2020

SE...

 Um texto que escrevi há alguns anos mas que julgo actual.

Se…

Num tempo em que a gramática da Língua Portuguesa se dividia em: morfologia, fonologia e sintaxe havia “orações” que se classificavam de formas tão diferentes quanto o contexto em que se inseriam e, por isso, se diziam ser: causais, condicionais, concessivas, finais, temporais, comparativas, copulativas, adversativas, disjuntivas, conclusivas, por exemplo. Desta forma a gente entendia-se falando, escrevendo, contando factos, histórias, aventuras. Hoje, para muitos, principalmente para os mais jovens, estas coisas são minudências sem nenhum, ou com pouco, interesse.

Apesar desta discrepância no tempo e no Conhecimento e da tão famosa TLEBS (Terminologia Linguística para os Ensinos Básico e Secundário) já ser um “nado-morto” considerei ter algum interesse e quem sabe, para nos divertirmos, debitar para o papel algumas "orações", "frases", "ideias", como queiram, no modo condicional mas que eu queria ver alterado para outros modos mais apelativos, como presente, futuro, passado, por exemplo.

É que me inquieta este constante condicional que, em meu modesto entender, muitas vezes, não deixa de ser, de algum modo, uma desculpa, um álibi, para muitos acontecimentos  a que assistimos, este "se". Se tivesse acontecido isto? Se não fora aquilo? Se fosse aqueloutro? Se não fosse o outro?  De alguma forma são questões que, não resolvendo nada, não deixam de tornar a "alma" mais leve, a consciência menos pesada e, quiçá,  justificação para situações reais, concretas que desculpam, ou procuram mitigar alguns remorsos - talvez não remorsos - se calhar apenas arrependimentos.

O Tempo passado, vivido, experienciado, pelos academistas quase que nos obriga a reviver um passado recheado de "ses". Mas, sendo esta uma evidência, não poderá deixar que este condicional nos ofusque o presente, qual dia de nevoeiro intenso, onde não se vê um palmo à frente do nariz,  e não nos permita regressar a um presente que pode ser futuro e, mesmo que o não seja para usufruto próprio, possa vir a ser útil aos vindouros. Deixemos pois o condicional e passemos ao presente: eu quero!

Eu quero muitas coisas. Em primeiro lugar quero ser um cidadão livre de peias ou mordaças. Depois quero ter a liberdade de ouvir, olhar, ver e opinar em consciência, mesmo que essa opinião choque, polemize e traga para à ribalta o outro que, tal como eu, tem os mesmos direitos e, porventura, os mesmos anseios só que vistos com cores diferentes, mais vivas ou mais esbatidas, consoante a (de) formação ou o estado de espírito.

Por isso eu quero uma sociedade mais solidária e lutarei com todas as forças para que tal aconteça. Anseio o mesmo para esta Instituição que cada vez mais se vem afirmando como uma Organização plural, interventiva, social, educativa, promocional da velhice e das suas potencialidades.

Quero também que a Academia não seja abúlica nas questões "quentes" da sociedade mas tome parte no debate das questões relacionadas com a vida do todo Nacional e não só local ou Regional, de forma a, mesmo que a sua voz não ecoe junto dos corredores do Poder, se faça ouvir por entre os seus pares e muitos dos que, como nós, têm obrigação de legar aos descendentes um património cultural, afectivo, emocional e sentimental que seja a bússola que não erra o destino, porque é capaz de determinar o azimute certeiro. Quando se fala em bússola não se está a desprezar o GPS ou o Sistema de Informação Geográfica, tão em moda, nos nossos dias. Uma coisa não invalida a outra. Sermos capazes de compreender sistemas e utensílios artesanais e conjugá-los com altas e muito modernas tecnologias é uma das vantagens da idade, porque só esta dá lugar a um saber de experiência feito, que pode ser muito útil à Ciência e à Inovação.

Não me conformo, deste modo, com o condicional. Repito que quero o presente com visão e estratégia prospectiva com vista a um futuro diferente. Um futuro que não se refugie na frase batida de que "no meu tempo é que era" e siga em frente com a mesma força e vontade como se tivéssemos vinte anos, mas com o senso e a ponderação que só os anos passados são capazes de catalisar.

 Vamos lá então todos fazer força para passarmos do condicional para o presente, conjugar todos os verbos neste tempo mas, mais do que conjugá-los, pô-los em prática, com vista a um futuro mais risonho, mais sereno, mas, sobretudo mais auspicioso para o bem-estar da nossa criançada, juventude e, por que não, velhice.

Os Academistas Seniores, melhor do que ninguém sabem do que falo porque todos nós passámos por dificuldades mas vislumbrávamos um luz ao fundo do túnel. Hoje vemos muitos jovens sem esperança e isso não pode deixar ninguém indiferente. Um jovem desesperado é capaz de tudo: desde entrar por caminhos tortuosos até ao próprio suicídio. Uma sociedade que deixa os seus jovens sem esperança é uma sociedade doente e nós, pelo nosso exemplo e pelo nosso testemunho podemos ajudar. Tenho a certeza disso. Perdoem-me mas estou farto do "talvez", do "assim, assim". Quero ser assertivo e contundente. Quero ser afirmativo e inteiramente convicto. Todos temos de fazer a nossa parte. Eu vou, desde já, com este artigo, iniciar a minha.

