quarta-feira, 8 de janeiro de 2020

Estórias de vidas 2


CAPÍTULO 2
Já o filho do proprietário, o Ricardo nascera em berço de ouro, pois o pai era dono de muitas e grandes parcelas de terreno com olivais, vinhas e terras cerealíferas. O mesmo não se pode dizer da mãe que, casara por amizade, eventualmente, mas ainda mais por interesse, pois era a forma de criar os seus dois filhos do primeiro matrimónio que, com o falecimento do primeiro marido perdera algum do seu capital e vivia com dificuldades económicas. Ainda que esses filhos já crescidos, 16 e 14 anos de idade, já pudessem auxiliar no trabalho da casa mas não eram muito dados ao sacrifício e ao trabalho.
A mãe do Ricardo era mulher de casa e nada dada a trabalho do campo. Era vaidosa e o seu orgulho levava-a a ser considerada uma mulher um tanto impertinente e, para sustentar todo esse capricho nada melhor do que usar a fortuna do segundo marido. Até os filhos do primeiro matrimónio, o Manuel e o José se sentiram com direito a benesses a que não estavam habituados. Nunca tiveram outra ocupação que não ajudarem o pai no amanho das pequenas e raras propriedades e até trabalhavam ao jornal para quem lhe pagasse os pouquíssimos escudos diários. Agora viam neste casamento da mãe a oportunidade de melhorar o seu capital económico sem esforço.
Daí a tornarem-se briguentos e relaxados foi um passo muito pequeno. O padrasto bem os admoestava para o tipo de comportamento pouco consentâneo com o modo de vida que ele próprio sempre tivera mas, eles eram rebeldes e pouco dados a ouvir bons conselhos. Eram aquilo a que se chamava uns bons bardinos ou valdevinos.
O Ricardo, apesar desta convivência malévola, sempre se identificou mais com o pai do que com a mãe, apesar da adoração que nutria por esta. Daí ter recebido valores éticos e morais de elevado sentido cívico.
Desde pequeno que frequentou a escola e tal como aquele que viria, muito mais tarde a ser seu compadre pelo casamento dos filhos, o Zé também ele fez a instrução primária com elevado aproveitamento. O professor até dizia que nunca teve um aluno tão inteligente como ele.
Crescia assim na abundância económica e no saber, através da aprendizagem das letras e da aritmética, vendo o pai a gerir com sageza as propriedades, com sobriedade e bom senso, o que lhe permitia aumentar cada vez mais o seu pecúlio.
Desta forma e por vontade expressa do pai o Ricardo, logo que terminasse o ensino primário, deveria rumar à capital de distrito para ingressar no Liceu e prosseguir os seus estudos que, almejava, serem de nível superior.
Mas o homem põe e Deus dispõe. Sem que nada o fizesse prever andava o Ricardo no último ano do ensino primário quando o pai faleceu, de repente, de causas desconhecidas, aliás como era comum e muito generalizado na época.
Apesar deste grande contratempo na vida do Ricardo, da mãe e dos meios-irmãos, a vontade do pai, que coincidia com a do filho, fora respeitada numa primeira fase.
Tinha-se, entretanto, implantado a República e o País vivia numa situação de precariedade relativamente a orientações políticas. Tudo contribuía para a instabilidade geral e também económica.
Na casa do Ricardo tal agrava-se, por manifesta inépcia da sua mãe e dos filhos mais velhos já, homens feitos, mas madraços e brigões quanto baste.
Como quem o seu não vê o diabo lho leva, como diz o povo, a fortuna que o pai do Ricardo deixara só para si, pois os casamentos em segundas núpcias faziam-se com separação geral de bens, era a Lei Geral, começou a ser delapidada pela mãe e pelos meios-irmãos com a ajuda, está bem de ver, do aumento da despesa que este fazia por já estar matriculado e a frequentar o Liceu. Era preciso pagar a pensão, os livros e as demais necessidades de um rapaz que tinha uma vontade férrea de aprender sempre mais e mais.
Só foi preciso um trimestre para que a mãe do Ricardo, quando este regressou para passar as férias de Natal, influenciada pelos filhos mais velhos, o convencesse a deixar de estudar porque as despesas eram demasiadas. Este gostava muito da mãe e, mesmo contrariado, não teve coragem de dizer a esta que gastava do que era dele e de mais ninguém e, por isso queria e iria continuar a estudar.
