segunda-feira, 31 de agosto de 2020

ESTÓRIAS DE VIDA 17

 

A minha mulher quando acabou o curso, Junho de 1971 foi para Luanda para concorrer a um lugar naquela cidade onde eu adorava viver e ela nem tanto. Mas lá foi ela com a filha, já com quatro anos de idade, para juntos dos meus pais e da maioria da minha família. Eu fiquei porque, apesar de ter pedido imensas vezes para ser transferido para Luanda o argumento de que fazia falta ao serviço pesou sempre para não ser concedida.

Mas, ao fim de três meses depois da minha mulher ter sido colocada em Luanda, porque podia requerer a transferência ao abrigo da Lei dos Cônjuges, lá me transferiram para a sede em Luanda, Janeiro de 1972.

Quando a minha mulher e a minha filha foram para Luanda eu, para além de ter solicitado a transferência, mais uma vez, comecei a procurar vagas noutros serviços em Luanda. Encontrei uma vaga na Câmara Municipal onde o meu currículo se encaixava na perfeição e concorri. Havia apenas uma vaga e dois concorrentes. O concurso para além do currículo tinha uma prova escrita e uma prova oral. Perdoe-se-me a imodéstia mas fiquei em primeiro lugar.

Como atrás se referiu, em Janeiro fui transferido e voltei a ter uma vida familiar e profissional normal para o meu padrão de vida mas, entretanto, chamaram-me para a Câmara onde as condições de trabalho e o próprio vencimento eram substancialmente melhores.

Estávamos no início de 1972 e a minha mulher tinha imensas saudades dos pais e das irmãs. Entretanto tinha perdido uma das suas maiores referências, o seu avô materno sem que pudesse despedir-se dele. Tudo razões para eu sentir que necessitava de fazer alguma coisa para lhe proporcionar alegria e felicidade.

Começámos a equacionar a ida dela mais da filha à metrópole para mostrar a menina aos pais, irmãs e demais familiares. Era o seu primeiro ano de trabalho pelo que só tinha direito às férias nos meses de Julho e Agosto, mais alguns dias de finais de Junho e princípios de Setembro o que, bem-feitas as contas daria para aí uns três meses. Não era muito mas já daria para colmatar a saudade acumulada durante quase seis anos de ausência. É evidente que era necessário suportar todas as despesas. Era também preciso o sacrifício familiar já que eu não poderia vir tanto tempo porque, como funcionário do quadro, só tinha direito a um mês de Férias por ano e, em última instância, poderia também pedir a licença graciosa – seis meses – que era um privilégio obtido a cada cinco anos. Poderia utilizar este privilégio mas não me dignificava. Acabara de entrar para aquele lugar na Câmara Municipal faria pouco sentido solicitar logo a licença graciosa. Decidimos que as viagens se fariam de avião, bastante mais caras do que em navio, mas com um ganho de tempo de mais ou menos vinte dias.

Analisadas todas as prerrogativas familiares conseguiu-se conciliar a viagem de navio para os meus pais, de licença graciosa. Para a minha mulher, férias de três meses, não pagas. Para o meu cunhado férias, de um mês e para mim o mesmo, pagas mas sem direito a viagens. Combinámos então virem os meus pais e a minha mulher e filha logo em Junho e eu e o meu cunhado apenas no mês de Agosto. Assim fizemos.

Foi um reencontro com as raízes, muito aprazível e o rever da família muito gratificante.

Viviam-se os primeiros anos de férias dos emigrantes que foram para a França a salto. Nos primeiros anos, desde a primeira metade da década de sessenta, foi necessário arranjar documentação legal, amealhar alguns Francos para transferir para Portugal e, então, poder visitar as famílias que, na circunstância, eram a maioria das pessoas que viviam na Meimoa.