 

Fevereiro de 07

José Rainho Caldeira

SERÁ UTOPIA?

 


Será utopia almejar

Um governo para governar

O povo e todas as classes

De forma igual com equidades?

 

Será utopia não querer mais corrupção

Na legislatura que inicia a sua acção

Que se expurgue o compadrio e amiguismo

Partidário ou de outro poder por seguidismo?

 

Será utopia ambicionar excelente educação

Para todos, igual, sem qualquer excepção.

Saúde melhor disponível, atenta, e humana

Para toda a gente, prontamente em casa ou na cama?

 

Será utopia querer uma Justiça de ambição

Que julgue por igual o pequeno e o grande ladrão

Que tenha para com todos uma postura de igualdade

De Poder justo, equidistante e com total liberdade?

 

Será utopia desejar que a segurança seja actuante

Quando é precisa em qualquer local ou instante.

Querer que as autoridades sejam respeitadas

Pelo seu esforço, contributo para a paz, dignificadas?

 

Será utopia desejar Instituições Bancárias Sérias

Sem manobras, nem expedientes ou outras lérias

Que os banqueiros sejam honrados e com ética

E não prestamistas doutros tempos e eras fétidas?

 

Será utopia acreditar que um eleito deputado

Pugna pelo bem-estar do povo em todo o lado

E serve com todo o seu ser, brio, honra e orgulho

O mais prestigiante serviço à Pátria sem engulho?

 

Será utopia acreditar que o cidadão sente o dever

De votar para intervir, decidir e também escolher

Quem merece ocupar o lugar de facto, no Parlamento

Não para obter benesses mas servir a todo o momento?

 

sexta-feira, 4 de setembro de 2020

Estórias de vida - Conclusão

 

Este arrazoado de estórias de vida não tem pretensões de género nenhum. Não pretende ser um livro, não pretende divulgação, não pretende ser um acto de saudosismo, de auto elogio, de comiseração ou outra coisa qualquer excepto deixar às minhas filhas uma herança de vida.

Tal como pretendo deixar-lhe alguns dos poucos bens materiais que consegui angariar ao longo desta vida de setenta e sete anos também lhe quero deixar este testemunho de vida para que um dia, se tiverem oportunidade e quiserem lembrarem o pai, a mãe e, complementarmente, os avós e bisavós.

Por isso me fiquei pelo início dos anos oitenta porque, acredito que, a minha Lena e a minha Raquel, a partir dessa data, quando assentámos arraiais em Cantanhede, em Setembro de 1982, para lhes proporcionar a elas as melhores condições, a nível de formação, já tinham consciência das tomadas de decisão dos pais e com eles viveram todas as aventuras que fizeram delas grandes mulheres.

Óptimas profissionais. Insatisfeitas com os seus conhecimentos e por isso continuam, todos os dias e sempre, a procurar conhecimento, saber para, preservando os valores que lhes foram incutidos desde crianças, possam subir na vida a pulso, como os seus pais fizeram, porventura como mais algumas ferramentas mas, certamente, com desafios iguais ou superiores em tenacidade e valentia.

Portanto toda a restante estória de vida é uma herança conhecida e não precisa de ser escrita. Quem sabe possa ser reescrita com as suas histórias pessoais, seus anseios, seus projectos, suas conquistas, suas desilusões mas, sobretudo, o orgulho de serem quem são e donde vieram sem mancha que as possa envergonhar.

Estas estórias de vida ficam por aqui. Gostei de as escrever.

Agradeço tudo o que sou aos meus maiores, pais, avós, à minha mulher e às minhas filhas. Não posso esquecer os amigos que, em muitas circunstâncias da vida foram os irmãos que não tive.

Até sempre.

 

José Rainho Caldeira

Estórias de vida 19

 

Capítulo 19

 

A minha mulher conseguiu concorrer e teve a sorte de ficar colocada na escola da terra que nos viu nascer e isso foi uma alavanca para decidirmos abandonar, definitivamente, uma terra onde fomos imensamente felizes e que julgávamos que nos iria guardar para além da morte.

Não sendo possível este nosso projecto de vida resolvemos mudar de rumo e ajustar os nossos objectivos.

Organizámos tudo o que era possível organizar, em tempo record, para regressar a Portugal.

Arranjámos caixotes onde embalámos as coisas fundamentais para um recomeço de vida e o meu pai embarcou com o seu carro e os caixotes no dia 31 de Agosto de 1974.

A minha mãe e as minhas filhas já estavam instaladas na Meimoa e eu comecei a pensar na forma de vir embora logo que possível.

Juntámo-nos na nossa casa eu, o meu cunhado António, o meu primo Pina, o Frederico Pixote. Cozinhávamos e lá vivíamos sempre alerta.

