domingo, 26 de julho de 2020

BAIRRO OPERÁRIO…



Tempos que foram escola de vida deixaram marcas que, de quando em vez, afloram à memória de longo prazo, como um bálsamo milagroso que se coloca sobre uma ferida ainda verde.
Decorria a década de cinquenta do século passado. Uma cidade com muitos encantos naturais mas com algumas fragilidades organizacionais. A Capital de Angola que, na época, pelo seu desenvolvimento e sua concentração de poderes, já gozava de um aforismo - despropositado e até ofensivo para toda aquela imensidão de Terra e de gentes – “Angola é Luanda e o resto é mato”,  demonstrava, também, que Luanda já era uma cidade grande.
Uma cidade que, apesar das suas fragilidades, já gozava de alguns privilégios. Bairros populacionais organizados com as infraestruturas mínimas, para se viver uma vida com alguma qualidade e onde já não era necessária a prevenção diária das doenças tropicais, como acontecia no interior do País. Já não era necessário tomar, de manhã um comprimido de quinino e à tarde outro de paludrine, como acontecia nas restantes regiões, principalmente no dito, mato.
Tinha água canalizada distribuída pelos SMAS (Serviços Municipais de Água e Saneamento) devidamente tratada e nem sempre fora assim, nem em todos os lugares era assim e a água, preciosa como é para todos os organismos dos seres vivos era, simultaneamente, a autoestrada de distribuição, fulgurante, de doenças infecto-contagiosas.
Sendo uma cidade multirracial, nesses bairros conviviam brancos, pretos, mestiços, portugueses, angolanos, caboverdianos, umbundos, kinbundos, chicoronhos, malanginos e de muitas outras etnias, que formavam o todo de uma população, dita angolana, nas suas diferenças e semelhanças, nas suas afinidades e rivalidades.
Lembrámo-nos do Bairro Operário, para nós caracterizado por um Bairro Tampão entre a Cidade linda, branca, intelectual, endinheirada e o musseque que iniciava no Bairro de São Paulo no seu território mais afastado, e a cidade feia, de pobres operários, brancos, pretos e mestiços, com casas de adobe ainda que construídas dentro de um certo urbanismo e com ruas largas, mas sem asfalto.
No centro havia um largo imenso, espaçoso, sem construções de qualquer espécie e que servia de ponto de encontro em festas, jogos de futebol, namoros e outros prazeres de homens e mulheres, independentemente de raça, cor, cultura, credo ou clube.
As ruas mais estreitas eram as preferidas pelas prostitutas, seus clientes e proxenetas.
No seu conjunto, porque também tinha as suas lojas – tabernas, tascas, drogarias – onde tudo se vendia e se comprava, do álcool ao tabaco, da jinguba ao sal, do açúcar ao feijão, da fuba ao peixe seco para a moamba, do oléo de dém dém (ou palma) ao azeite virgem de Portugal, até aos tecidos multicolores ou panos que serviam de vestimenta e ornamento às mulheres, poder-se-ia dizer que era um bairro bom para habitar.
As casas eram de renda barata. Era perto da parte da cidade onde havia os empregos. Tinha tudo o que era necessário, com modéstia, para se viver.
O pior eram as rusgas. Polícia Civil e Militar que, de vez em quando, irrompiam pelo Bairro adentro à procura de movimentos de subversão ou para recrutamento de jovens para a vida militar, quando não, para dominar as quezílias que iam aparecendo a troco de tudo e de nada.
Em contrapartida, Sábados à tarde e Domingos, quer fosse futebol, quer fossem as rebitas onde pontificavam o Kizomba e o Merengue, toda a gente se divertia e muitos apanhavam a sua “cadela” para esquecerem mágoas ou desesperos.
Porque vivemos nas faldas do Bairro no início da Avenida D. João II ao pé da Farmácia Angola, ainda que muito imberbe, fomo-nos apercebendo destas vivências que, no mínimo, nos deixaram muitas saudades. Do tempo mas, sobretudo, da idade que não volta mais.

Zé Rainho.

Sem comentários:

Enviar um comentário