Num daqueles momentos de lazer e em conversa com o meu primo Joaquim Pina que fizera a tropa em Angola e passara todo o tempo que pôde em nossa casa. A terminar duas semanas de férias na terra concluímos que se fossemos a Paris conseguíamos comprar um carro em França que permitiria aos meus pais percorrer a metrópole em visita sem grande investimento e que depois poderia levar para Luanda e até ganhar algum dinheiro.

Fomos experimentar. Eu e o meu pai fomos com o meu primo de autocarro até Paris e, no dia seguinte à chegada à cidade Luz, um deslumbramento para mim devido a muitos aspectos mas, especialmente, aquele que mais me marcou, a venda pelos ardinas do jornal do parido comunista francês à porta do Metro. Fiquei estupefacto. Em Portugal tal era impensável. Quem se atrevesse seria imediatamente preso pela PIDE.

Era domingo. Metemo-nos no Metro e fomos até Bicêtre arredores de Paris onde decorria um mercado (feira) de automóveis usados de todas as qualidades e feitio, de todas as marcas e dos mais variados preços, em plena avenida. Eram muitos milhares. Vi um carro que me agradou, um fiat 124 que estava na moda por um preço acessível. Feitas as contas da conversão da moeda, um Franco valia cerca de cinco escudos, custava cerca de vinte e cinco contos. Começámos a negociar e o dono do carro quis pô-lo a trabalhar para demonstrar o bom funcionamento do motor já que o exterior, carroceria e chassis estavam impecáveis. O motor não funcionou, no imediato, e o dono do carro disse-me: desculpa mas já não te posso vender o carro porque não está em condições.

Fiquei de queixo caído com a honestidade demonstrada. Nunca tinha assistido a tal forma de negociar em Portugal onde, os negociantes, quase sempre procuravam enganar os compradores. Deu-me alento esta atitude e percorri quase toda a avenida que tem alguns quilómetros procurando o carro que me servisse. Não queria luxos mas também não queria nenhuma sucata.

Cansados e já com algum desânimo cerca das dezassete horas, deixei o mercado porque não encontrara mais nada que me tivesse agradado e entre num stand de ocasião quase no fim da avenida. Vi um Renault 16 em excelente estado de aparência, último modelo da marca, com menos de um ano de serviço e com 20.000 km. Encantei-me pelo carro mas custava sessenta contos. Quantia muito elevada para adquirir um carro que depois das férias seria para vender em Luanda já que, tanto eu como o meu pai tínhamos carros novos comprados no ano anterior.

Pensámos no assunto, muito rapidamente e decidimos que valia a pena o investimento. Apalavrámos o negócio e ficámos de, no dia seguinte, segunda-feira, depois da abertura dos bancos, fazer o câmbio e levantar o carro. Assim aconteceu e, por volta do meio-dia, já tinha a documentação provisória na mão e seguro. Nessa altura até o meu pai era novo e eu muito jovem pelo que, apesar da viagem de autocarro no sábado até quase de madrugada, no calcorrear quilómetros a pé para adquirir o carro durante o domingo, não meteu medo nenhum um regresso a Portugal.

Saímos de Paris sem um mapa, qualquer tipo de indicação excepto a do meu primo que me disse mete-te no periferique e sai pela estrada nacional dez. Não era altura de haver GPS ou qualquer outra tecnologia. Os mapas eram o único meio de navegação por terras desconhecidas mas o tempo e a lembrança não deu para adquirir um, pelo que ficámos reduzido à informação oral recebida.

