domingo, 26 de julho de 2020

BAIRRO OPERÁRIO…



Tempos que foram escola de vida deixaram marcas que, de quando em vez, afloram à memória de longo prazo, como um bálsamo milagroso que se coloca sobre uma ferida ainda verde.
Decorria a década de cinquenta do século passado. Uma cidade com muitos encantos naturais mas com algumas fragilidades organizacionais. A Capital de Angola que, na época, pelo seu desenvolvimento e sua concentração de poderes, já gozava de um aforismo - despropositado e até ofensivo para toda aquela imensidão de Terra e de gentes – “Angola é Luanda e o resto é mato”,  demonstrava, também, que Luanda já era uma cidade grande.
Uma cidade que, apesar das suas fragilidades, já gozava de alguns privilégios. Bairros populacionais organizados com as infraestruturas mínimas, para se viver uma vida com alguma qualidade e onde já não era necessária a prevenção diária das doenças tropicais, como acontecia no interior do País. Já não era necessário tomar, de manhã um comprimido de quinino e à tarde outro de paludrine, como acontecia nas restantes regiões, principalmente no dito, mato.
Tinha água canalizada distribuída pelos SMAS (Serviços Municipais de Água e Saneamento) devidamente tratada e nem sempre fora assim, nem em todos os lugares era assim e a água, preciosa como é para todos os organismos dos seres vivos era, simultaneamente, a autoestrada de distribuição, fulgurante, de doenças infecto-contagiosas.
Sendo uma cidade multirracial, nesses bairros conviviam brancos, pretos, mestiços, portugueses, angolanos, caboverdianos, umbundos, kinbundos, chicoronhos, malanginos e de muitas outras etnias, que formavam o todo de uma população, dita angolana, nas suas diferenças e semelhanças, nas suas afinidades e rivalidades.
Lembrámo-nos do Bairro Operário, para nós caracterizado por um Bairro Tampão entre a Cidade linda, branca, intelectual, endinheirada e o musseque que iniciava no Bairro de São Paulo no seu território mais afastado, e a cidade feia, de pobres operários, brancos, pretos e mestiços, com casas de adobe ainda que construídas dentro de um certo urbanismo e com ruas largas, mas sem asfalto.
No centro havia um largo imenso, espaçoso, sem construções de qualquer espécie e que servia de ponto de encontro em festas, jogos de futebol, namoros e outros prazeres de homens e mulheres, independentemente de raça, cor, cultura, credo ou clube.
As ruas mais estreitas eram as preferidas pelas prostitutas, seus clientes e proxenetas.
No seu conjunto, porque também tinha as suas lojas – tabernas, tascas, drogarias – onde tudo se vendia e se comprava, do álcool ao tabaco, da jinguba ao sal, do açúcar ao feijão, da fuba ao peixe seco para a moamba, do oléo de dém dém (ou palma) ao azeite virgem de Portugal, até aos tecidos multicolores ou panos que serviam de vestimenta e ornamento às mulheres, poder-se-ia dizer que era um bairro bom para habitar.
As casas eram de renda barata. Era perto da parte da cidade onde havia os empregos. Tinha tudo o que era necessário, com modéstia, para se viver.
O pior eram as rusgas. Polícia Civil e Militar que, de vez em quando, irrompiam pelo Bairro adentro à procura de movimentos de subversão ou para recrutamento de jovens para a vida militar, quando não, para dominar as quezílias que iam aparecendo a troco de tudo e de nada.
Em contrapartida, Sábados à tarde e Domingos, quer fosse futebol, quer fossem as rebitas onde pontificavam o Kizomba e o Merengue, toda a gente se divertia e muitos apanhavam a sua “cadela” para esquecerem mágoas ou desesperos.
Porque vivemos nas faldas do Bairro no início da Avenida D. João II ao pé da Farmácia Angola, ainda que muito imberbe, fomo-nos apercebendo destas vivências que, no mínimo, nos deixaram muitas saudades. Do tempo mas, sobretudo, da idade que não volta mais.

Zé Rainho.

APREENSÃO


APREENSÃO!

Navegamos em mar encapelado,
Num barco cheio de contradições,
Com destino ao porto desejado,
Pressentindo muitos alçapões.

