quarta-feira, 1 de julho de 2020

ESTÓRIAS DE VIDA 15


A chegada a Luanda, dia 27 de Setembro foi uma festa. A minha família e os meus amigos fizeram questão de receber bem a minha mulher. Almoçámos em casa da minha tia Paulina, depois fomos fazer uma sesta porque passámos a noite no avião e não dormimos nada, como é natural.
À noite juntámo-nos com alguns amigos, fomos ao cinema e depois ainda demos uma volta pela Ilha tendo parado na Barracuda para beber um copo.
Toda a gente queria que a minha mulher não se sentisse deslocada. A JOC, no primeiro fim-de-semana que se seguiu à nossa chegada organizou um bailarico e uma pequena festa onde nos foi entregue uma prenda de casamento, um quadro grande de Jesus Cristo Ressuscitado que ainda existe cá em casa. Foram momentos de felicidade indescritível.
Iniciámos uma vida diferente. Uma vida a dois. Começámos por ir às compras para casa. Bens alimentares e outros. Não estávamos habituados. Nenhum de nós alguma vez o tinha feito e foi estranho. Andámos às aranhas, como costuma dizer-se. Mas, como em tudo na vida, aprendemos e foi mais uma peripécia de uma vida a dois.
Eu ia para o quartel às oito horas da manhã e a minha mulher ficava sozinha em casa. Tinha a sorte de ter uns tios meus que viviam nas proximidades o que lhe permitia ir até lá e passar melhor o tempo.
Quando regressava procurava mostrar-lhe a cidade. Metíamos no carro e dávamos uma volta.
Ao fim de quatro meses mudámos de casa. Fomos viver para um prédio de cinco andares com elevador numa das avenidas mais movimentadas da cidade, a Avenida Paiva Couceiro junto ao Complexo de S. Paulo, que incluía uma igreja, um colégio para meninas e a residência dos sacerdotes, franciscanos italianos.
Fomos viver para o quarto andar. No rés-do-chão havia comércio de tudo, desde um stand de automóveis até uma agência funerária, passando por um quiosque de jornais e mercearia onde nos podíamos abastecer de tudo.
A gravidez da Teresinha ia-se acentuando e desenvolvendo. Os meus pais, entretanto, tinha regressado de Portugal e, consequentemente, fazíamos-lhe visitas constantes.
A Teresinha passou a dar umas explicações para que uns adultos familiares e amigos se pudessem candidatar ao exame do 1º ciclo, assim se designava o segundo ano do liceu.
Em Janeiro de 1967, sabendo que passaria, durante o decorrer desse ano, à disponibilidade do serviço militar decidi meter as férias a que tinha direito, ou seja, os trinta dias de licença mais os cinco dia da alínea do Regulamento de Disciplina Militar.
Se a minha vida militar até me casar fora um mar de rosas, pouco tempo depois houve mudanças de chefias militares e, particularmente, o segundo comandante do Batalhão, um major que nem quero mencionar o nome, só me trouxe problemas.
Começou por querer revolucionar as instalações para as viaturas querendo como que expô-las como frota visível do exterior da vedação do quartel, que era em rede de arame até ao controle total dos boletins das mesma viaturas, controlando até a viatura do Comandante, Tenente Coronel Morais Leitão.
Queria que todos os condutores estivessem numa espécie de prevenção mesmo aqueles que não tinham tarefas atribuídas.
Ao mesmo tempo, não tinha pudor em mandar o seu motorista para sua casa ficando à ordem da sua mulher. A propósito disto não havia nenhum motorista que quisesse ser efectivo dele o que me causava alguns constrangimentos porque, cada um que ia para aquele serviço, passado poucos dias, dava baixa na enfermaria com hipotéticas doenças para não suportar o feitio miserável do major.
Um dia aparece-me o condutor (motorista) pálido, à minha frente, a pedir-me para o retirar daquele serviço. Preferia ser enviado para o mato. Estranhei tal pedido e pressionei para que me dissesse a razão que intuía ser de força maior. Depois de muita insistência o rapaz lá me disse o motivo. A mulher do comandante, uma trintona pouco assisada, aparece ao condutor em lingerie transparente a convidá-lo para entrar em casa e o rapaz não sabia o que fazer. Ficou atrapalhado desculpou-se como pode e fugiu para o quartel. Por um lado não queria atraiçoar o Major com medo das represálias, por outro não queria deixar a mulher ressabiada com a recusa de atraiçoar o marido e que ela se pudesse vingar de ser desfeiteada.
Talvez isso fosse do conhecimento do Major mas nós, rapazes de vinte e poucos anos é que não estávamos habituados a conviver com este tipo de situações.
O certo é que eu e o Major passámos a dar-nos com alguma frieza. O homem era muito egocêntrico e queria que toda a gente lhe dissesse amém.
Começou por me pedir opiniões para tudo e para nada só para ouvir a minha concordância. Quando tal não acontecia procurava argumentar e, com as suas ideias fixas, quando perguntava já tinha decidido levar a sua ideia avante. Percebendo esta atitude comecei por dizer a tudo que sim. Deixei de dar opiniões e limitei-me a dizer que sim a todas as barbaridades que ele cometia. Não se passou só comigo mas com todos aqueles que tinham que trabalhar directamente com ele como era o caso do primeiro-sargento da companhia o Vultos que, coincidentemente, era meu vizinho no prédio ao lado do meu e muitos outros. Não se dava bem nem com o comandante já se pode ver o tipo de pessoa.