Estou convencido que tudo correria bem porque, apesar da velocidade obrigatória naquela via, sempre com o helicóptero da polícia a incentivar à velocidade constante para tornar o trânsito fluido, eu não tinha grandes problemas em conduzir porque já tinha carta há cerca de dez anos e muitos quilómetros percorridos e conduzia desde os catorze anos de idade, fora das povoações e com condutores familiares ao lado mas, há sempre um mas, no percurso havia obras no periferique e era obrigatória a saída e, depois de um desvio, nova entrada e tal foi fatal. Perdi-me. Depois de umas voltas estava num bairro que ainda hoje não sei o seu nome mas vi que era residencial e, por isso, não seria o percurso certo. Enquanto andava e pensava se devia ou não pedir a um taxista que fosse à minha frente até entrar na estrada nacional dez passei junto de um policia sinaleiro e encostei-me à peanha e pedi-lhe auxílio. Foi extremamente simpático e deu-me indicações preciosas que eu segui à risca. Ia devagar pela incerteza que me acometia e, pouco depois, encostaram-se a mim dois polícias de viação e trânsito de moto dizendo-me que deveria aumentar a velocidade para não empatar o trânsito. Respondi que não tinha a certeza se ia bem para a estrada nacional dez que queria ir para Portugal ao que eles, delicadamente, me disseram: segue-nos, nós vamos para lá. Rapidamente cheguei à estrada que conduzia a Portugal e aí foi só pisar o pé do acelerador.

Uma aventura em terras estrangeiras, com uma língua estudada apenas no liceu, com pouca prática, mas mesmo assim deu para desenrascar. Estórias de vida.

Viajámos toda a tarde quase sem parar até à fronteira com Espanha onde chegámos cerca das 4 da manhã. Descansámos um pouco e metemo-nos de novo a caminho e às 14 horas de terça-feira chegámos à Meimoa onde soubemos que a minha mulher, minha filha e minha mãe tinham ido a Penamacor arranjar o cabelo pelo que deixei o meu pai em casa e fui para Penamacor buscar os meus amores.

segunda-feira, 24 de agosto de 2020

HISTÓRIAS DE VIDA 16

 

Passada a vida militar retomámos a nossa vida civil tomando posse como segundo oficial da Administração (3º Bairro Administrativo), um serviço do Estado que passava documentos de identificação na ausência destes, atestados, procedia ao recenseamento da população e todas as outras actividades ligadas à administração pública.

Entretanto e ainda durante a vida militar tinha feito um concurso público para as Obras Públicas. Um serviço público de carácter geral que englobava toda a Província Ultramarina. Mal comparado podia dizer-se que seria um Ministério se o país fosse independente. Tentava-se preparar o futuro.

Em 9 de Agosto de 1967 nasce a nossa primeira filha. A nossa Lena. Foi uma imensa felicidade. A primeira bisneta que o meu avô Ricardo e só ele, todos os outros avós já tinham falecido, ainda teve a oportunidade de conhecer.

A primeira criança, da quarta geração, desta família a que nos orgulhamos de pertencer.

Pouco depois da nossa filha nascer veio ter connosco o nosso cunhado António que ainda chegou a tempo de ser seu padrinho de baptismo.

Passado um ano fomos chamados para ingressar nas Obras Públicas e, pouco tempo depois, fomos enviados para Silva Porto – Bié, no planalto central de Angola. Capital de Distrito tinha a missão de desenvolver uma imensidão de território que se afirmava pela sua enorme capacidade agrícola, arroz, sisal, algodão, mas também pelas frutas, principalmente abacaxi e manga e, também a pecuária, principalmente gado vacum.

Era uma zona de influência da UNITA, partido político moderado que lutava em armas pela independência mas, apesar disso, um território muito tranquilo onde se podia andar sem preocupações.

Chegámos lá no dia 28 de Setembro de 1968 depois de uma viagem fantástica. Por total e absoluto desconhecimento do que íamos encontrar programamos a viagem de forma a levarmos algumas coisas básicas, mas pesadas, pelo que decidimos ir de barco até ao Lobito e ali apanharmos o comboio da linha de Benguela até Silva Porto. O combóio seguia no seu trajecto total até à Zâmbia.

A gare do comboio fica a sete quilómetros do centro da cidade pelo que apanhámos um táxi com as malas de mão, deixando os restantes pertences ao cuidado do Chefe da Estação e dirigimo-nos à cidade, particularmente ao Hotel Girão onde nos hospedámos os três, eu, minha mulher e a minha filha, a família vai junta seja para onde for. Foi assim quando eu era criança foi quando assumi a minha própria família.