O comandante tem pouca experiência,
Nesta rota, deveras, desconhecida,
Não tem dotes de saber nem a ciência,
E este Abril, em Portugal, já não é cantiga.

A tripulação anda muito angustiada,
Com os sinais de deriva incongruente,
Sente que o seu esforço pode valer nada,
Para um final muito inconsequente.

Toda a tripulação afirma em surdina,
Que o porto de abrigo é muito incerto,
Vagas alterosas fazem temer que, por cima,
Só se safe o incapaz do chico-esperto.

Nesta viagem de desespero e incerteza,
Resta a fé em Nossa Senhora dos navegantes,
Pois confiar num comando de saloia esperteza,
É descalabro certo, da maioria dos tripulantes.

Zé Rainho



quarta-feira, 22 de julho de 2020

TROVADORES DE OUTRAS ERAS




O Poeta é um fingidor
Finge tão completamente
Que chega a fingir que é dor
A dor que deveras sente
(Fernando Pessoa)

Não sendo poeta, deixem-me, pelo menos, ser fingidor:

Os trovadores de outros tempos
Terçavam palavras, argumentos,
Para conquistar amores e amos,
Numa vida de boémia e de enganos.

Infantes e cavaleiros batalhavam,
Por ideias, causas e honravam,
Suas raízes, seus maiores e a grei,
Hoje há guerras sem roque e sem rei.

Fora eu um poeta como os trovadores,
Com dom, saber, eloquência, amores,
E cantaria aos quatro ventos as mágoas,
De ver o despovoamento destas fráguas.

Queria ser um trovador para encantar,
Dizer odes a todos, exaltantes e cantar,
Tudo o que povoa meu sonho e ansiedade
Aquietando este coração, fraco, pela idade.

Queria conquistar o coração do poderoso,
Dizer-lhe que deve ser sereno e bondoso,
Para com o seu subordinado, mas irmão,
Para que em nenhum lar falte o pão.

Usaria palavras vigorosas contra a violência
Que vai do casal ao povo, com inclemência
Sem que haja razão mais que o dinheiro.
Sendo este um deus menor e não Primeiro.

Não tendo dotes de verborreia e oratória,
Nem sendo daqueles que fazem história,
Resta-me a particular e singela indignação,
Que não conta para nada nesta Nação.



Zé Rainho

Cães e Gatos!


