quarta-feira, 29 de janeiro de 2020

Estórias de vida 11


Enquanto isso o Rainho mudara de novo para a Robert Hudson e ingressara num Movimento Católico já que a Acção Católica, também naquele tempo se desenvolveu e se incrementou, muito fruto do Concílio Vaticano II.
O rapaz ingressou na JOC (Juventude Operária Católica), verdadeira e autêntica escola de vida, de solidariedade, de amizade e de consciencialização pessoal, política e social.
Crescia, aprendia, estabelecia redes de amizades, conhecia pessoas diferentes do seu mundo até aí.
Apaixonou-se de tal forma pelo Movimento que, apesar do muito trabalho diário constituído por trabalho e estudo nocturno, não deixava de, nos domingos, ir às seis horas da manhã à primeira missa da sua paróquia para depois poder prosseguir com as tarefas inerentes à militância jocista, como era a venda do Jornal Operário, a visita aos doentes do Hospital, as reuniões sistemáticas e sistematizadas através do Método introduzido pelo Cardijn “RVO – Revisão de Vida Operária” onde se avaliava a semana passada e se projectava a semana seguinte.
Tudo isto era feito sem prejuízo de uma vida social intensa onde o Cinema tinha um papel importante. A leitura dos clássicos era também uma tarefa obrigatória mas muito atractiva. As récitas e as festas na sede da JOC onde se congregavam jovens e as respectivas famílias já que o respeito existente atraía sem dificuldades pais e mães de jovens, principalmente das raparigas, que ali se sentiam protegidas e se podiam divertir sem correr riscos.
No trabalho as coisas também corriam bem. O Rainho viu, sem que o previsse, o seu trabalho reconhecido e compensado.
De um dia para o outro tudo mudou.
O Engenheiro Inglês, Senhor Pelikington, responsável pelo comércio de máquinas, sua instalação e manutenção, homem rigoroso, muito sabedor, mas também muito humano, entendeu que o melhor auxiliar que podia ter nessa tarefa era o nosso rapaz, agora com dezassete anos de idade e com um capital de experiência acima da média. Desta feita fez-lhe a proposta nestes termos:
“Olha Rainho eu preciso de um jovem que me ajude na implementação e desenvolvimento de um projecto que tenho na empresa que se traduz, sinteticamente, na reparação das bombas injectoras e injectores dos veículos a gasóleo que, como tu sabes, vendemos muitos nos últimos meses e anos, e já comprei uma máquina com tecnologia de ponta para afinar essas peças de precisão, que são o coração dos motores a diesel. Preciso que me ajudes nesse trabalho que é de grande responsabilidade e rigor. Para tal já mandei fazer as obras necessárias à instalação de um laboratório que ficará todo envidraçado e revestido a azulejo. Naquele laboratório só entrarás tu e eu. É vedado o acesso a qualquer outra pessoa incluindo o chefe da oficina. Só respondes perante mim com o teu desempenho. As instruções vêm em inglês e, qualquer dúvida na reparação e afinação consultas os manuais que te vou facultar e perguntas-me sempre que tiveres dúvidas. Vais passar a ganhar ao mês e ganharás dois mil escudos”.
Perante esta imensa responsabilidade o Rainho sentiu-se acanhado, intimidado, preocupado com eventuais ciúmes que poderia causar a colegas mais velhos e superiores, mas agradou-lhe sobremaneira o aumento significativo que iria receber e o estatuto que iria ter dentro da empresa ao depender apenas de um dos administradores mais importantes e, por isso mesmo ainda disse: “Senhor engenheiro eu domino mal a língua inglesa que, como o senhor sabe, só comecei a aprender há três anos e com muito poucas aulas por semana e, por isso, tenho receio de não ser capaz de corresponder às expectativas que o senhor engenheiro tem acerca de mim”. O Engenheiro respondeu rapidamente: “com isso não te preocupes. Eu sei do que és capaz e estou aqui sempre para tirar qualquer dúvida que tenhas. Com isso não te preocupes. Para além do mais eu, no início passarei por aqui todos os dias e, quando tu tiveres mais confiança em ti próprio, passarei a vir só quando for preciso. Há mais uma coisa. Estamos a importar do Reino Unido, da Alemanha e da América algumas máquinas para lavandarias, para fábricas de batatas fritas e outras indústrias que eu quero que tu acompanhes a respectiva instalação. Para isso vais escolher uma equipa de três pessoas da tua confiança e vais orientá-los nesse tipo de trabalho com a minha supervisão, ok?”.