Quando me dirigi à sede das Obras Públicas locais verifiquei que estava encerrada e apenas um guarda estava de serviço. Perguntei a razão e fui informado que havia tolerância de ponto pela tomada de posse do Professor Doutor Marcelo Caetano como Presidente do Conselho de Ministros em substituição do Professor Doutor Oliveira Salazar que, meses antes, tinha sofrido um acidente e ficara incapaz.

Como a tarde ainda há pouco começara resolvi dar uma volta pela cidade para tentar conhecer. Lá fomos os três dar uma volta a pé. A cidade era pequena e tudo era muito perto do seu centro onde se situavam os edifícios públicos, Câmara Municipal, Palácio do Governador Civil, Banco de Angola, Obras Públicas, Hospital, por exemplo. Também a Igreja que era Sé episcopal, já que a cidade tinha um Bispo no seu comando religioso.

No dia seguinte apresentei-me no serviço e fui recebido com bastante agrado e delicadeza. Desde logo o Chefe de trabalhos que, na ausência do engenheiro, chefe da repartição comandava todo o conjunto de funcionários, desde a secretaria que contava com três, a secção técnica com outros três, um dos quais desenhadores, um mecânico e a secção do trânsito que contava com dois funcionários e mais uma patrulha da polícia de trânsito que trabalhava em articulação. Falamos de funcionários do quadro de Obras Públicas e Transportes por que, para além destes havia mais de uma centena de trabalhadores eventuais, carpinteiros, pedreiros, motoristas e outros indiferenciados. Portanto, este serviço público, tinha a seu cargo desde a construção de uma escola ou um posto administrativo até uma estrada com as suas pontes e viadutos.

Cabia à secção técnica a elaboração de projectos, concursos públicos e até a execução de obras públicas de pequena dimensão e monta. Para tal tinha que submeter à Direcção Provincial, anualmente, um conjunto de projectos e respectivo orçamento para ser cabimentado no orçamento geral da Província.

Quando cheguei não sabia nada desta matéria e, como tal, assim me apresentei ao Rosas, o referido Chefe de Trabalhos, com toda a humildade. Bonacheirão como era respondeu-me que isso era o que acontecia a todos e o que era preciso era força de vontade para aprender. Acrescentou, então: é casado, solteiro, veio sozinho, onde está alojado, como é? Respondi que era casado que tinha uma filha e estava alojado no Hotel Girão. Disse logo com toda a sua prestimosa atenção: Vamos lá encontrar uma casa para morar que isto de estar no Hotel não ganha para as despesas.

Assim foi. Fez um telefonema e passada meia hora estávamos todos a ver uma casa, melhor, um apartamento num terceiro andar mesmo em frente da Sé Catedral, pertencente a um dos grandes comerciantes da cidade que era, também, fornecedor de materiais de construção para a repartição.

O Rosas era uma pessoa muito conhecida e estimada na cidade. Para além da posição que detinha na repartição, fora jovem para aquela cidade, ali casara e fizera vida há mais de trinta anos. Era também presidente do clube Sporting Clube do Bié que, para além da equipa de futebol, tinha grandes equipas de desporto amador como o andebol e o basquetebol.

Foi uma experiência extraordinária para si e para a sua família nuclear. Muita aprendizagem. Já vinha desde os seus primeiros tempos de vida consciente a máxima aprendida através do pai e dos avós que “ o saber não ocupa lugar” e já jovem adulto, de um professor de português, no quinto ano do liceu, outra complementar que era “a faculdade de aprender é a faculdade de esquecer” e tudo isto fez com que muito rapidamente tivesse aprendido o básico para desempenhar com eficácia as funções. Com tal agrado por parte do Rosas que passei a ser seu confidente, seu braço direito e seu pupilo dilecto, perdoe-se-me a imodéstia.