Estou chocado. Fiquei chocado!
Fiquei chocado ontem quando soube que alguns animais tinham sido queimados num incêndio lá para os lados do Porto. Um incêndio é algo que mexe comigo por todos os poros. Desde logo porque não há incêndios inocentes, nem naturais, excepção para trovoadas secas e outros fenómenos da natureza, incontroláveis. Perdoe-se-me a radicalidade. O incêndio visa sempre um propósito quer este seja mais ou menos aceitável e, isso, para mim é o suficiente para eu ficar indignado. E não se venha dizer que há inconsciência, que há malvadez, que há interesses, que há um sem número de factores que produzem incêndios. Os incendiários sabem sempre por que razão fazem fogo.
Mal comparado é a mesma coisa quanto aos homicídios com arma de fogo. Se não houver armas não há possibilidades de haver tiros e, consequentemente, não há homicídios por este meio. Se ninguém andar com isqueiros ou fósforos no bolso junto da floresta, não pode haver incêndios. É tão simples como isto, ainda que seja radical, reconheço.
Logo, os incêndios são fruto de factores que só ao homem dizem respeito e ao homem aproveita. Evidentemente, a uns aproveita e a outros, desgraça.
Os incêndios são um prejuízo para todos nós. Destrói a floresta, o meio-ambiente, a economia e empobrece o país, logo, todos nós.
E não se diga que não há culpados por que os há e são muitos. Não só os incendiários, mas todos os responsáveis pela organização da sociedade, respectiva regulação e cumprimento das regras. Quem não cumprir terá de ser punido e não são só os incendiários, repito.
Não há prevenção. Não há planeamento nem profissionalismo no que a esta diz respeito. Não há ordenamento do território nem políticas de defesa da floresta e sua rendibilidade. Há um montão de dinheiro despejado sobre o fogo que, infelizmente, não tem o condão de o apagar, antes pelo contrário, cria uma rede de interesses que torna o fogo um grande negócio para um grande número de gente sem escrúpulos que se move em torno daquilo que muita boa gente já apelidou da “indústria do fogo”.
Não admira, pois, que ontem tenha ficado chocado por causa do incêndio e pelas consequências directas nos animais que foram esturricados pelo fogo, sem lhe darem a hipótese de fuga que, nestas circunstâncias, é uma luta pela sobrevivência.
Adoro animais e não consigo compreender a crueldade de, nem, ao menos, os libertarem para que pudessem socorrer-se do seu instinto de sobrevivência e depois fugirem.
Fiquei chocado por que há muitos seres humanos que exploram, de forma despudorada, a sensibilidade dos seus semelhantes para retirarem dividendos de vária ordem em proveito próprio, individual ou de grupo. Gente que recolhe animais e não lhe dá condições de vida dignas, não são pessoas que gostam dos animais, mas que se servem deles para obterem algo, já que mais não seja, uma auréola de boa pessoa, na maior parte dos casos, dinheiro de ingénuos e incautos, para além de dinheiros públicos que todos nós pagamos, noutras situações.
Estou chocado hoje por que não se fala noutra coisa na comunicação social e nas redes sociais esquecendo tudo o resto. Desde logo o esforço, muitas vezes sobre-humano, de bombeiros e autoridades. Mas também os proprietários da floresta que, em muitas circunstâncias, vêem o seu trabalho de décadas ir por água abaixo e ninguém lhe dirigir uma palavra de conforto e de compreensão.
Também as pessoas feridas, ou mesmo mortas, directa ou indirectamente resultantes do incêndio e estas não verem ninguém se preocuparem com elas. O mesmo é dizer que são tratadas abaixo de cão.
Complementarmente não ouço ninguém preocupar-se com a natalidade dos animais. O mesmo é dizer que estes se podem cruzar e ter ninhadas indefinidamente, sem controlo. As espécies que não têm predadores têm de ter, por parte das entidades responsáveis, uma atenção à problemática reprodutiva sob pena de, mais tarde ou mais cedo, se chegar ao descontrolo total ao ponto de não haver infra-estruturas que acomodem o excesso populacional das espécies denominadas de companhia.
Estou chocado com o chorrilho de disparates e acusações a autarcas e autoridades diversas sem irem à raiz do problema que assenta, basicamente, no desrespeito individual e colectivo de quem quer ter um animal de companhia e depois se desfaz dele com toda a tranquilidade, sempre que lhe dá jeito, ou quando este se tornou um peso. Não devia estar admirado. O mesmo fazem aos velhos que depositam em tugúrios, muitas vezes designados de lares, porque os verdadeiros lares custam muito dinheiro e os velhos já não são capazes de ganharem o suficiente para suprir tais despesas. O mesmo fazem aos filhos bebés que depositam em creches o máximo tempo possível, para poderem ir passear o tareco todo embonecado, penteadinho, quando não mesmo vestido de trapos caríssimos só porque isso é chic.
Estou chocado com a Comunicação social que dá voz a esta gente e não se interessa por quem passa fome neste país porque perdeu o emprego.
Estou chocado por ver deputados e partidos políticos a defenderem estas causas e esquecerem as causas das pessoas que morrem sem assistência médica, que não têm um tecto para se abrigar e exigem que o Estado – que somos todos nós, nunca se esqueçam – façam canis, contratem veterinários e todas as outras extravagâncias que me dão vómitos. Gosto muito de animais mas gosto muitíssimo mais e incomparavelmente, de pessoas. Não posso aceitar esta verborreia e esta inversão de valores sem me revoltar.
20/07/20

segunda-feira, 20 de julho de 2020

IGUALDADE?