Tínhamos a sorte de viver no centro da cidade e raramente se ouviam tiros. Até um dia em que um grupo de indivíduos quis atacar um vizinho nosso. Saímos em sua defesa e tudo acabou bem. Viemos a saber depois que era um ajuste de contas.

Quando começámos a gizar o nosso regresso a Portugal fomo-nos informar sobre a possibilidade de enviar algum dinheiro. Foi-nos dito que poderíamos fazê-lo desde o dinheiro estivesse depositado num estabelecimento bancário e o depositante fizesse uma declaração, devidamente reconhecida pelo notário, de que a sua ausência era definitiva ou, no mínimo, por um prazo de cinco anos.

Juntámos o nosso dinheiro com o do meu pai e este fez a tal declaração que entregámos no Fundo Cambial pedindo então a remessa do dinheiro para Portugal. Entretanto viemos com cinco contos cada um no bolso, o valor máximo autorizado. Qualquer coisa como vinte e cinco euros nos dias de hoje ainda que, naquele tempo, a vida era muito diferente e os ordenados eram baixíssimos. Um professor ganhava três mil e trezentos escudos (3 contos e trezentos).

Toda a restante família começou a vir embora. A Vida começou a ser insuportável mais pela sensação de insegurança do que por efectiva perseguição.

Tentei convencer o meu cunhado António a regressar mas ele, porque era solteiro, achou que devia arriscar e quis ficar. Eu trouxe comigo o meu primo Pina. Regressei no dia 5 de Outubro de 1974 tendo trazido uma guia de marcha sem termo de regresso. Um favor que me foi feito pelo meu Director de Serviço e pelo Director dos Recursos Humanos da Câmara Municipal de Luanda.

Quando me dirigi ao Ministério do Ultramar que ainda não tinha sido extinto uma senhora que me atendeu disse-me que, segundo a Guia eu poderia ficar o tempo que quisesse. Agradeci mas pedi que me propusesse para ir à Junta Médica pois sentia-me doente. Era meia verdade. Tinha tido durante o mês de Setembro uma crise renal muito violenta que só atenuou com algumas doses de injecções de um analgésico forte e isso foi o suficiente para me darem três meses de licença.

Entretanto as coisas agravavam-se dia-a-dia. Houve o acordo de Alvor com os três movimentos de libertação que, na prática, só serviu para distrair os políticos portugueses e internacionais pois, em Angola, o almirante vermelho, Rosa Coutinho, que era Governador-Geral até à data da independência aprazada para dia 11 de Novembro de 1975, deixava reforçar as posições do MPLA e hostilizava os outros dois Movimentos Políticos. Mandou desarmar todos os brancos e cometeu outras atrocidades que a História um dia há-de mostra. Igualmente demonstrará como alguns traidores à Pátria foram capazes de, num ano, acabar com um império de quinhentos anos. É, pelo menos, a nossa convicção.

Agarrei esta oportunidade com unhas e dentes e comecei, desde logo a procurar trabalho.

No ano anterior tinha tido uma oferta muito vantajosa para trabalhar numa grande empresa de construção civil, J. Pimenta, Lda. Desta forma foi a minha primeira opção ir à empresa para ver se a oferta anterior se mantinha de pé. Tal não foi possível porque, entretanto, o dono da empresa teve que fugir para o Brasil.

Voltei para a terra e deslocava-me várias vezes a Lisboa para ver se o meu carro já tinha vindo de Luanda. Na altura era o bem mais valioso que possuía. Quando saí de Luanda deixei-o na alfândega para que fosse embarcado o mais depressa possível tendo deixado pago o respectivo transporte. Tardava a vir até que, em Janeiro de 1975 lá apareceu. Para o retirar da Alfândega de Lisboa foi mais um martírio apesar de ter tudo legal. Em situações daquelas é que me vinha ao pensamento a ideia de que o Salazar foi pouco sagaz porque tratou sempre as colónias como se de países estrangeiros se tratasse. Para transaccionarmos fosse o que fosse entre Portugal Continental e Angola era precisa pagar direitos alfandegários para além da burocracia inerente. Uma estupidez como estupidez foi a necessidade de carta de chamada nos anos cinquenta do século vinte para se poder ir para lá. Felizmente tal lei foi abolida no início da década de sessenta, mas as restantes leis inerentes à moeda e aos restantes produtos mantiveram-se sempre com prejuízo para Portugal e para Angola, pelo menos no que respeita aos respectivos povos.

Entretanto arranjei emprego, precário, na Câmara Municipal de Penamacor. O ordenado mal dava para as despesas de deslocação e alimentação no restaurante mas era um emprego e isso era um alívio para quem, de um momento para o outro, passou de uma vida estável, confortável e até de um bem-estar assinalável, para uma situação de quase penúria.

Entretanto a política no país degradava-se de dia para dia. O PCP e seus satélites dominavam pelo terror todo o país. Foram as ocupações selvagens de casas de habitação, muitas delas por acabar, a nacionalização da banca, a ocupação das herdades com a malfadada reforma agrária, que o povo sério e honesto começou a apelidar de reforma agarra, tal o abuso na delapidação do património em proveito apenas de alguns que estavam na cúpula do partido comunista.

