segunda-feira, 31 de agosto de 2020

ESTÓRIAS DE VIDA 17

 

A minha mulher quando acabou o curso, Junho de 1971 foi para Luanda para concorrer a um lugar naquela cidade onde eu adorava viver e ela nem tanto. Mas lá foi ela com a filha, já com quatro anos de idade, para juntos dos meus pais e da maioria da minha família. Eu fiquei porque, apesar de ter pedido imensas vezes para ser transferido para Luanda o argumento de que fazia falta ao serviço pesou sempre para não ser concedida.

Mas, ao fim de três meses depois da minha mulher ter sido colocada em Luanda, porque podia requerer a transferência ao abrigo da Lei dos Cônjuges, lá me transferiram para a sede em Luanda, Janeiro de 1972.

Quando a minha mulher e a minha filha foram para Luanda eu, para além de ter solicitado a transferência, mais uma vez, comecei a procurar vagas noutros serviços em Luanda. Encontrei uma vaga na Câmara Municipal onde o meu currículo se encaixava na perfeição e concorri. Havia apenas uma vaga e dois concorrentes. O concurso para além do currículo tinha uma prova escrita e uma prova oral. Perdoe-se-me a imodéstia mas fiquei em primeiro lugar.

Como atrás se referiu, em Janeiro fui transferido e voltei a ter uma vida familiar e profissional normal para o meu padrão de vida mas, entretanto, chamaram-me para a Câmara onde as condições de trabalho e o próprio vencimento eram substancialmente melhores.

Estávamos no início de 1972 e a minha mulher tinha imensas saudades dos pais e das irmãs. Entretanto tinha perdido uma das suas maiores referências, o seu avô materno sem que pudesse despedir-se dele. Tudo razões para eu sentir que necessitava de fazer alguma coisa para lhe proporcionar alegria e felicidade.

Começámos a equacionar a ida dela mais da filha à metrópole para mostrar a menina aos pais, irmãs e demais familiares. Era o seu primeiro ano de trabalho pelo que só tinha direito às férias nos meses de Julho e Agosto, mais alguns dias de finais de Junho e princípios de Setembro o que, bem-feitas as contas daria para aí uns três meses. Não era muito mas já daria para colmatar a saudade acumulada durante quase seis anos de ausência. É evidente que era necessário suportar todas as despesas. Era também preciso o sacrifício familiar já que eu não poderia vir tanto tempo porque, como funcionário do quadro, só tinha direito a um mês de Férias por ano e, em última instância, poderia também pedir a licença graciosa – seis meses – que era um privilégio obtido a cada cinco anos. Poderia utilizar este privilégio mas não me dignificava. Acabara de entrar para aquele lugar na Câmara Municipal faria pouco sentido solicitar logo a licença graciosa. Decidimos que as viagens se fariam de avião, bastante mais caras do que em navio, mas com um ganho de tempo de mais ou menos vinte dias.

Analisadas todas as prerrogativas familiares conseguiu-se conciliar a viagem de navio para os meus pais, de licença graciosa. Para a minha mulher, férias de três meses, não pagas. Para o meu cunhado férias, de um mês e para mim o mesmo, pagas mas sem direito a viagens. Combinámos então virem os meus pais e a minha mulher e filha logo em Junho e eu e o meu cunhado apenas no mês de Agosto. Assim fizemos.

Foi um reencontro com as raízes, muito aprazível e o rever da família muito gratificante.

Viviam-se os primeiros anos de férias dos emigrantes que foram para a França a salto. Nos primeiros anos, desde a primeira metade da década de sessenta, foi necessário arranjar documentação legal, amealhar alguns Francos para transferir para Portugal e, então, poder visitar as famílias que, na circunstância, eram a maioria das pessoas que viviam na Meimoa.

Num daqueles momentos de lazer e em conversa com o meu primo Joaquim Pina que fizera a tropa em Angola e passara todo o tempo que pôde em nossa casa. A terminar duas semanas de férias na terra concluímos que se fossemos a Paris conseguíamos comprar um carro em França que permitiria aos meus pais percorrer a metrópole em visita sem grande investimento e que depois poderia levar para Luanda e até ganhar algum dinheiro.

Fomos experimentar. Eu e o meu pai fomos com o meu primo de autocarro até Paris e, no dia seguinte à chegada à cidade Luz, um deslumbramento para mim devido a muitos aspectos mas, especialmente, aquele que mais me marcou, a venda pelos ardinas do jornal do parido comunista francês à porta do Metro. Fiquei estupefacto. Em Portugal tal era impensável. Quem se atrevesse seria imediatamente preso pela PIDE.