Tenho passado a minha vida, e olhem que já vai longa, a ouvir falar em igualdade, a propósito de tudo e do seu contrário.
É a igualdade de direitos. A igualdade entre o homem e a mulher. Igualdade na justiça (a justiça é igual para todos!!!!! Só para rir!). Igualdade dos povos. Igualdade das nações. Igualdade no nascer. Igualdade no morrer. Igualdade, igualdade, igualdade é o mote para todos os discursos, da esquerda à direita, com uma acentuação pronunciada na esquerda nacional. Isto arrepia-me. Porque não se pode tratar igual o que é diferente.
Vejamos:- se houver uma obrigatoriedade legal de percorrer cem metros em dois minutos onde está a igualdade entre um indivíduo de porte atlético, com tudo no sítio e aquele raquítico, cheio de fome, a quem, ainda por cima, falta um pé?
Onde está a igualdade, na existência de um serviço público indispensável a todos, onde é preciso subir 15 degraus, sem alternativa, entre um indivíduo com todas as suas capacidades locomotoras e outro que se vê confinado a uma cadeira de rodas?
Onde está a igualdade, num passeio de um grande centro urbano, abusivamente lotado de automóveis, que tem de ser percorrido por um indivíduo com capacidade visual e um cego?
Onde está a igualdade, entre uma criança que tem de se levantar às sete da manhã para ir para a escola que começa às nove e outra que mora a cinquenta metros do edifício escolar?
Onde está a igualdade, entre duas famílias que têm necessidade de colocar os seus filhos na Universidade sedeada num grande centro urbano onde uma reside na cidade e a outra numa qualquer aldeia que dista a duzentos quilómetros?
Onde está a igualdade, entre um banqueiro e um bancário quando os dois têm que fazer face às despesas de formação dos seus filhos?
Os exemplos seriam infindos como poderão calcular. Não vale a pena continuar a enumerar.
Por esta razão eu prefiro pensar em equidade. A cada um segundo as suas necessidades e de acordo com as suas potencialidades.
Por que equidade é ter respeito pela diferença. Respeitar tempos. Respeitar condições. Respeitar indivíduos, sejam eles homens ou mulheres. Sejam paraplégicos ou atléticos. Tenham olhos de lince ou, simplesmente, invisuais. Sejam altos ou baixos, gordos ou magros.
Que tal, então, exigir do legislador mais atenção à equidade e menos à igualdade?

quarta-feira, 8 de julho de 2020

Indignação!



Passadas quase vinte horas após ter assistido a uma coisa que não sei se hei-de chamar debate, catequização, malabarismo, mentira compulsiva ou qualquer outro epíteto menos simpático acho que posso, com isenção e sem qualquer tipo de paixão analisar o que se passou.
Pessoalmente não gosto de touradas, como não gosto de pesca à linha, ou raves,  ditaduras, por exemplo. Não gosto de muitas outras coisas como é óbvio, notório e transparente.
Gosto muito de respeito mútuo. Gosto de pessoas, de animais, de planícies, planaltos, mares, sol, rios e ribeiros cristalinos. Gosto de democracia e liberdade.
Então ao que vem este arrazoado? Deve-se, particularmente, ao que assisti no Telejornal da TVI de ontem à noite. Admito perfeitamente que outros tenham visto diferente. Respeito. O que é que eu vi?
Vi o debitar de uma cartilha demagógica, arrogante, de superioridade moral da Líder Parlamentar do PAN, com chavões estafados e inconsistentes como “evidência científica”, “questão factual” e outras atoardas similares. Para dar alguma credibilidade à sua exposição – melhor seria dizer cassete – apresentou uma sondagem da Universidade Católica feita a alguns lisboetas de que ela inferiu, maldosamente ou apenas chamando-nos otários, que a maioria dos portugueses são contra as touradas. Disse também que o Governo Regional dos Açores teria gasto, durante a pandemia quinhentos milhões de euros – perante o ar estupefacto dos jornalistas em presença remediou para quinhentos mil euros – de apoio às touradas na Ilha Terceira. Argumentando que tal era inadmissível porque havia no arquipélago outros artistas a passar fome. Não sei se é verdade porque pelo que atrás referi não dou qualquer credibilidade à rapariguinha. Se for verdade acho que o Governo deve providenciar para que ninguém passe fome, artista ou qualquer outra pessoa.
Não dou credibilidade à rapariguinha porque ela não sabe o que diz. Desde logo porque confunde, à boa maneira salazarista, Lisboa com Portugal. No tempo da outra senhora é que se dizia que Portugal era Lisboa e o resto era paisagem. Tal anacronismo hoje é inadmissível. Portugal é um todo nação e não uma fracção, por maior que ela seja.
Não reconheço a uma rapariguinha eleita por pouco mais de trinta mil eleitores lisboetas e dos arredores que venha dar lições de cultura e de superioridade que, factualmente, não tem, não demonstra, bem pelo contrário. Cultura de um país, com quase um milénio é muito mais do que uma moda urbana. Parece que a senhora não sabe este pequeno pormenor que é um por(maior). Não sabe também que tourada é cultura. Tourada é modo de vida para muita gente e, só por esse facto, tem todo o direito a existir e a ser apoiada como qualquer outra actividade, cultural, empresarial, social.
Por outro lado, a senhora como eleita (ainda que por escasso número e por aleivosia da lei) deveria saber que deve por acima dos seus interesses e dos interesses do seu grupo de amigos o interesse nacional, porque é para isso que o contribuinte lhe paga um salário e benesses, que me atrevo a apostar, que na sua profissão anterior, se é que a teve, jamais auferiu.
Para terminar acho que o País e o Povo Português necessita de Leis que o catapultem para o desenvolvimento e o bem-estar que o liberte da subsidio-dependência e não estes casos arvorados em causas e cabe aos parlamentares preocuparem-se com causas. Com liberdade de escolha sem proibições tão caras ao PAN. Não sei se lembram de todas as proibições propostas por este partido sempre com ar de defesa de alguma coisa.
Quem não quer ir às touradas não vá. Faça como eu faço, não vou. Mas essa opção não me dá o direito de impedir quem gosta de o fazer. Portanto minha senhora cresça, tome juízo e não vista calças que não lhe servem ou, pelo menos, não lhe ficam bem.
Zé Rainho 