Foi este o seu primeiro momento de fraqueza e o início da sua desgraça.
O trabalho do campo não o seduzia, por isso passava os dias a discutir com os mais velhos a situação política da Nação, em plena efervescência da Primeira República e os irmãos e a mãe continuaram na sua senda dilapidatária do património herdado.
Desde cedo começou nos derriços namorisqueiros. Em simultâneo nas demandas judiciais de vizinhos e amigos que não sabendo ler nem escrever se viam, por força de um pedaço de terra, dum cômoro ou de uma passagem, envolvidos nessas demandas e era ele quem ajudava a resolver as questões, sempre com bom senso e sentido de Justiça, diga-se em abono da verdade, mas tal custava-lhe dinheiro e tempo, porque nada fazia com interesse pessoal e era sempre pródigo no pagamento de despesas que a outros cabiam.
As consequências não se fizeram esperar e, como é bom de ver, lá vinha a necessidade de vender um prédio hoje, outro amanhã e assim sucessivamente.
Como era um rapaz de uma cultura intelectual muito acima da média dos rapazes do seu tempo e como era de uma inteligência prodigiosa perdia-se a fazer poesia, a ler o jornal que vinha para a Junta de Freguesia e a demonstrar destrezas e capacidades técnicas e também de força para levar de vencida trabalhos duros ou simples demonstrações de alarde, de valentia.
Chegada a idade pouco madura ainda, mas impetuosa, de uma juventude passada em busca do tempo perdido e nunca achado, começaram os namoricos e aí começou a rabiar uma rapariga mais velha dois anos de uma beleza invulgar como fora tudo na sua vida até então.
A sua Maria – a maioria das raparigas tinham por nome próprio Maria - passou então a ser namoro sério e permanente ainda que com o descontentamento de sua mãe.
Apesar das contrariedades o namoro era sério e, como diz o povo “o lume ao pé da estopa o diabo lhe assopra” a Maria engravidou.
O Ricardo, apesar da pouca idade, dezassete anos, quis assumir a sua responsabilidade e propôs o imediato casamento mas, sua mãe que, como já se deu a entender não era lá flor que se cheirasse, bateu o pé e não deixou casar o seu filho e seu amparo económico, sem contrapartidas. Desta feita exigiu aos pais da Maria um dote equiparado ao pecúlio de que o Ricardo era detentor.
As pessoas justas e não ambiciosas veriam nesta proposta uma afronta, um insulto, que o era de facto. Contrariava em absoluto a vontade do Ricardo mas a Lei estava do lado da mãe deste. O Casamento só poderia consumar-se com a maioridade que era, à época, de vinte um anos. Logo, contra factos não há argumentos, o Ricardo não teve mais hipóteses do que aquelas que a sua mãe ditava.
Para os pais de Maria era um problema bicudo pois tinham mais quatro filhos e cederem à chantagem da mãe do João era, por assim dizer, deserdar os restantes pois, tudo o que possuía, não era mais do que o que tinha o Ricardo. Ficar com uma filha solteira com um filho nos braços era uma desonra e “prato cheio” para a coscuvilhice do povaréu.
Enquanto se decidia a situação o Ricardo manteve-se firme na sua posição e na assumpção da sua responsabilidade mas, mesmo assim, chegou o fim do tempo e nasceu o primeiro filho, que na circunstância era uma filha, sem que o casamento  acontecesse. Mas como o tempo até à maioridade do Ricardo ainda era longo os pais da Maria não tiverem outro remédio que não fosse ceder à chantagem e doarem o que tinham e não tinham à Maria, para que o casamento se fizesse. Tal aconteceu mas criou, desde logo, uma animosidade em relação ao Ricardo que se estendia à sua mãe mas que se centrava, principalmente, neste.
Fez-se o casamento e passados dois anos nasceu um rapaz e a vida foi tomando o seu rumo. A Maria era extremamente trabalhadora e esforçada. Uma mãe extremosa e o Ricardo continuou a sua vida de boémio e, por dá cá aquela palha, lá vendia um prédio começando, já se vê, pelos do dote da Maria que, um a um, voltaram aos primitivos donos, embora com um sacrifício tremendo dos pais da Maria.