Como era vingativo procurava sempre prejudicar-me chamando-me à hora de saída para qualquer tipo de conversa da treta, só para me reter no quartel entre outras coisas. O que quer dizer que a vida militar passou a ser um fardo.
Como disse atrás umas férias deste pesadelo calhavam-me e, por isso, meti o papel durante a primeira quinzena de Janeiro. O Vultos, homem dos seus quarenta anos, com experiência quando eu fui meter o papel disse-me: olha que não deves por a residência onde vives porque o Major é suficientemente cretino para ao fim de meia dúzia de dias te mandar chamar alegando que és imprescindível ao serviço. Põe que pretendes gozar as férias em todo o território de Angola e assim, se fores chamado não vens e ele não te pode castigar.
É evidente que segui as indicações de homem experiente e assim fiz. As férias foram autorizadas e assinadas pelo Major sem que tenha posto qualquer obstáculo. Como aconteceria a maior parte das vezes nem olhava para o que assinava e deixou passar sem qualquer objecção.
Dia 15 de Janeiro entrei de férias. Pegava na minha mulher íamos para a praia, vínhamos ao fim da manhã, dormíamos uma sesta e tudo se passava lindamente quando, ainda não tinham passado oito dias e eu regressava a casa vi uma viatura à entrada do meu prédio e, como é bom de ver, desconfiei que era para me chamar de regresso ao quartel.
Como os condutores todos eram meus subordinados e meus amigos, posso dizê-lo, encostei o carro ao jeep e perguntei ao condutor o que estava ali a fazer e confirmei as minhas desconfianças e a premonição do primeiro-sargento.
Disse ao rapaz para informar o Major que eu não estava em casa e, a partir daí, saía de manhã e só regressava à noite pelo que, as várias vezes que o Major me mandou chamar nunca ninguém me encontrou.
Quando terminei as férias dia vinte de Fevereiro apresentei-me ao Major e ele recebeu-me com três pedras na mão. Questionando-me: mandei-o chamar e você não se apresentou ao serviço pelo que o vou punir. Fingindo-me de ingénuo retruquei: como é que eu me poderia apresentar se eu nunca recebi nenhuma intimação, nem podia, já que gozei férias fora de Luanda?
Fora de Luanda? Quem o autorizou? Foi o meu Major. A licença foi assinada pelo meu Major. Olhou para o papel e ficou roxo. Irado disse-me retire-se. Vai ver o que lhe vai acontecer! A ameaça era latente. Mas todos os furriéis da minha incorporação já sabiam que o quartel-general tinha decidido que passássemos à disponibilidade no dia 31 de Março, consequentemente, pensei que pouco me poderia afectar a ameaça. Não foi bem assim.
Havia uma grande azáfama no quartel porque tinham chegado rádios novos com antenas especiais para melhorar a qualidade das comunicações militares no teatro de guerra em Angola e, enquanto eu estive de férias tinha sido constituída um grande equipa para ser distribuída pelo Leste de Angola para montar todo aquele equipamento novo mas, da qual, eu não fazia parte. Estava no fim do serviço militar obrigatório e nunca tinha sido mobilizado para o mato nem nunca tinha trabalhado com aquele tipo de equipamento logo, não era a pessoa competente para tal missão mas era a oportunidade ideal para o Major me castigar.
Passados dois ou três dias mandou-me chamar para me dar a ordem para me juntar à equipa constituída para ir para Henrique de Carvalho. A vingança serve-se fria e o Major era um tipo muito vingativo. Argumentei que não era a pessoa com competências para aquela missão. Mais, que estava para passar à disponibilidade e tinha emprego onde me devia apresentar a 1 de Abril e a missão tinha uma duração de cerca de três meses e, por essa razão, todos os graduados nomeados para a missão eram mais novos e tinham mais de um ano de serviço militar obrigatório. Eu seria a excepção. Incompreensível. Mas, como é evidente, anui porque na vida militar as ordens não se discutem. Apenas fiz uma advertência: meu major, como sabe sou casado, a minha mulher está grávida e eu tenho de me apresentar no local do meu emprego civil sem adiamentos. Se, por causa desta sua vingança eu perder o emprego garanto-lhe que estarei aqui no fim de cada mês a exigir-lhe o ordenado que vou deixar de ganhar. Esta advertência era uma ameaça velada que fazia questão de cumprir. Mais, fiz circular no meio, para que lhe fosse aos ouvidos, que lhe daria um tiro nos cornos. Mas o senhor parecia inflexível. Mandou-me requisitar a arma e deu-me uma guia para me apresentar na segunda-feira no aeroporto para embarcar para Henrique de Carvalho. Fiz tudo direitinho mas nunca tive ideia de ir. Já tinha decidido que me ia apresentar no Hospital militar com um pretensa dor na madrugada de segunda-feira. Mas, não foi preciso. No sábado pelas dezassete horas mandou um ordenança dizer-me que não havia lugar para mim no avião e que iria na segunda-feira seguinte.
A minha mulher sofria imenso com esta incerteza e sofreu até ao fim desde finais de Fevereiro até ao dia 31 de Março dia em que passei à “peluda” (disponibilidade). Sai da tropa nesse dia ficando-me um amargo de boca que, não fosse o despotismo de um idiota teria sido evitado.

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