Em 11 de Março deu-se aquilo que se veio a chamar o PREC (processo revolucionário em curso) com o apoio dos militares comunistas e a tomada do poder da rua pelo PCP.

Enquanto isso em Angola tornava-se insustentável a vida para os brancos. Começavam a vir em magotes muitos daqueles que vieram a ser apelidados de retornados. Mais uma imprecisão porque muitos desses vinham para uma terra estranha já que tinham nascido lá e muitos dos seus pais e avós também.

Vivíamos numa casa emprestada pela minha tia Iria que estava no Luxemburgo e tinha a casa vazia mas impunha-se arranjar casa própria. Não havia dinheiro e a angústia apoderava-se de todos nós. Aquele dinheiro que esperávamos que viesse através do Fundo Cambial como tínhamos previsto e era de lei nunca mais aparecia. Para mim essa apreensão era muito grande porque estava a ver a minha filha Raquel a crescer sem lhe poder dar aquilo que tinha dado à minha filha Lena que, até aquela data tinha sido criada como uma princesa mas à Raquel, não lhe faltando nada do essencial todos aqueles mimos que eu gostava de lhe dar não eram possíveis.

Em Maio chegou uma boa notícia. Todos os funcionários públicos do ultramar iriam ter um quadro de pessoal com todas as regalias a que tinham direito no dia em que saíram de lá excepto, como é óbvio, ao chamado vencimento complementar. Isto é ao remanescente que acrescentava ao vencimento base que era igual em todo o território nacional. Na altura o vencimento dos funcionários públicos era regido pelas letras do alfabeto. Sendo a letra A o vencimento de um director-geral e a letra z a de um contínuo. Nós tínhamos a letra G.

Metemos o requerimento necessário para a integração nesse Quadro que iria, segundo a publicação da Lei no Diário da República ter início efectivo no dia 12 de Agosto de 1975. O Diário da República do dia 13 de Agosto trazia o nosso nome como integrante desse Quadro de Pessoal que depois iria disponibilizar pessoal pelos diferentes órgãos do Estado, desde Ministérios a Autarquias. No mês seguinte começámos a receber o que tínhamos direito seis mil e seiscentos escudos mensais. A vida voltou a dar alguma esperança.

A questão renal é que cada vez se agravava mais, por isso fui a um urologista em Lisboa que me receitou termas da Cúria. No mês de Setembro de 1976, coloquei uma tenda de campismo em Mira, onde deixei a mulher e as filhas e eu deslocava-me todos os dias de manhã para fazer os tratamentos e à tarde dava uma volta pela praia.

Coincidência encontrei-me lá com o Luís Vaz e família e, em conversa, informou-me que havia um curso do magistério primário no Fundão e que se me matriculasse até me ajudavam a pagar as despesas de transporte.

Convém aqui dizer que eu tinha feito o exame de admissão ao Magistério no ano anterior em Castelo Branco e tinha sido aceite. Não frequentei porque as condições económicas não me permitiam. Esta conversa ficou a pairar na minha cabeça e comecei a pensar que se eu tirasse o curso isso permitiria que, ao abrigo da Lei dos Cônjuges, conseguíssemos colocação para os dois, aliás era o que acontecia com a maioria dos colegas do nosso concelho.

Acabadas as férias desloquei-me ao Fundão e falei com a Directora que me aceitou e me deu garantias de que o apoio social me iria ajudar no pagamento da gasolina já que não havia transporte público directo para o Fundão, caso contrário estava garantido o passe.

Resolvi deixar o trabalho na Câmara Municipal e ir estudar para o Magistério com a ideia de que em dois anos seríamos um casal de professores o que nos permitiria criar as nossas filhas com as condições necessárias para serem alguém na vida.

Iniciámos o ano lectivo de 76/77 e pouco tempo depois um novo ministro da Educação o Sotto Mayor Cardia decidiu que o curso teria que ser de três anos em vez de dois para aqueles que iniciaram o cursos nesse ano lectivo e daí para a frente. Isto quer dizer que ainda tive colegas que andavam no segundo ano que quando eu terminei o primeiro eles acabaram o curso e a mim ainda ficaram a faltar-me mais dois anos. Foi uma contrariedade mas depois verificámos que as aprendizagens que fizemos tiveram, efectivamente, um salto qualitativo considerável e, por isso, valeu a pena.

Em Maio de 1979 fui colocado pelo Ministério da Administração Interna na Câmara do Porto no meu lugar de origem de Luanda. Mais uma contrariedade pois só me faltava um mês para concluir o Curso do Magistério Primário e essa colocação deitava por terra o meu projecto e todo o esforço familiar durante três anos. Se não aceitasse o lugar seria exonerado do cargo que detinha no funcionalismo público com todas as perdas de regalias que isso acarretava. Fiz uma carta ao Ministro a expor a situação pedindo-lhe que adiasse a minha colocação por mais dois meses e ele aceitou.