quarta-feira, 1 de julho de 2020

ESTÓRIAS DE VIDA 15


A chegada a Luanda, dia 27 de Setembro foi uma festa. A minha família e os meus amigos fizeram questão de receber bem a minha mulher. Almoçámos em casa da minha tia Paulina, depois fomos fazer uma sesta porque passámos a noite no avião e não dormimos nada, como é natural.
À noite juntámo-nos com alguns amigos, fomos ao cinema e depois ainda demos uma volta pela Ilha tendo parado na Barracuda para beber um copo.
Toda a gente queria que a minha mulher não se sentisse deslocada. A JOC, no primeiro fim-de-semana que se seguiu à nossa chegada organizou um bailarico e uma pequena festa onde nos foi entregue uma prenda de casamento, um quadro grande de Jesus Cristo Ressuscitado que ainda existe cá em casa. Foram momentos de felicidade indescritível.
Iniciámos uma vida diferente. Uma vida a dois. Começámos por ir às compras para casa. Bens alimentares e outros. Não estávamos habituados. Nenhum de nós alguma vez o tinha feito e foi estranho. Andámos às aranhas, como costuma dizer-se. Mas, como em tudo na vida, aprendemos e foi mais uma peripécia de uma vida a dois.
Eu ia para o quartel às oito horas da manhã e a minha mulher ficava sozinha em casa. Tinha a sorte de ter uns tios meus que viviam nas proximidades o que lhe permitia ir até lá e passar melhor o tempo.
Quando regressava procurava mostrar-lhe a cidade. Metíamos no carro e dávamos uma volta.
Ao fim de quatro meses mudámos de casa. Fomos viver para um prédio de cinco andares com elevador numa das avenidas mais movimentadas da cidade, a Avenida Paiva Couceiro junto ao Complexo de S. Paulo, que incluía uma igreja, um colégio para meninas e a residência dos sacerdotes, franciscanos italianos.
Fomos viver para o quarto andar. No rés-do-chão havia comércio de tudo, desde um stand de automóveis até uma agência funerária, passando por um quiosque de jornais e mercearia onde nos podíamos abastecer de tudo.
A gravidez da Teresinha ia-se acentuando e desenvolvendo. Os meus pais, entretanto, tinha regressado de Portugal e, consequentemente, fazíamos-lhe visitas constantes.
A Teresinha passou a dar umas explicações para que uns adultos familiares e amigos se pudessem candidatar ao exame do 1º ciclo, assim se designava o segundo ano do liceu.
Em Janeiro de 1967, sabendo que passaria, durante o decorrer desse ano, à disponibilidade do serviço militar decidi meter as férias a que tinha direito, ou seja, os trinta dias de licença mais os cinco dia da alínea do Regulamento de Disciplina Militar.
Se a minha vida militar até me casar fora um mar de rosas, pouco tempo depois houve mudanças de chefias militares e, particularmente, o segundo comandante do Batalhão, um major que nem quero mencionar o nome, só me trouxe problemas.
Começou por querer revolucionar as instalações para as viaturas querendo como que expô-las como frota visível do exterior da vedação do quartel, que era em rede de arame até ao controle total dos boletins das mesma viaturas, controlando até a viatura do Comandante, Tenente Coronel Morais Leitão.
Queria que todos os condutores estivessem numa espécie de prevenção mesmo aqueles que não tinham tarefas atribuídas.
Ao mesmo tempo, não tinha pudor em mandar o seu motorista para sua casa ficando à ordem da sua mulher. A propósito disto não havia nenhum motorista que quisesse ser efectivo dele o que me causava alguns constrangimentos porque, cada um que ia para aquele serviço, passado poucos dias, dava baixa na enfermaria com hipotéticas doenças para não suportar o feitio miserável do major.