Entretanto o conhecimento com os demais colegas, vizinhos, outros funcionários das demais repartições fizeram com que estabelecêssemos uma rede de amizades e de convivência social muito interessante.

Outra coincidência que não esperava foi o encontro, poucos dias depois, com um conterrâneo que estava instalado no Vouga, concelho limítrofe da cidade, comerciante muito querido e poderoso no meio, vereador na respectiva Câmara Municipal, a título gracioso, como era normal na época e nomeado pelas entidades oficiais por ser pessoa conceituada no meio e que eu conhecia de Luanda por ser visita da casa dos meus pais, o Senhor João Manteigas. Grande amigo que já era e, cuja amizade, se fortaleceu com o convívio, no mínimo, semanal.

Poucos meses depois já sabíamos tudo da vida uns dos outros. Éramos sócios da mesma Cooperativa que nos fornecia todos os produtos alimentares, para assim, ser mais económico para todos.

Já toda a gente sabia que a minha mulher tinha o quinto ano do liceu, tinha trabalhado nos Correios em Portugal continental e que ali só cuidava da casa e da filha pelo logo, alguém, soube de uma vaga nos serviços da Administração e o Rosas lá foi indicar a minha mulher como potencial candidata. Um mês ou dois depois lá foi ela trabalhar como Administrador, repartição igual aquela em que eu comecei em Luanda.

Ela não gostava muito do trabalho porque tinha dificuldades em escrever à máquina e porque a maior parte do trabalho era passar guias para os contratados para as fazendas do Norte de Angola. Talvez por isso, e porque eu comecei a conhecer o que se passava nos meandros da função pública local, soube que estavam abertas as inscrições para o exame de admissão ao Magistério Primário local. Conversámos sobre o assunto e, pouco menos de um ano de estarmos naquela cidade a minha mulher entrou no Magistério para tirar o curso de professora primária.

Início de Setembro de 1969 lá foi para as aulas e eu levava a minha filha Lena, já com dois anitos, mas uma menina educada, simpática, linda que toda a gente queria apaparicar para o meu gabinete já que a mãe não a podia ter com ela e eu estava sozinho no meu gabinete e, consequentemente, ela não incomodava ninguém. Brincava com os brinquedos e, como atrás referi, era o bijou de todos os colegas. Apesar disso o Rosas um dia disse-me: Caldeira por que é que a miúda não fica lá em casa com a minha mulher e a minha filha mais nova? Acanhado, tentei recusar a oferta, extremamente generosa, dizendo que não queria incomodar. Mas ele insistiu. Vai para lá de manhã antes do você vir para o trabalho e vai lá buscá-la ao fim da tarde. Isto não custa nada. Ela brinca com a minha Vanda e com a Isabel (uma miúda preta sua afilhada e que eles criavam como filha) escusa da sua mulher andar atarefada na hora do almoço e de você estar preocupado com a miúda quando precisar de fazer qualquer serviço externo.

Isto foi sair a sorte grande já que o serviço externo era muito frequente, duas três vezes por semana e a minha filha condicionava muito quer a minha actividade quer a da mãe.

Lá fomos levar a nossa Lena à Dona Aurora que a recebeu com extremo carinho. A partir daí a nossa filha foi tratada como se fosse outra filha do casal e a minha mulher pode fazer o curso do Magistério Primário com tranquilidade e empenho o que lhe rendeu uma das melhores notas desse ano (dezasseis) valores havendo apenas outra colega que obteve igual classificação.

Neste intervalo foi colocado a Chefiar a Repartição um engenheiro, português, Licenciado no Porto mas nascido em Cantão, China, filho de pai português e mãe chinesa mas criado em Macau. Depois de licenciado voltou para Macau onde iniciou funções nas Obras Públicas locais. Muitos anos lá trabalhou até que um militar que foi lá colocado como governador lhe moveu um processo disciplinar e o transferiu para Angola e para Silva Porto. A mulher era chinesa e tinha filhas a estudar em Macau. Este rude golpe para o engenheiro, que não sabemos se foi justo ou injusto, transformou-o num péssimo funcionário público. Não queria saber nada do que se passava e tudo deixou nas costas do Rosas.