No início do ano lectivo de 1979/80 fui colocado como professor no concelho de Oleiros e a partir de Janeiro na Meimoa. Trabalhei mais de seis meses e isso garantia a vinculação ao Estado ainda não como professor efectivo mas, mesmo assim, com vínculo e com as regalias quase iguais às dos colegas do Quadro com excepção de que tinha que concorrer todos os anos para escola diferentes e, por conseguinte, mudar de escola todos os anos.

Desvinculei-me do Quadro Geral de Adidos e rumei a minha vida na carreira docente.

A Minha Lena, entretanto, tinha começado o ciclo preparatório no Fundão e aí deu continuidade até ao oitavo ano. Em Penamacor na altura só havia um colégio privado ao nível do secundário e o seu ensino tinha algumas lacunas que eu não queria para as minhas filhas. Entretanto a minha Raquel estudava no ensino primário e era aluna da mãe, na Meimoa, onde esta já era professora efectiva.

Entretanto ficámos colocados, por concurso, na Educação de Adultos então criada pelo Governo da Aliança Democrática chefiada pelo malogrado Dr. Francisco Sá Carneiro, na localidade de Aranhas, terra nossa vizinha aqui do concelho e começámos a fazer aquilo que muito gostávamos, ensinar alguma coisa àqueles que nunca tiveram a possibilidade de aprender, porque nunca puderam frequentar a escola.

Isto não invalida que não tenha gostado de todas as outras actividades que desenvolvera até aqui mas, ensinar adultos foi para mim uma paixão.

Estórias de vida 18

 


 

A vida no seu continuum desenrolava-se com toda a normalidade até que, sem contarmos, fomos confrontados com a nova gravidez da minha mulher.

Apesar de não programada ficámos felizes com o acontecimento começando, desde logo, a preparação para receber o novo ser que vinha a caminho.

Não havia ecografias e só se sabia se era menino ou menina após o nascimento. A nossa filha Lena queria que fosse uma mana e não um mano.

A minha mulher continuava a trabalhar na escola onde iniciou a sua profissão, um bairro, maioritariamente indígena, encastelado entre dois bairros, maioritariamente, de residentes brancos. Na circunstância os bairros, Madame Berman e Popular, este último junto do Cemitério Novo na Estrada de Catete.

Eu continuava o meu trabalho na Câmara Municipal de Luanda na dependência directa do Engenheiro Chefe da Repartição e do Chefe de Secção, um velho funcionário à beira da aposentação. Pessoas extraordinárias com quem aprendi muito da profissão mas, sobretudo, da vida.

Em Janeiro de mil novecentos e setenta e três o chefe de secção que já tinha informado que queria vir de licença graciosa à Metrópole nesse ano, numa reunião informou as chefias de que teria de reagendar essa licença para mil novecentos e setenta e quatro já que tinha que casar uma filha no ano de setenta e três.

Eu, que tinha feito planos para vir de Graciosa em setenta e quatro levantei a questão da impossibilidade de virmos os dois, chefe de secção e chefe de trabalhos principal no mesmo ano e ausentarmo-nos do serviço seis meses ao mesmo tempo. É evidente que as chefias superiores sabiam que eu já que não gozava a licença graciosa há seis anos teria a preferência para gozar essa licença. Mas rapidamente chegámos a um consenso estipulando que viria eu em setenta e três e o chefe de secção em setenta e quatro. Uma troca simples e do agrado de todos. E assim se programou as respectivas licenças graciosas.

A minha mulher seguia com a gravidez acompanhada por um obstetra que também exercia funções no Hospital Universitário de Luanda. Sim, porque, entretanto, já tinha sido criada a Universidade em Angola e em Luanda, mais concretamente, construindo-se também um novo Hospital para apoiar a Faculdade de Medicina.

A nossa criança, segundo o médico, nasceria nos fins de Maio ou, no máximo, nos primeiros dias de Junho. Assim marcámos viagens para 30 de Junho com o aval do médico para a criança viajar.

Comprámos um carro novo para ser entregue em Lisboa no dia 1 de Julho de 1973. Dizia-se que se adquiria um carro em trânsito. Comprámos um carro que estava na moda, na altura, um Ford Capri 1600 GT de cor amarela. Naquele ano os carros mais vendidos foram precisamente o Ford Capri e o BMW.

No dia 14 de Junho a minha mulher foi internada no Hospital Universitário por que, na opinião do médico, a criança já devia ter nascido e podia estar em sofrimento. Consequentemente era necessário provocar-se o parto. Nunca se pensou em cesariana. Felizmente, no dia 15 de Junho, pelas 12 horas nasceu a nossa filha Raquel. Uma alegria imensa partilhada por todos e em grande júbilo pela nossa filha Lena que queria uma mana e não um mano.

Tudo correu bem e os nossos planos de viajar para a Metrópole para mostrar a filha aos avós maternos e às tias.