Acrescer a este tipo de vida nada consentânea com a projectada pelo seu pai, o Ricardo tornou-se um marido e um pai com bastantes defeitos. Ao contrário daquele que viria a ser seu compadre, quando se embebedava punha em rebuliço toda a casa e toda a família. Chegava mesmo a agredir a esposa que, com a sua admoestação, apenas queria viver uma vida mais desafogada e mais feliz. Aos filhos nunca se preocupou em proporcionar-lhes o mesmo privilégio que o próprio tivera e nunca os deixou frequentar a escola. Porém, jamais lhes batia.
O tempo não pára e o Ricardo viu-se chamado a cumprir o serviço militar obrigatório quando completara vinte anos de idade – fazia anos em vinte e nove de Dezembro – e a incorporação era em Janeiro.
Mais um contratempo pois esse serviço militar não trazia valor que se visse e o “pré” – assim se designava o salário de um recruta – não dava sequer para os cigarros quanto mais para as viagens para vir ver a família.
Acresce o facto de, num exército de analfabetos, a incorporação de um mancebo com a quarta classe ser caso raro. O conhecimento tem, em regra, sede de conhecimento e, como tal, o Ricardo viu-se, sem perceber muito bem porquê, rodeado de oficiais subalternos e sargentos milicianos que gostavam de conversar com ele e passar umas noitadas na sua companhia e tudo isso custava dinheiro. Muito dinheiro, principalmente para quem não ganhava nada.
Seguia-se, como é expectável, a carta para a Maria para que vendesse mais uma propriedade para que ele pudesse satisfazer as necessidades de recruta com aspirações ao oficialato das Forças Armadas.
É evidente que, quando acabou a recruta, o João foi proposto pelo Comandante do quartel para aceder ao posto de sargento, posto que este, orgulhosa mas insensatamente, recusou.
Passou assim um ano sem rendimentos, com despesas acrescidas já que, nada auferindo, necessitava de provir aos seus gastos e às despesas da sua mulher e dos seus dois filhos. Mais, a sua Maria ainda se desunhava a fazer, semanalmente, uma cesta com as melhores iguarias da época para que o seu amado não passasse privações alimentares ou menores mimos. O sargento lateiro que não sendo da aldeia ali tinha casado e estava no mesmo quartel bem dizia à Maria que o Ricardo não precisava de nada e que passava o tempo de folga na estroinice com os oficiais, mais por despeito do que por pena, já que não morria de amores pelo Ricardo e via neste, alguém que, sendo inferior hierarquicamente era muito superior a si perante o olhar da hierarquia militar. Desta feita, mais e mais prédios era necessário vender para suprir a falta de rendimentos mensais.
Findo o serviço militar e também terminada a Primeira Grande Guerra Mundial o Ricardo regressa ao seu viver civil, com mais vícios e mais despesas do que aquelas que poderia suprir.
Os filhos começaram a crescer em número e em idade o que acrescentava dificuldades económicas à vida do casal.
Por sua vez a sua mãe e os seus irmãos não se cansavam de rastejar aos seus pés pedindo ajuda para fazerem face às dificuldades que cada vez mais iam tendo. O seu coração bondoso não regateava essa ajuda o que acrescentava dificuldades às que já sentia na sua própria casa.
Durante dez anos assim viveu, em constante sobressalto da despesa ser superior à receita e nessa contabilidade do deve e haver ter de cumprir com a sua palavra de honra – que sempre cumpriu religiosamente não importando o sacrifício que isso representava – e assim os prédios, finitos como tudo o que é terreno e matéria, iam-se esvaindo por entre os dedos o que, num círculo vicioso, constituía um decréscimo de rendimento à medida que aumentava a despesa.
Aventureiro como sempre fora. Destemido bastante. Resolveu ir para a França com toda a sua família já que este País, que fora tão drasticamente atingido durante a Guerra e dizimado pelos Alemães, necessitava de se reconstruir e não tinha mão-de-obra suficiente para tal.
Se bem o pensou melhor o fez e, de um dia para o outro, pôs pés a caminho levando consigo sua mulher e os quatro filhos que já constituíam a sua prole.
