sábado, 11 de janeiro de 2020

Estórias de vidas 4


O Manuel, como já se referiu, nunca foi menino. Desde muito pequeno teve que guardar vaca e burro, lavrar, sachar, cavar, e andar na frente da junta de vacas do avô materno – aquele que teve que doar uma pequena fortuna para que a mãe não fosse, durante muito tempo, mãe solteira e que depois o genro delapidou em pouco mais de 15 anos – fora, por necessidade própria, também, já que partira uma perna num dos carretos de granito que era usual fazer-se para a construção de habitações, quem pediu à filha que lhe mandasse para sua casa o filho mais velho, rapaz, para o ajudar na lavoura das terras que precisava de amanhar.

Desta feita fora bom para o avô e fora muito melhor para o neto pois, apesar do duro trabalho para um rapaz de 14 anos, ao mesmo tempo proporcionou-lhe aprendizagens muito úteis no trabalho do campo, para além de ter uma boa alimentação e vestuário e ainda alguns trocos que a avó lhe dava aos domingos para poder conviver, de igual para igual, com os rapazes do seu tempo.

Nesta actividade o Manuel ganhou, em dois anos de trabalho, a experiência e o saber que nunca tinha adquirido junto dos pais. O avô tinha a paciência e o carinho de com ele conversar e lhe dar os conselhos úteis para uma vida simples e despretensiosa mas com o essencial.

Aprendeu a fazer tudo o que era necessário para desenvolver uma actividade agrícola por conta própria. Fez-se homem, por assim dizer. Começou a pensar como tal e a gizar o que queria para o seu futuro. Tornou-se forte física e mentalmente. Deixou de temer o que quer que fosse. Ainda teve tempo para, com um deficiente físico, seu familiar afastado, aprender as primeiras letras. Poucas, já se vê, pela falta de tempo e pela ausência de pedagogia por parte do mestre. Mas, mesmo assim, veio a demonstrar-se ser uma preciosa ajuda.

Com 18 anos voltou à casa paterna, cada vez mais desregrada e mais pobre. O pai cada vez prolixo nas suas vaidades de menino bem-nascido passou a ser beberrão e quezilento para com a família. Homem feito – na época amadurecia-se muito depressa – trabalhava diariamente para quem lhe dava trabalho e apresentava aos pais a jorna semanal sem receber qualquer gesto de boa vontade ou de recompensa.

Para satisfazer as suas necessidades mais básicas, como frequentar um baile onde era preciso comparticipar para pagar ao tocador ou outras de igual teor – sim porque vícios nunca tivera. Nunca fumou nem bebeu – ajustava (contratar por ajuste) o cavar de vinhas ou outros trabalhos sazonais que fazia de madrugada para ter uns cobres que lhe permitissem viver de igual para igual com os outros rapazes do seu tempo.

Um ano depois pediu a um amigo de seu pai – contrabandista encartado, como se costuma dizer – para o deixar ir com ele até à Espanha para adquirir produtos que poderiam render alguma coisa deste lado.

Assim começou por comprar uns cortes de pana – assim se designava a bombazina de hoje – que servia para a confecção de calças para homem, uns tecidos de seda para as blusas das mulheres, uns quilos de prego e outros artigos, baratos no país vizinho e muito caros cá, levando para troca alguns pães de centeio, muito apreciados lá, em época de fome larvar, por causa da Guerra Civil.

O risco era grande. Tanto os carabineiros, polícia civil espanhola, como os guardas-fiscais portugueses patrulhavam a fronteira palmo a palmo, vinte e quatro horas por dia o que implicava comportamento ardiloso pelos contrabandistas. O trabalho penoso. A distância longa, cerca de 30 quilómetros para cada lado, percorridos a pé por serranias, ribeiros e floresta. Todo este esforço era feito desde a madrugada de sábado para domingo até à madrugada de domingo para segunda pois a jorna de trabalho no campo para ganhar o pão para casa dos pais não se compadecia com outros horários. A venda dos produtos era depois feita pelas irmãs ou pela namorada para, assim, amealhar uns tostões que lhe permitissem um reduzido pé-de-meia para quando chegasse a altura de casar.

Assim foi até ser incorporado no exército, na arma de cavalaria. Porque os lucros eram reduzidos o capital pouco aumentava. Mas os pobres sempre se contentaram com pouco.

Um ano de tropa com dificuldades várias, poucas oportunidades de ir à terra matar saudades da família e da namorada. Um pré (soldo) miserável que não dava sequer para pagar transportes que também não havia. Vida difícil mas de intensa aprendizagem. Valores éticos morais. Disciplina, rigor.

Episódios variados de entreajuda mas também de desilusão. Exigências da casa paterna, sofrimento materno, pai austero e rigoroso. Pouca conversa, menos diálogo, enfim, saturação.

Grande e verdadeiro amigo o irmão, com menos dois anos que ele, o José. Outro sacrificado que teve quer ser o apoio da casa enquanto ele esteve no serviço militar. Companheiro de trabalhos e empreitadas após ter terminado dever patriótico.

Cumprido o serviço militar obrigatório era tempo de se fazer à vida. Casar, ter filhos, constituir uma família. Era assim com todos. Era o costume. A cultura. A tradição.

E, seguindo a máxima, de que quem casa quer casa, procurou uma casa de renda muito económica para poder realizar o seu sonho de casar.

Tal aconteceu no dia trinta de Setembro de mil novecentos e quarenta e dois.

Como prenda de casamento recebeu vinte escudos em dinheiro e algumas mantas “farrapeiras” para se agasalhar. Da casa dos pais trouxe apenas o fato do casamento e umas botas mandadas fazer ao sapateiro local. Trouxe também exemplos do que não se devia fazer como chefe de família.

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