Chegámos a Lisboa pelas oito horas da manhã do dia 1 de Julho. Fomos recebidos no aeroporto pelos nossos familiares e alojámo-nos em casa da nossa cunhada Alice e o nosso cunhado Honorato.

Estes nossos cunhados andavam destroçados porque lhes tinha falecido uma filha com dois anos e meio por morte súbita que nunca ninguém entendeu. A chegada da nossa bebé foi um bálsamo para a minha cunhada que a encolava a todo o momento.

No dia seguinte dirigi-me ao stand representante da Ford no Campo de Santa Ana em Lisboa e, qual a minha desilusão, houve um atraso no fornecimento do carro vindo da Alemanha, de Colónia, mais concretamente. O atraso era de um mês. Apresentaram as mais variadas desculpas mas não me resolveram o problema da falta do carro para as minhas deslocações o que me deixou em fúria. O carro estava pago há mais de quatro meses e, consequentemente, só me restou reclamar mas, como é habitual em Portugal, a culpa morre sempre solteira.

Tive que me deslocar para a Beira Baixa de comboio com a família. As férias não começavam bem mas esperávamos que se compusessem.

No dia 30 de Julho lá voltámos a Lisboa para levantar o nosso carro. Era lindo e chamava à atenção de toda a gente. Era do tipo desportivo e muito vistoso.

Fizemos um périplo pelo País desde Viana do Castelo até ao Algarve e ficámos a conhecer este Portugal desconhecido, pelo menos, para nós.

Descansámos alguns dias e fizemo-nos à estrada para a Europa. Visitámos a Espanha, a França, o Luxemburgo, Andorra fazendo o regresso no dia dos anos da minha mulher, 21 de Agosto, uma viagem longa de Madrid a Lisboa, mas ainda a tempo de comemorarmos o aniversário em família em casa dos meus cunhados onde tinha ficado a nossa Raquel que, por ser recém-nascida não a poderíamos sujeitar a viagens tão longas.

Foram umas férias de sonho e, em Janeiro, a minha mulher recebe uma carta da directora da sua escola a dizer que havia lá uma vaga mas que teria que a ocupar até 15 de Janeiro.

Muito rapidamente tratámos das passagens aéreas para a minha mulher e as minhas filhas e para um primo meu, o Pina, que estava no ano de ser chamado para a tropa para ver se conseguíamos que fosse incorporado pelo contingente de Angola e, assim, garantir que cumpria o serviço militar num local onde tinha família e não ia parar à Guiné ou a Moçambique. Embarcaram no dia 14 de Janeiro de 1974 pela meia-noite. Pelo que me contaram foi uma viagem turbulenta com condições atmosféricas adversas desde o início. Só a meio da viagem o temporal desapareceu e a viagem foi tranquila.

Entretanto eu tive que ir de navio para poder levar o carro comigo. Esse procedimento era norma das Companhias de navegação que davam prioridade às viaturas dos passageiros, caso contrário a viagem do carro era muito mais demorada e só quando havia vagas de carga é que despachavam as viaturas. Isto podia implicar uma demora de dois ou três meses e eu não queria o meu carro debaixo da ponte Salazar (assim se designava ainda em Janeiro de 1974) a apanhar o salitre das águas do Tejo e as intempéries de um Inverno em pleno.

Assim embarquei no dia 28 de Janeiro de 1974 no navio Príncipe Perfeito. Um navio novo e com todas as condições para uma viagem de sonho. Viajava em primeira classe, num camarote de duas camas que eu partilhei com um agente da PIDE-DGS, um rapaz mais ou menos da minha idade com quem gostei de viajar.

Apresentámo-nos no dia do embarque e ele disse-me ser funcionário público, como eu era, aliás.

Com o decorrer da viagem o jovem, muito simpaticamente, disse-me que era da PIDE e a sua função no navio era prevenir ataques semelhantes àqueles que tiveram lugar no navio Santa Maria em 1961, pelo Henrique Galvão e mais uma certa esquerdalha, como o ladrão do Banco da Figueira da Foz, o Camilo Mortágua e outros de igual quilate.

Foi uma viajem maravilhosa fazendo paragem no Funchal e em São Tomé. Dez dias depois desembarcávamos em Luanda.

Em Luanda retomámos as nossas funções profissionais e a nossa vida familiar que era de verdadeira felicidade.

Trabalhávamos toda a semana mas ao fim-de-semana juntávamo-nos para nos divertirmos e petiscarmos.

Nesse tempo tínhamos como Presidente da Câmara um Dr. Cunha (não lembro do restante nome) que era um homem de visão estratégica e que começou o seu mandato com o objectivo de acabar com a construção clandestina, que era um flagelo, e dotar todos os bairros habitados por indígenas de fontanários. Paralelamente dotar a cidade de uma rede de saneamento básico mais adequada ao tipo de cidade em que Luanda se transformara, considerada a mais bela e mais civilizada cidade africana.