Arredores de Tours fixou residência com os seus e começou a trabalhar na construção da linha férrea que haveria de ser a via que liga Paris aos países do Sul, Espanha e Portugal.
O trabalho era duro mas a recompensa monetária satisfatória. Dava para o sustento da família e ainda para amealhar uns trocos.
O filho mais velho, rapaz – sim porque as raparigas só podiam aprender a ser boas donas de casa - o Manuel, que nunca teve tempo de ser menino, como dizia o Soeiro, fora, também ele, empregado naquele duro trabalho, começando por distribuir água pelos trabalhadores, levando um cântaro às costas, com o peso do qual, mal se podia ter nas pernas. E ganhava dinheiro. E, com esse dinheiro, ajudava a compor o orçamento familiar.
Tudo parecia correr de feição e a vida do Ricardo e da família modificou-se profundamente.
Mas o nosso homem não foi fadado para ser submisso. Ter um patrão. Ter horários. As circunstâncias também nunca ajudaram a que tais hábitos fossem adquiridos. Talvez a frustração de não ter seguido uma carreira académica como fora seu desejo de menino e desejo de seu pai.
A Maria, sua mulher engravidara de mais um rebento, o que até era normal numa época de famílias numerosas. Os rumores de uma nova Guerra Mundial, a segunda daquele século, aproximavam-se a passos largos e a França tinha um exército de frentes de batalha, que designava por Legião Estrangeira, para o qual mobilizavam os não nacionais em primeiro e quase exclusivo lugar.
A inquietude e insensatez do Ricardo viram, nestas circunstâncias, bons motivos para mandar a mulher e os filhos para Portugal e para a sua aldeia natal. Justificando – se é que precisasse de justificação – que não queria um filho francês e que não se sujeitaria a uma, eventual, mobilização para a Legião Estrangeira.
Se bem o pensou melhor o executou e, num de repente, lá veio a família para Portugal com a promessa de que ou ele regressaria também, mais tarde ou, em alternativa, após o nascimento do bebé, voltariam todos para a França caso os rumores da guerra não se concretizassem.
Para mal de toda a família e de si próprio a guerra era, cada vez mais, inevitável e o Ricardo, livre de peias, todo o dinheiro que ganhava e que era suficiente para sustentar toda a família, passados poucos meses não chegava para as suas despesas e, como um fado, um destino inexorável, lá escreveu mais uma carta à Maria dizendo-lhe que vendesse mais uma propriedade e lhe mandasse o dinheiro que ele queria, também, regressar.
Toda a vida foi assim. Homem de carácter. Vertical, honesto, com valores e com princípios, mas sem organização e visão prospectiva.
Talvez a maior inteligência da aldeia, na época, não foi capaz de manter – já não se pedia que aumentasse o património, a exemplo do que fizeram os seus maiores, pai e avô – ainda o delapidou quase todo, deixando os filhos mais velhos, sem a habilitação mínima, o ensino primário complementar e pobres de bens materiais. Todos eram analfabetos literais até constituírem vida própria e independente. Depois disso todos eles fizeram a quarta classe, elemento fundamental para almejarem uma vida fora do campo, para si e para os seus filhos.
A Maria, como também era apanágio na altura não tinha voz na matéria e limitava-se a trabalhar desalmadamente para que aos filhos não faltasse o que comer nem o mínimo de agasalho. Para além disso sofria as dores da maternidade a cada dois anos. Desta forma, não fora a morte à nascença de duas crianças – como era frequente no Portugal de antanho - e o rancho de filhos seria de dez. Assim foram oito que, Graças a Deus, viveram todos até à bonita idade de cerca dos noventa anos.
História triste de quem, por vicissitudes várias, muitas delas externas à vontade do próprio, fizeram deste homem fora do vulgar, sabedor, poeta, cultíssimo, um pai que não soube cuidar dos seus e foram estes, com a educação que lhes transmitiu, os valores que lhes apontou, que após a morte prematura da mãe, com apenas sessenta e dois anos de idade, o sustentaram e lhe deram a qualidade de vida até à sua morte, com setenta e dois anos, que nunca tivera até então.

1 comentário:

  1. Com que então a pesquisar as origens? Bem andas tu, Zé Caldeira.
    Força!

    Abraço

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