Nós lá íamos continuando com as nossas aprendizagens e fazendo a nossa vida profissional. Como o Rosas construiu uma moradia geminada de raiz numa zona muito bonita da cidade alugámos-lhe uma das casas deixando o terceiro andar onde iniciámos a nossa estada naquela cidade.

O mês de Março em Angola era de férias escolares e, por isso aproveitei o Março de 1970 para ir de férias para Luanda aproveitando as férias da minha mulher. Na tarde de 28 de Fevereiro assisti, na minha secção de trabalho, a um acerto de contas entre o Rosas e o Zé Luís, aquele comerciante de materiais diversos entre eles de materiais de construção, amigo pessoal do Rosas e fornecedor das Obras Públicas através de requisições que eram liquidadas quando o orçamento da Repartição fosse concretizado em pagamentos pelo Governo-geral. Nesse acerto começou por haver discordância entre os dois acerca dos valores em dívida e do montante do cheque passado ao comerciante. O Rosas esclareceu que o Zé Luís estava errado, demonstrou-lhe o erro e acrescentou que as Obras Públicas ficavam com um crédito de 150 placas de fibrocimento que ainda não tinham sido fornecidas. A coisa ficou assim acertada e, entretanto, chegaram-se as dezassete horas e depois de dar conta ao Rosas do trabalho que tinha em mãos e que era preciso continuar despedi-me até ao dia um de Abril. Mal sabia eu que seria até à eternidade.

No dia 16 de Março regressado com a minha mulher e a filha – na altura ainda só tinha a minha primeira filha – da praia cheguei a casa e tinha um telegrama do engenheiro a pedir-me para regressar urgentemente porque se dera, no dia anterior a morte prematura e inesperada do Rosas quando se deslocava, em serviço externo, ao Quando Cubango, um dos extremos do distrito do Bié, para inspeccionar a construção da Administração e da casa do Chefe de Posto. Fiquei para morrer. Tive de regressar de avião porque, entretanto, tinha tido um pequeno acidente com o carro, do qual não tive nenhuma responsabilidade e o culpado responsabilizou-se perante a oficina a pagar os estragos e a reparação demorou mais do que se esperava e ainda não estava pronto.

Já não cheguei a tempo do funeral mas no dia seguinte lá estava eu junto daquela família, muito querida, a chorar uma morte cujas causas aparentes, nunca comprovadas, foram as obras na estrada e o nevoeiro intenso.

A amizade com o casal e filhos perdurou até à perda sucessiva de alguns elementos nomeadamente a viúva, passados mais de vinte anos e do filho mais de trinta. Com os sobreviventes ainda hoje perduram ainda que nos vejamos pouco pois residimos a distância considerável.

O Rosas deixou a viúva e os filhos com graves problemas financeiros. Desde logo devido a uma dívida desconhecida da viúva, junto do já referido Zé Luís, referente à construção da moradia geminada onde eu vivia e uma outra família. O Rosas contava pagar a dívida com as rendas que recebia mensalmente dos inquilinos.

A viúva desconhecia totalmente de quem o Rosas era devedor mas também de quem era credor e também era de muita gente. Era uma dona de casa a quem não faltava nada porque quando precisava de dinheiro pedia e era-lhe entregue. Formas de viver em casal da qual eu não comungo mas que respeito.

No mês de Abril desloquei-me a Luanda com a viúva e a filha mais velha que, na época teria os seus dezassete anos, para junto do Montepio dos Servidores do Estado obter a indemnização devida e a pensão de sangue. Logo ali nos foram entregues cem contos em dinheiro vivo que aliviou o sufoco da família enquanto esperava os trâmites da pensão de sangue que demorou cerca de um ano, mas que veio.