Um dia aparece-me o condutor (motorista) pálido, à minha frente, a pedir-me para o retirar daquele serviço. Preferia ser enviado para o mato. Estranhei tal pedido e pressionei para que me dissesse a razão que intuía ser de força maior. Depois de muita insistência o rapaz lá me disse o motivo. A mulher do comandante, uma trintona pouco assisada, aparece ao condutor em lingerie transparente a convidá-lo para entrar em casa e o rapaz não sabia o que fazer. Ficou atrapalhado desculpou-se como pode e fugiu para o quartel. Por um lado não queria atraiçoar o Major com medo das represálias, por outro não queria deixar a mulher ressabiada com a recusa de atraiçoar o marido e que ela se pudesse vingar de ser desfeiteada.
Talvez isso fosse do conhecimento do Major mas nós, rapazes de vinte e poucos anos é que não estávamos habituados a conviver com este tipo de situações.
O certo é que eu e o Major passámos a dar-nos com alguma frieza. O homem era muito egocêntrico e queria que toda a gente lhe dissesse amém.
Começou por me pedir opiniões para tudo e para nada só para ouvir a minha concordância. Quando tal não acontecia procurava argumentar e, com as suas ideias fixas, quando perguntava já tinha decidido levar a sua ideia avante. Percebendo esta atitude comecei por dizer a tudo que sim. Deixei de dar opiniões e limitei-me a dizer que sim a todas as barbaridades que ele cometia. Não se passou só comigo mas com todos aqueles que tinham que trabalhar directamente com ele como era o caso do primeiro-sargento da companhia o Vultos que, coincidentemente, era meu vizinho no prédio ao lado do meu e muitos outros. Não se dava bem nem com o comandante já se pode ver o tipo de pessoa.
Como era vingativo procurava sempre prejudicar-me chamando-me à hora de saída para qualquer tipo de conversa da treta, só para me reter no quartel entre outras coisas. O que quer dizer que a vida militar passou a ser um fardo.
Como disse atrás umas férias deste pesadelo calhavam-me e, por isso, meti o papel durante a primeira quinzena de Janeiro. O Vultos, homem dos seus quarenta anos, com experiência quando eu fui meter o papel disse-me: olha que não deves por a residência onde vives porque o Major é suficientemente cretino para ao fim de meia dúzia de dias te mandar chamar alegando que és imprescindível ao serviço. Põe que pretendes gozar as férias em todo o território de Angola e assim, se fores chamado não vens e ele não te pode castigar.
É evidente que segui as indicações de homem experiente e assim fiz. As férias foram autorizadas e assinadas pelo Major sem que tenha posto qualquer obstáculo. Como aconteceria a maior parte das vezes nem olhava para o que assinava e deixou passar sem qualquer objecção.
Dia 15 de Janeiro entrei de férias. Pegava na minha mulher íamos para a praia, vínhamos ao fim da manhã, dormíamos uma sesta e tudo se passava lindamente quando, ainda não tinham passado oito dias e eu regressava a casa vi uma viatura à entrada do meu prédio e, como é bom de ver, desconfiei que era para me chamar de regresso ao quartel.
Como os condutores todos eram meus subordinados e meus amigos, posso dizê-lo, encostei o carro ao jeep e perguntei ao condutor o que estava ali a fazer e confirmei as minhas desconfianças e a premonição do primeiro-sargento.