A propósito, o Dr. Cunha, como muitos daqueles que, como eu, nasceram ou viveram em Angola desde crianças, queriam que a Província tivesse mais autonomia política e financeira, dizia: “Angola é uma vaca que tem os cornos cá e as tetas em Portugal continental. É preciso alterar este estado de coisas. É preciso virar os cornos para a metrópole e as tetas para Angola, para podermos desenvolver este país como deve ser”. Eu, e muitos como eu concordávamos, plenamente com isso. Isto quer dizer que o Presidente do Conselho Professor Doutor Marcelo Caetano que tinha visitado Angola em 1971 e que fora recebido pelas populações, todas as raças e etnias, em ombros não tivera ou não lhe deixaram ter a coragem de avançar com a autonomia que toda a gente aspirava, com vista a uma independência pacífica e devidamente controlada.

Foi pena. Em 25 de Abril de 1974 um grupo de capitães que estavam a sentir, cada vez com mais força, que a sua carreira na progredia como eles queriam porque, devido à guerra, em poucos anos chegavam a capitão mas depois a progressão era muito mais lenta já que os quadros de pessoal estavam preenchidos por generais novos, organizaram-se para derrubar o governo da república e assim resolverem dois problemas da sua vida. Primeiro acabavam com a guerra do ultramar e deixavam de correr riscos e segundo depunham os generais que existiam e tomavam o seu lugar. Foi um golpe de estado egoísta onde não se ponderou nada a não ser os próprios interesses. Acrescentou-se a isto a influência do Partido Comunista Português, na clandestinidade desde 1926, com uma influência política soviética poderosa junto de uns ignorantes e incapazes jovens nada politizados.

Foi a desgraça total. Poucos dias depois do 25 de Abril começaram os boatos de ataques e maus tratos a brancos e mestiços. A propaganda do MPLA, até aí moribundo, começou a dar resultados. A população branca começou a reviver o período de 1961 em que o terror foi uma constante.

A anarquia nos quartéis começou a desenvolver-se e a perder-se a disciplina. Em Maio, os militares pretos fizeram uma marcha até ao quartel[CJ1] [CJ2] -general para entregar as armas. As manifestações de rua sob a batuta do PCP em conluio com o MPLA – os outros dois movimentos independentistas, FNLA e UNITA – nunca foram tomados em conta, eram quase diárias.

Ao fim de um dia de trabalho, antes de ir para casa, disse ao motorista que me levasse a ver os trabalhos de implantação de fontanários no bairro da Boavista e, quando lá cheguei, dei com uma drama que nunca mais me saiu da memória. Os trabalhadores tinham implantado o fontanários e estavam a abrir o poço roto para escoamento das águas sobrantes. Quando o poço já tinha uns quatro metros de profundidade um dos trabalhadores, sem saber, deu com a picareta num tubo de abastecimento de água que rebentou e começou a verter em grandes quantidades água para dentro do poço. O terreno era arenoso e desabou uma boa parte em cima de dois trabalhadores. Desgraçadamente para um, o desabamento causou-lhe o quebrar de uma perna impossibilitando-o de fugir de soterramento naquele mar de lama e água. Quando lá cheguei detectei uma azáfama para tentar salvar o homem mas uma azáfama descoordenada e ineficaz. Saltei do jeep peguei numa picareta e cinco ou dez metros a montante do local do acidente rebentou com o tubo condutor de água para o fontanário passando a água a derramar-se num local que não ia para o poço onde o trabalhador estão quase soterrado. Tina água pelo pescoço.

Mandei um trabalhador ir até ao comerciante mais próximo pedir para ligar para os bombeiros municipais para mandarem socorro e, entretanto, comecei a orientar os trabalhos de remoção lenta de terras para que se retirasse o homem da situação aflitiva que tinha passado. A morte tinha parecido eminente e sem retorno.

Retirámos o homem do lamaçal quando os bombeiros chegaram e detectaram que o homem, para além de uma perna partida tinha uma enorme ansiedade, angústia e medo, apesar de ser um homenzarrão fisicamente.

Aquele dia, quando cheguei a casa já era de noite e a família estava em pânico.

Nos dias que se seguiram fui ver o trabalhador ao Hospital e dar-lhe todo o apoio necessário a ele e à família. Quando o homem teve alta e começou a trabalhar dei-lhe um lugar onde não fizesse esforços. Pu-lo num sanitário público apenas de guarda onde não fazia esforços nenhuns.

Poucos dias depois o homem veio dizer-me que se ia embora para a sua terra, o Lucala porque ali os colegas ameaçavam-nos dizendo que era amigos dos brancos já que eu lhe tinha proporcionado um trabalho diferente daquele que fizera até ao acidente.

Tentei demovê-lo da decisão solicitando-lhe informações do local onde as ameaças partiam. Eram feitas no musseque onde residia.

No estaleiro da Câmara havia imensas casas de madeira que foram demolidas por serem clandestinas e se destinarem a tapar a verdadeira construção de pedra e cal, como se costuma dizer, que era feita por dentro. Eram casas enormes e com boas condições de habitabilidade. Ofereci uma dessas casas ao trabalhador ameaçado e ele aceitou perdendo aquela ideia de deixar o emprego e ir para trabalhos muito mais esforçados na terra dele.