O Rainho passou pelos momentos mais empolgantes da sua vida. Aceitou sem rebuço e começou, desde logo, a ler toda a documentação fornecida mesmo antes de o laboratório estar concluído. Deixou de usar fato-macaco e passou a usar calças, camisa e sapatos, facto que, como previra, causou alguma inveja àquelas pessoas cuja índole e carácter são propícios a sentimentos mesquinhos. Nesse pequeno grupo estava incluído o chefe da oficina que nunca gostara muito do Rainho e que com esta promoção se sentiu desautorizado e mais dois colegas, um mecânico e outro bate-chapas que nunca morreram de amores por si. Mas, em abono da verdade deve dizer-se que a maioria dos colegas e principalmente o sub-chefe da oficina, o Senhor Marques, grande amigo do Rainho e, porventura, a pessoa que informou o senhor engenheiro Pelikington, das capacidades deste, ficaram felizes e orgulhosos de verem o amigo a singrar de forma tão fulgurante na empresa que, de dia para dia, também crescia a olhos vistos.
A Empresa sempre foi uma referência da década de 20, do século passado, mas sofreu grande incremento e espalhou-se por toda a Angola no final da década de 50 e princípio da década de 60.
O Rainho sentiu, com aquele incentivo, que deveria ser mais estudioso, mais aplicado e muito mais responsável do que fora até aí apesar de ter sido sempre um trabalhador exemplar.
Deixou de ter tempo para alguns dos passatempos de que usufruía mas, por outro lado, viu crescer em todos os seus amigos, mesmo os não colegas de trabalho, a sua admiração o que fez com que cada vez mais se aplicasse nas diferentes aprendizagens que a vida lhe estava a proporcionar e a amadurecer para a vida ainda de forma mais rápida. Sendo um jovem de apenas dezassete anos era, todavia, um adulto que passou a ser solicitado para dar a sua opinião sob muitos aspectos da vida.
Desde logo o seu pai que o consultava sobre a vida familiar. A dar-lhe toda a liberdade entregando-lhe uma chave de casa para poder entrar e sair sem ter de pedir autorização, apenas com a recomendação de ter cuidado com os perigos da cidade que começava a ser grande demais.
Também os tios e, sobretudo, os seus companheiros de trabalho e da JOC que, cada vez mais, o solicitavam como confidente de todo o tipo de preocupações.
 Decorria o ano de 1958 e, como se está a contar a história de vida do Rainho, bem se pode dizer que todas as décadas seguintes foram marcantes.
Não nos apressemos. Já lá vamos.
O ano de cinquenta e oito foi um ano agitado sob o ponto de vista político. Houve eleições presidenciais, coisa rara desde a aprovação da Constituição de 1933 e do poder absoluto do homem do leme, que era o Presidente do Conselho, Professor Doutor Oliveira Salazar. Com ele presidiu o General Carmona até à morte deste. Também o General Craveiro Lopes que, segundo alguns rumores, nunca se dispôs a ser seu pau mandado pelo que, depois de terminar o mandato foi substituído pelo Almirante Américo Tomaz.
Neste ano, na sequência de alguma movimentação política com o MUD e o MDPCDE, partidos políticos organizados mas sem representação popular e com o PCP na clandestinidade, lá se deram passos para que houvesse eleições, ditas, livres podendo candidatar-se mais do que um candidato.
Desde logo o Candidato do Regime, Américo Tomaz apoiado pela União Nacional, partido único de então e o demais poder instituído.
Apoiado pelos movimentos políticos mais liberais também apareceu o General Humberto Delgado que, num arroubo de valentia, a uma pergunta de um jornalista sobre o que faria ao Dr. Salazar se fosse eleito, lhe saiu a frase assassina que lhe ditou a derrota naquele momento, apesar da onda de apoio popular que vinha sentindo em todo o país. Eis a frase: “obviamente, demito-o”.
Ainda houve um outro candidato, na circunstância um civil, de seu nome Arlindo Vicente, muito conotado com o comunismo internacional que, por não ter sentido o apoio que julgava poder vir a obter do povo, desistiu à boca da urna. Foi eleito, como era previsto, num regime sem liberdades, o candidato do Regime, o Almirante.
A Campanha eleitoral foi interessante sob todos os pontos de vista e até proporcionou, aos mais atentos, algumas lições. Desde logo com as palavras-chave dos candidatos. Os da oposição ao regime não tinham acesso à rádio e aos jornais, já o candidato do regime tinha até direito a cartazes informativos. Este candidato não dizia ao que vinha mas apontava as consequências se algum dos outros fosse eleito. Então sobressaiam as seguintes frases: “quereis perder Angola votai no Arlindo Vicente”; “quereis a desordem e a anarquia, votai no Humberto Delgado”; “quereis continuar da senda da paz, progresso e bem-estar, votai no Almirante Américo Tomaz”. Curiosidades.