Era domingo. Metemo-nos no Metro e fomos até Bicêtre arredores de Paris onde decorria um mercado (feira) de automóveis usados de todas as qualidades e feitio, de todas as marcas e dos mais variados preços, em plena avenida. Eram muitos milhares. Vi um carro que me agradou, um fiat 124 que estava na moda por um preço acessível. Feitas as contas da conversão da moeda, um Franco valia cerca de cinco escudos, custava cerca de vinte e cinco contos. Começámos a negociar e o dono do carro quis pô-lo a trabalhar para demonstrar o bom funcionamento do motor já que o exterior, carroceria e chassis estavam impecáveis. O motor não funcionou, no imediato, e o dono do carro disse-me: desculpa mas já não te posso vender o carro porque não está em condições.

Fiquei de queixo caído com a honestidade demonstrada. Nunca tinha assistido a tal forma de negociar em Portugal onde, os negociantes, quase sempre procuravam enganar os compradores. Deu-me alento esta atitude e percorri quase toda a avenida que tem alguns quilómetros procurando o carro que me servisse. Não queria luxos mas também não queria nenhuma sucata.

Cansados e já com algum desânimo cerca das dezassete horas, deixei o mercado porque não encontrara mais nada que me tivesse agradado e entre num stand de ocasião quase no fim da avenida. Vi um Renault 16 em excelente estado de aparência, último modelo da marca, com menos de um ano de serviço e com 20.000 km. Encantei-me pelo carro mas custava sessenta contos. Quantia muito elevada para adquirir um carro que depois das férias seria para vender em Luanda já que, tanto eu como o meu pai tínhamos carros novos comprados no ano anterior.

Pensámos no assunto, muito rapidamente e decidimos que valia a pena o investimento. Apalavrámos o negócio e ficámos de, no dia seguinte, segunda-feira, depois da abertura dos bancos, fazer o câmbio e levantar o carro. Assim aconteceu e, por volta do meio-dia, já tinha a documentação provisória na mão e seguro. Nessa altura até o meu pai era novo e eu muito jovem pelo que, apesar da viagem de autocarro no sábado até quase de madrugada, no calcorrear quilómetros a pé para adquirir o carro durante o domingo, não meteu medo nenhum um regresso a Portugal.

Saímos de Paris sem um mapa, qualquer tipo de indicação excepto a do meu primo que me disse mete-te no periferique e sai pela estrada nacional dez. Não era altura de haver GPS ou qualquer outra tecnologia. Os mapas eram o único meio de navegação por terras desconhecidas mas o tempo e a lembrança não deu para adquirir um, pelo que ficámos reduzido à informação oral recebida.

Estou convencido que tudo correria bem porque, apesar da velocidade obrigatória naquela via, sempre com o helicóptero da polícia a incentivar à velocidade constante para tornar o trânsito fluido, eu não tinha grandes problemas em conduzir porque já tinha carta há cerca de dez anos e muitos quilómetros percorridos e conduzia desde os catorze anos de idade, fora das povoações e com condutores familiares ao lado mas, há sempre um mas, no percurso havia obras no periferique e era obrigatória a saída e, depois de um desvio, nova entrada e tal foi fatal. Perdi-me. Depois de umas voltas estava num bairro que ainda hoje não sei o seu nome mas vi que era residencial e, por isso, não seria o percurso certo. Enquanto andava e pensava se devia ou não pedir a um taxista que fosse à minha frente até entrar na estrada nacional dez passei junto de um policia sinaleiro e encostei-me à peanha e pedi-lhe auxílio. Foi extremamente simpático e deu-me indicações preciosas que eu segui à risca. Ia devagar pela incerteza que me acometia e, pouco depois, encostaram-se a mim dois polícias de viação e trânsito de moto dizendo-me que deveria aumentar a velocidade para não empatar o trânsito. Respondi que não tinha a certeza se ia bem para a estrada nacional dez que queria ir para Portugal ao que eles, delicadamente, me disseram: segue-nos, nós vamos para lá. Rapidamente cheguei à estrada que conduzia a Portugal e aí foi só pisar o pé do acelerador.

Uma aventura em terras estrangeiras, com uma língua estudada apenas no liceu, com pouca prática, mas mesmo assim deu para desenrascar. Estórias de vida.

Viajámos toda a tarde quase sem parar até à fronteira com Espanha onde chegámos cerca das 4 da manhã. Descansámos um pouco e metemo-nos de novo a caminho e às 14 horas de terça-feira chegámos à Meimoa onde soubemos que a minha mulher, minha filha e minha mãe tinham ido a Penamacor arranjar o cabelo pelo que deixei o meu pai em casa e fui para Penamacor buscar os meus amores.

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