Em mais ou menos quinze dias voltou o homem com a ideia de ir para a terra dele dizendo, mais uma vez, que ele era amigo dos brancos e por isso eu o protegia. Não era nada disso eu apenas o estava a ressarcir no mínimo, do sofrimento que o homem tinha passado em serviço. Mas isto demonstra bem o clima de insurreição e intimidação que se estava a criar.

As coisas agravaram-se quando em Junho estava eu no meu trabalho sossegado e chega uma colega minha a pedir-me que autorizasse o meu motorista a levá-la até à escola do filho porque, segundo ela, havia grupos de terroristas a atacar as escolas. É evidente que autorizei com a ressalva de me levar a mim primeiro a minha casa para apanhar o meu carro e ir em socorro da minha mulher e da minha filha mais velha que estavam na escola.

Eram para aí três horas da tarde quando cheguei à escola e estava tudo num silêncio sepulcral. Apareceu lá do fundo um contínuo preto a dizer-me que as senhoras professoras e os alunos tinham todos saído e ido para as respectivas casas mas que não houvera nada, apenas o boato.

Mais tranquilo desloquei-me a casa para falar com a minha mulher e saber pormenores. Apenas o susto pelo que poderia ter acontecido mas que não aconteceu. O que não me deixou descansado a partir daí. O boato poderia tornar-se realidade, de um dia para o outro.

Dias depois disse à minha mulher: está a chegar a altura de concorreres para o próximo ano lectivo e deves fazê-lo só para o centro da cidade. Mesmo que fiques sem lugar não há problema mas não quero viver em constante sobressalto.

No dia um de Agosto, um nosso conterrâneo, furriel miliciano que passava todos os dias livres em nossa casa veio à metrópole de férias e eu pedi-lhe que trouxesse papel selado assinado e os demais documentos necessários para que o meu cunhado Honorato, em Lisboa, pudesse ir ao Ministério da Educação para se informar da possibilidade de a minha mulher concorrer a um lugar de professora na metrópole. Caso o pudesse fazer elaborasse os requerimentos necessários para tal.

Entretanto todo o quotidiano se ia transformando em sobressalto constante. Desde uma tentativa de assalto ao quartel-general até roubos, espancamentos e muito mais.

Era tudo tão preocupante que, mais por instinto do que por razão, fui a um armeiro comprar uma caçadeira e um revólver de cano curto para a minha mulher. Consegui com dificuldade pois os armeiros estavam a ficar sem armas. Legalizei tudo mas nunca dei um tiro com nenhuma delas.

No dia 14 de Agosto vou ao apartado que tinha na estação dos correios na rua Brito Godins antes de ir para o trabalho e dou de caras com um aviso de registo de uma carta vinda de Lisboa. Esperei que abrisse a repartição e levantei a carta que era do meu cunhado Honorato. Dizia-me que ele não podia concorrer pela minha mulher mas que o concurso para o ano lectivo 1974/75 decorria até ao dia 15 de Agosto e, como era feriado nacional, o prazo passava para o dia seguinte, dia dezasseis.

Já não fui trabalhar e regressei a casa intimando a minha mulher a decidir se queria continuar na angústia e no medo do que poderia acontecer ou se queria ir para Portugal e tentar arranjar emprego concorrendo a um lugar na Metrópole.

Foi angustiante. Dilacerante mesmo, posso dizer. Momentos inesquecíveis de dor. Era preciso decidir no momento, sem tempo para pensar. Até porque, se decidisse vir para a Metrópole era preciso mover influências e socorrer-me de amizades para arranjar um voo para aquele mesmo dia à meia-noite e, na altura, todos os voos estavam esgotados.

Quando decidiu sim desloquei-me a uma agência de viagens de um grande amigo meu para que me arranjasse a tão almejada passagem para a minha mulher e para as minhas filhas. Os amigos são para as ocasiões e eu jamais pagarei o favor daquele meu amigo que se esfarrapou para arranjar um lugar para a minha mulher e só para ela arranjando depois lugares para a minha mãe e para as minhas filhas no dia 26 de Agosto.

Foi um sufoco. Uma angústia e uma choradeira. A minha mulher não queria vir sem as filhas. Como eu a compreendi e melhor a compreendo hoje, mas teve que ser.

Assim aconteceu e, no dia 15 de Agosto de manhã a minha mulher estava em Lisboa indo no dia 16 ao Ministério para fazer o concurso. Foi informada que o concurso decorria nas Direcções Escolares Distritais e que, por despacho ministerial, principalmente por causa das mulheres dos militares, que provasse ter vindo das Províncias Ultramarinas poderia concorrer até ao início do ano lectivo que era no dia sete de Outubro.

A minha pensou que, valia a pena concorrer ao Distrito de Castelo Branco o nosso distrito de origem pelo menos ficava mais próximo da família.

 Dava-se assim início à debandada de brancos, pretos e mulatos não enfeudados ao MPLA e ao PCP para Portugal, Brasil e outros países onde se podia viver em paz e democraticamente.


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