O Rainho ia tomando a consciência política e de ordem social, quer pelos factos narrados, quer pelos ensinamentos aprendidos na JOC. Concluindo, sem rebuço, de que só poderia aceder ao elevador social e melhorar a sua condição de vida se, cumulativamente, com a aprendizagem profissional aumentasse os conhecimentos académicos e respectiva certificação.
Enveredou então pelo ensino liceal por se coadunar melhor com o seu interesse. Mas o Liceu ainda não ministrava ensino nocturno, pelo que teve de se socorrer do ensino privado pagando mensalidades algo pesadas para fazer as aprendizagens necessárias para se poder propor a exame e obter resultados, como é bom de ver. Sim, naquele tempo, ou se mostrava o que se sabia ou ficava-se pelo caminho.
Mesmo assim valeu a pena porque num só ano conseguiu fazer aprendizagens que lhe permitiram candidatar-se, como aluno externo e maior, a fazer exame do 2º ano, no Liceu Salvador Correia de Sá e Benevides, em Luanda tendo ficado aprovado.
A consciência de que seria necessário ir mais longe levou-o a frequentar a secção de Letras do 5º ano. Naquele tempo o ensino Liceal era composto pelo primeiro, segundo e terceiro ciclos, sendo que o primeiro correspondia ao 2º ano, o segundo ao 5º e o terceiro ao 7º ano. No segundo ciclo havia a possibilidade de fazer exame a Letras e a Ciências de forma conjunta ou separada e no terceiro ciclo era disciplina a disciplina sendo que se podia fazer todas ou uma de uma vez.
Mais um ano de estudo e a candidatura à secção de Letras do segundo ciclo e também aqui obteve aprovação. Tal feito mereceu o elogio de colegas e amigos e até houve alguns amigos que decidiram enveredar pelo mesmo caminho.
Entretanto chegámos ao ano de 1961 e, logo no início, mais precisamente em 4 de Fevereiro eclode uma pequena revolta na Casa da Reclusão – assim chamada a penitenciária que albergava militares castigados por infracção às leis militares e alguns civis punidos por crimes comuns – da qual resultaram uma dezena de mortos entre os militares da ordem pública e os revoltosos. A história veio a demonstrar que se iniciou, naquele dia, aquela que viria a ser a designada a guerra colonial, que durou cerca de catorze anos e provocou alguns milhares de mortos de um lado e do outro da contenda.
Aquilo que pareceu uma derrocada para quem vivia em Angola, principalmente, depois dos ataques terroristas do Úcua, onde chacinaram homens, mulheres e crianças, brancos, negros e mulatos, à catanada, com violações e castrações hediondas e com manifestações canibalescas indescritíveis veio, no imediato, a revelar-se como o arranque do desenvolvimento daquele território, há cerca de quinhentos anos, em perfeita estagnação.
Uma evidência era o facto de, haver em toda a Angola, uma estrada alcatroada com, apenas, sessenta quilómetros de distância, fora das cidades. A Estrada Luanda Catete. Depois de 1961 e até 1968 todas as capitais de distrito foram ligadas pelo asfalto incluindo nestas estradas a célebre serra da gleba a mais acidentada de toda a Angola e, segundo se dizia, cada quilómetro custou mil contos.
Passou-se de um território onde era extremamente difícil arranjar emprego a emprego pleno. À construção de escolas e hospitais para todos, para além do apetrechamento dos portos marítimos e do desenvolvimento de aeroportos internacionais ou aeródromos locais com pistas alcatroadas e iluminadas.
As infraestruturas de saneamento básico em todas as cidades e vilas com especial relevo para Luanda onde fizeram adutores para águas pluviais que obviaram às derrocadas tendo sido a última, de grandes dimensões, nos últimos dias de Março e primeiros dias de Abril de 1963.
Assim, apesar da guerra, com a chegada maciça de militares da Metrópole, Angola desenvolvia-se a olhos vistos.
Havendo focos de instabilidade a Norte do país, com mortes e outros malefícios de qualquer guerra, nem por isso se vivia com medos, particularmente, nos centros urbanos, nomeadamente em Luanda.
Pode até dizer-se que era época áurea de progresso de bem-estar de vida feliz para todos, brancos e negros. Porque havia a política de não discriminação houve até uma maior e mais acentuada integração de negros no Estado, através dos diferentes tipos de Administração, escolaridade obrigatória para todos e escolas espalhadas por todo o lado incluindo os musseques.
Até se criou a Universidade com a maioria dos cursos disponíveis, incluindo medicina, o que permitiu à classe média por os seus filhos a estudar, de forma muito natural, prosseguindo estudos, porque já não havia a necessidade de os enviar para a Metrópole com os consequentes custos económicos e emocionais.

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