segunda-feira, 24 de fevereiro de 2020

Estórias de vida 13


A vida destes dois jovens, oriundos de uma aldeia do interior profundo, dum país a preto e branco, naquele mês de Abril de 1963, sem saberem bem o porquê, deu a guinada que iria marcar o futuro. Apesar de muito novos sabiam muito bem o que queriam para si e para a família que iriam constituir.
Desde logo, porque não eram dados a aventuras ou namoricos inconsequentes. Tinham no seu íntimo a nobreza de carácter que não permite brincadeiras com os sentimentos mais nobres e mais profundos do ser humano.
Desta feita foram estabelecendo a relação de amizade que iria permitir dar o passo em frente para uma relação mais comprometida entre um homem e uma mulher. Tal veio a oficializar-se em 4 de Agosto do mesmo ano, já depois da Teresinha ter efectuado os exames no Liceu da sede do distrito.
Foram tempos idílicos de enamoramento permanente.
Durante o dia acompanhava a Teresinha mais as suas irmãs até ao campo para recolher frutas, legumes para consumo da casa. Ia à fonte e aos poços – na época não se falava nem se sentia o fenómeno, poluição – buscar água, já que ainda não havia água canalizada em casa. A aldeia não dispunha de um sistema de saneamento básico.
À noite reunia-se a um grupo de amigos para, além dos “comes e bebes” saíam umas cantorias e umas guitarradas.
Dormia depressa, o mesmo é dizer pouco, como é próprio de quem está apaixonado. Lá diz o adágio popular: “duas horas dorme o estudante; três o amante; quatro o pastor; cinco o almocreve; seis quem tem a vida leve”... e, no caso, havia um amor abrasador, inquieto, delirante.
O mundo não existia para além destes seres que saboreavam com deleite o amor partilhado e, por isso, faziam planos.
As suas conversas eram, quase sempre, a projecção do futuro. Com o presente bem consolidado olhavam para futuro com alegria, ambição, esperança. Havia, porém, duas coisas que toldavam essa antecipação da felicidade. A primeira era a reserva que o pai da Teresinha tinha relativamente àquele namoro com a consequência, imediata, não a deixar continuar a estudar. A segunda era a, cada vez mais próxima e eminente, ida para a tropa do Rainho. Em tempo de guerra esse destino não deixava de trazer angústia, principalmente, para quem ficava e deixava de saber o que se passava com aqueles rapazes, a quem faltava vida e experiência para se confrontarem com tantos perigos e outras vicissitudes.
A separação que se antecipava era dolorosa e, por isso, era debatida entre os dois definindo estratégias que minimizassem o sofrimento que tal iria acarretar.
Os vinte anos dos rapazes daquele tempo era tempo de viragem e mudança de vida para quase todos. Inspecção militar, que dava quase sempre como resultado “apurado para todo o serviço militar” e ingresso no Serviço Militar Obrigatório que, na época, era muito longo e penoso para todos.
Verdade se diga que, também, trazia alguns benefícios no que respeita ao amadurecimento da personalidade, apuramento de valores como ética, disciplina, amizade, solidariedade e um sentimento de dever patriótico. Mas, em regra, trazia três ou quatro anos de suspensão da vida pessoal e profissional, para a maioria dos jovens do sexo masculino, da década de sessenta do século passado, para além do sacrifício, do risco da própria vida, com morte ou invalidez para muitos.
As guerras nunca trouxeram nada de bom, a não ser para os magnatas da armas ou para os que beneficiam da ruptura social que qualquer guerra traz consigo. A guerra colonial como, erradamente, muitos apelidam o conflito, foi a afirmação de uma nação que se queria una e que era entendida, pela maioria da população como tal, foi uma luta pelo poder de ideologias com pouco de confessável e muito menos de altruísta. Mobilizou mais de um milhão de mancebos portugueses de cor, etnia e territórios diversos.
No caso vertente o Rainho passou por todas as vicissitudes inerentes, com as angústias implícitas, os medos e as incertezas conexas.
Ilustra o facto de ter ido a um laboratório fotográfico tirar uma fotografia com seus pais pois, naturalmente, estes queriam ter uma recordação em imagem se acontecesse alguma desgraça.
Para o Rainho a ida para a tropa, assim se dizia corriqueiramente, fora encarada com a normalidade a que se vinha mentalizando desde os seus dezasseis anos de idade. Porém, agudizou-se a angústia pelo facto de se ver sozinho num ambiente diferente daquele em que fora criado com o fardo da saudade do seu amor e da impossibilidade de lhe escrever diariamente como estava habituado.
Na circunstância, esta mudança de vida, fora tão dolorosa quanto a ausência da sua amada com a qual desejava ardentemente contrair matrimónio o mais rapidamente possível a, tal ponto, que ainda durante o tempo de cumprimento do Serviço Militar levou a cabo o seu intento, ainda que fosse na fase final do mesmo. Casou-se em Setembro e passou à disponibilidade no dia trinta e um de Março do ano seguinte.
Daqui se infere que, ainda que não houvesse sofrimento físico, já que fora colocado num batalhão de armas de serviço especial, transmissões de engenharia e, por essa circunstância, tenha cumprido todo o tempo de militar na capital de Angola, Luanda, cidade sem conflito e com uma qualidade de vida excepcional, já não se pode dizer o mesmo do sofrimento emocional.
Como graduado que era, também recebia um soldo que lhe permitia manter uma qualidade de vida acima da média dos jovens do seu tempo.
Apesar de, passados muitos anos e recordar a boa experiência que foi a vida militar, vista à distância, também ressalta a ideia de que não se identificava com a vida militar. Foi convidado, talvez seja mais rigoroso dizer-se, foi pressionado a remeter-se a uma nova comissão com uma promoção imediata mas não era, de facto, aquilo que pretendia para si e para a família que pretendia constituir, o mais rapidamente possível e recusou, liminarmente, tal sugestão. Cumpriria se fosse obrigado. Dando um passo que fosse para que tal acontecesse, jamais.
Assim, ainda antes de terminar o tempo obrigatório resolveu casar-se. Não aguentava mais tempo longe do seu amor.
Aos vinte e dois anos, quase a completar os vinte e três, deu o passo que ambicionava dar desde os vinte e contraiu matrimónio cristão, católico, com a mulher que sempre considerou ser a única de toda a sua vida.

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