Disse ao rapaz para informar o Major que eu não estava em casa e, a partir daí, saía de manhã e só regressava à noite pelo que, as várias vezes que o Major me mandou chamar nunca ninguém me encontrou.
Quando terminei as férias dia vinte de Fevereiro apresentei-me ao Major e ele recebeu-me com três pedras na mão. Questionando-me: mandei-o chamar e você não se apresentou ao serviço pelo que o vou punir. Fingindo-me de ingénuo retruquei: como é que eu me poderia apresentar se eu nunca recebi nenhuma intimação, nem podia, já que gozei férias fora de Luanda?
Fora de Luanda? Quem o autorizou? Foi o meu Major. A licença foi assinada pelo meu Major. Olhou para o papel e ficou roxo. Irado disse-me retire-se. Vai ver o que lhe vai acontecer! A ameaça era latente. Mas todos os furriéis da minha incorporação já sabiam que o quartel-general tinha decidido que passássemos à disponibilidade no dia 31 de Março, consequentemente, pensei que pouco me poderia afectar a ameaça. Não foi bem assim.
Havia uma grande azáfama no quartel porque tinham chegado rádios novos com antenas especiais para melhorar a qualidade das comunicações militares no teatro de guerra em Angola e, enquanto eu estive de férias tinha sido constituída um grande equipa para ser distribuída pelo Leste de Angola para montar todo aquele equipamento novo mas, da qual, eu não fazia parte. Estava no fim do serviço militar obrigatório e nunca tinha sido mobilizado para o mato nem nunca tinha trabalhado com aquele tipo de equipamento logo, não era a pessoa competente para tal missão mas era a oportunidade ideal para o Major me castigar.
Passados dois ou três dias mandou-me chamar para me dar a ordem para me juntar à equipa constituída para ir para Henrique de Carvalho. A vingança serve-se fria e o Major era um tipo muito vingativo. Argumentei que não era a pessoa com competências para aquela missão. Mais, que estava para passar à disponibilidade e tinha emprego onde me devia apresentar a 1 de Abril e a missão tinha uma duração de cerca de três meses e, por essa razão, todos os graduados nomeados para a missão eram mais novos e tinham mais de um ano de serviço militar obrigatório. Eu seria a excepção. Incompreensível. Mas, como é evidente, anui porque na vida militar as ordens não se discutem. Apenas fiz uma advertência: meu major, como sabe sou casado, a minha mulher está grávida e eu tenho de me apresentar no local do meu emprego civil sem adiamentos. Se, por causa desta sua vingança eu perder o emprego garanto-lhe que estarei aqui no fim de cada mês a exigir-lhe o ordenado que vou deixar de ganhar. Esta advertência era uma ameaça velada que fazia questão de cumprir. Mais, fiz circular no meio, para que lhe fosse aos ouvidos, que lhe daria um tiro nos cornos. Mas o senhor parecia inflexível. Mandou-me requisitar a arma e deu-me uma guia para me apresentar na segunda-feira no aeroporto para embarcar para Henrique de Carvalho. Fiz tudo direitinho mas nunca tive ideia de ir. Já tinha decidido que me ia apresentar no Hospital militar com um pretensa dor na madrugada de segunda-feira. Mas, não foi preciso. No sábado pelas dezassete horas mandou um ordenança dizer-me que não havia lugar para mim no avião e que iria na segunda-feira seguinte.
A minha mulher sofria imenso com esta incerteza e sofreu até ao fim desde finais de Fevereiro até ao dia 31 de Março dia em que passei à “peluda” (disponibilidade). Sai da tropa nesse dia ficando-me um amargo de boca que, não fosse o despotismo de um idiota teria sido evitado.