Para cumular a desgraça, ainda não tinha completado oito dias depois de sepultado já o nome do Rosas estava a ser enxovalhado. O Zé Luís foi ter com o engenheiro e apresentou uma dívida das Obras Públicas no valor de setecentos contos. O Engenheiro ficou atarantado. Não sabia nada do que se passava nem queria saber, como já se disse, estava numa situação de castigado e via-se embrulhado num, hipotético desfalque ao Estado. Era muito castigo.

Foi ter com o Governador Civil e deu-lhe conta do que estava a passar. O Governador, um tenente-coronel de cavalaria que era extramente amigo do Rosas ficou em pânico mas, ao mesmo tempo, irritado com o comerciante que também era vereador municipal e tudo isso se conjugava para arrastar o nome do Rosas pela lama. Perguntou ao engenheiro o que é que poderiam fazer para não enxovalhar o nome do Rosas e ele disse nada saber porque, desde a primeira hora, tinha dado carta-branca ao Rosas. Com a insistência do Governador a tentar perceber quem poderia ajudar na solução do problema o engenheiro disse-lhe que eu era o braço-direito do Rosas e, eventualmente, poderia ajudar. Estava no meu trabalho no gabinete e recebo um telefonema do Governador a convocar-me para uma reunião. Diga-se de passagem que eu era um jovem de vinte e sete anos com a inexperiência inerente à idade. Lá fui de imediato, os edifícios eram quase contínuos e cinco minutos depois estava a ser anunciado pelo secretário do Governador que me mandou entrar de imediato para o gabinete onde ainda se encontrava o engenheiro.

O Governador conhecia-me, vagamente, por eu ter fiscalizado a construção de um muro a toda a volta da sua residência oficial.

Mal entrei o Governador disse-me, não quero que o nome do Rosas seja manchado. Tudo o que falarmos aqui fica aqui. Prometi sem rebuço.

Fui então informado que o Zé Luís tinha apresentado requisições no valor de cerca setecentos contos que estavam em dívida pelas Obras Públicas e o serviço não tinha como pagar. Fiquei atónito e contei ao Governador a conversa que ouvira no dia 28 de Fevereiro, que não sabia de mais nada, mas que me parecia uma malvadez do Zé Luís – que eu tinha por vigarista - diga-se de passagem. Não tinha como provar nada, pois a conversa fora entre os dois e eu apenas assisti, porque estava a passar o trabalho ao Rosas antes de me despedir para férias e seria a palavra dele contra a minha, já que o Rosas tinha falecido.

O Governador ficou de pensar no assunto dizendo que nos convocaria aos dois, a mim e ao engenheiro, para uma reunião no dia seguinte.

Assim foi. Pediu-nos para elaborar projectos no valor de cinco mil contos para ele ir a Luanda solicitar o financiamento. Em tempo recorde assim fizemos e numa semana apresentamos os projectos e respectiva localização das obras. Em boa verdade eles estavam feitos há muito tempo e destinavam-se às zonas mais remotas do distrito e, por essa razão, ano a ano firam ficando para trás. Só foi preciso fazer as actualizações de preços e de concertação com os Serviços da Administração.

Dois dias depois chamou-nos e entregou ao engenheiro um cheque nesse valor para executar as obras por administração directa e de forma muito parcimoniosa, poupando o mais que fosse possível para se pagar a dívida apresentada, que, em boa verdade, nunca existiu mas que as requisições permitiam ao detentor criar graves problemas ao Governador, ao Engenheiro e enxovalhava o nome do Rosas.

O Governador fez mais. Deu-me ordens expressas para por em marcha todas as obras ao mesmo tempo e pôs à minha disposição o seu avião particular e respectivo piloto todas as quartas-feiras para eu poder fiscalizar as obras sem muita perda de tempo, já que as distâncias eram longas e a estradas eram picadas. Qualquer viagem de carro demora muitas horas o que me obrigaria a andar todos os dias em serviço externo, o que era impraticável. Desta maneira visitava as obras todas nas diferentes localidades uma vez por semana fazendo as deslocações de avião.

Foi um ano de trabalho muito intenso. Valeu-nos as equipas contratadas que foram fantásticas. Faziam-me chegar o pedido de materiais com regularidade de forma atempada, eu encomendava aos fornecedores, os motoristas – naquele ano tivemos de contratar mais um, passando a ser dois – distribuíam, os encarregados da obra mandavam aplicá-los e a chefe da secretaria encarregava-se de pagar os materiais e salários. A nós, eu o engenheiro fizemos um verdadeiro périplo pelas redondezas para conseguir os melhores preços para poupar o máximo com vista a pagar a dívida.

Na circunstância conseguimos em Nova Lisboa, cidade capital do distrito limítrofe, preços que nunca nos tinha passado pela cabeça.

Aqui vai a história: - Um dia fomos a Nova Lisboa tratar de assuntos ligados à Repartição e passámos por uma grande loja de materiais de construção e entrámos por curiosidade mas também para aquilatar dos preços praticados já que até aí só comprávamos aos comerciantes de Silva Porto.

Um material usado, em grandes quantidades, eram placas de fibrocimento para os telhados e os respectivos parafusos com anilhas para fixação das mesmas na estrutura de madeira. Para se ter uma ideia, esses parafusos, em Silva Porto custavam, a unidade, entre os sete escudos e os sete escudos e cinquenta centavos. Na referida loja em Nova Lisboa vendiam-nos a dois escudos e cinquenta a unidade. Ficámos atónitos. Nunca nos tinha passado pela cabeça que pudesse existir um diferencial tão grande entre Silva Porto e Nova Lisboa apesar de Nova Lisboa ser uma cidade muito maior e mais importante que Silva Porto e que distavam entre si cento e cinquenta quilómetros de boa estrada rodoviária. Mas não ficámos por aqui. O Empregado que nos atendeu acrescentou: - se levarem mil parafusos faço-lhe a um escudo e cinquenta a unidade. Ficámos de queixo caído. Para os nossos projectos precisávamos de cinco mil parafusos. Retorquímos: - Somos das Obras Públicas de Silva Porto e até levávamos cinco mil mas não viemos preparados com cheques da Repartição ao que o senhor respondeu: - não há problema nenhum. Levem os parafusos e depois mandem o cheque.

Não nos conhecia de lado nenhum. A confiança era base de trabalho daquela grande empresa e por isso ganhava dinheiro sem especular como acontecia com aqueles comerciantes de Silva Porto que usavam o monopólio da distribuição para sugar o máximo a quem não se deslocava dali e, mais facilmente ao Estado já que este não discutia o preço.

Quando contámos ao Governador ele ficou indignado e, logo ali, nos deu aval para podermos ir a Nova Lisboa comprar tudo o que fosse preciso e assim, com a poupança nos materiais pudéssemos concluir as construções mantendo a qualidade e sobrasse o dinheiro suficiente para pagar a, hipotética dívida. Aliás queria mais. Queria que pagássemos, imediatamente, a dívida mesmo antes de concluídas as obras ao que eu manifestei a minha oposição frontal. Se qualquer coisa corresse mal e não tivéssemos dinheiro para concluir todas as obras teríamos problemas nós, que não tínhamos participado em nada daquele imbróglio. O Governador assentiu considerando razoável a oposição.

Assim fizemos e ao fim do ano e da conclusão de todas as obras fomos levar o cheque ao Governador e as contas certinhas e ele chamou o comerciante a quem deu uma sarabanda de todo o tamanho e entregou o cheque exigindo-lhe um documento de quitação. Ele ainda se queixou de nós que nunca mais lhe comprámos nada e que isso comprometia o desenvolvimento do distrito mas não valeu de nada. Enfim estórias de vida como é o título deste manuscrito.