terça-feira, 17 de agosto de 2010

Intimidades (dois) !!!???

Continuação...
Luanda é linda, mais do que a arte do Duo Ouro Negro foi capaz de imortalizar. Com a sua Baía onde se espelhavam os prédios de escritórios e o Banco de Angola. Consegue captar, instantâneamente, o apreço e admiração. Era, na altura, considerada a cidade mais desenvolvida e cosmopolita da África Austral. Pontificavam as peanhas vermelhas onde os sinaleiros (polícias de trânsito) esbracejavam constantemente para regular um trânsito que, não sendo caótico, era bastante intenso. O automóvel já era bastante democratizado, porque era barato. Quaisquer quarenta contos já comprava um utilitário e o vencimento mensal de um Homem - Mulher era, em regra, boa dona de casa, esposa e mãe - espraiava-se por um intervalo de dois contos e quinhentos e os cinco contos, conforme a actividade e a responsabilidade nas respectivas empresas. Estamos a falar de assalariados não sei se deram conta. Os empresários trabalhavam ao lado dos trabalhadores, por vezes mais do que estes e, consequentemente, obtinham lucros mais chorudos. A agricultura era muito produtiva com o café, o sisal e o algodão no topo do rendimento. Por outro lado era sempre efectuada em grande escala, com alguma maquinaria mas, sobretudo, com muita força braçal dos nativos, mão de obra barata que valia pouco mais do que alimentação e uns "panos" coloridos onde se enrolavam os próprios e as várias mulheres que cada um tinha. A poligamia, ontem como hoje, faz parte daquele povo. A indústria era tímida, excepção feita para os cimentos e a refinação do petróleo mas, que o comércio, a pesca abundante e generosa, os transportes e os serviços, procuravam colmatar.
Na época Salazar mandou angariar algumas famílias de agricultores e no planalto da Cela mandou fazer um colonato com casa, máquinas agrícolas, algumas vacas e outros tantos porcos, que foram uma grande ajuda para que qualquer casal trabalhador  pudesse começar uma vida muito mais desafogada do que aquela que deixara na Metrópole ou Puto, como se dizia quando se pretendia referir o pequeno rectângulo pátrio. Chegou a ser uma vila próspera, que adoptou o nome de Santa Comba, em homenagem ao Presidente do Conselho, como era designado, politicamente, na altura. Era abastecedora da cidade de Luanda, que tudo consumia, por albergar dentro de si a maioria da população. Os produtos tinham colocação garantida e fonte de rendimento assegurado.
Esta medida política alterou o paradigma agrícola até então vigente em todo o território angolano, que até aí estava remetido a pequenas fazendas particulares e dispersas pelo "mato". Tudo o que não fosse Luanda era designado por mato.
Havia, depois, cidades menores mas muito importantes, consoante a sua localização geográfica. Desde logo a segunda cidade, o Lobito, o maior Porto Marítimo do território. Mas também Benguela, Nova Lisboa, Silva Porto, Malanje, Carmona, Ambriz, Cabinda, Moçâmedes e tantas outras que mereceriam ser referidas, mas seria fastidioso neste espaço.
O horizonte para o miúdo aldeão mudou tão radicalmente que passou de um espaço mínimo, limitado, confinado, para quase um "infinito" inalcançavel e, muito menos percepcionável.
Havia na cidade, quatro salas de Cinema, que também serviam para outros espectáculos. O Restauração de arquitectura moderna, com écran onde era possível projectar filmes de 70 m/m onde o miúdo fora ver o Ben-Hur e os Dez Mandamentos. O Tropical, sala "sui generis" porque em vez de ser em forma de anfiteatro era como uma sala de restaurante, com mesas de quatro cadeiras cada uma e um palco elevado que permitia a visão a todos os espectadores, sem atropelos, e também comer um petisco e beber qualquer coisa enquanto a fita decorria. O Nacional casa pequena e mais antiga, mais preparada para espectáculos de teatro do que, propriamente, para cinema. Mas as peças teatrais aqui sempre foram vividas entusiasticamente e por ela  passaram artistas como o José Viana, Raul Solnado, Anita Guerreiro, Vera Mónica e tantos outros. O Colonial, no Bairro de S. Paulo, paredes meias com o musseque, que exibia, quase em exclusividade, filmes de Cow Boys. Todas estas salas de cultura, eram frequentados diariamente pela generalidade das diferentes classes sociais - excepção para os trabalhadores braçais que esses, não só não tinham possibilidades económicas, como não tinham interesse, já que a sua cultura, ou a falta dela, os levava para os batuques nos musseques - mas que eram acessíveis para os restantes trabalhadores.
Começa então, uma vida de trabalho e de estudo, para o nosso protagonista. A vida até que não correu mal. Não sendo fácil também não há razão de queixa. Se formos pragmáticos, até os momentos menos bons, fazem parte da história de uma vida que é para recordar, sem mágoa ou ressentimento. Se fosse nos dias de hoje, qualquer criança, ficaria com traumas que nem os melhores psicólogos ajudariam a resolver. À época era tão vulgar que ninguém estranhava, nem os próprios.
O trabalho numa multinacional "Robert Hudson", empresa Inglesa e dirigida por Ingleses, foi sempre gratificante e duradouro. Dez anos de aprendizagens, de conhecimentos, de saberes que se revelaram muito úteis ao longo da vida.
O estudo no Liceu Salvador Correia de Sá e Benevides onde havia colegas como Rui Mingas, Carlos Cruz, que se referem por serem os mais conhecidos do grande público.
Toda uma convivência multirracial salutar, complementada com as tertúlias vividas na Liga dos Amigos de Angola (LAA), primeiro com sede na Associação Comercial de Luanda, na Vila Clotilde e depois na Avenida Coronel Artur de Paiva, na confluência com a Alameda D. João II, com edifício próprio, construído de raiz e, com todas as condições para o funcionamento de uma Associação de referência, na Capital de Angola, onde havia uma Biblioteca de acervo muito variado e vasto, se jogava ao bilhar, snooker, matraquilhos, damas, xadrez e se discutia política, ainda que a medo e em surdina. 
Conviveu-se com Diógenes Boavida, já advogado de prestígio e seu irmão médico, bastante mais velhos mas que não se inibiam de conversar com um rapazola que entretanto crescera e se formara numa base educativa de conduta com Valores, Ética, Atitudes e Comportamentos, relevantes. O mesmo se pode dizer dos Vandunem, do Lara, do Nito Alves e muitos outros que não tiveram, no novo País, o protagonismo que, por direito deveriam ter.
A JOC (Juventude Operária Católica)  foi outra escola importante, a partir dos 14 anos.
Continua...


6 comentários:

  1. Tão bem que eu compreendo estes textos! Fiz partes dos percursos descritos, entre Luanda e Lisboa, de avião e de barco, passeei nas ruas da capital de Angola, linda, linda, e vivi 5 anos em S. Tomé.
    Escreve com o coração e com o saber que a sua memória guarda e a inteligência deliciosamente sabe gerir.
    Visitante habitual deste espaço, leio com muito interesse aquilo que faz o favor de nos oferecer. Para saber mais. Para pensar melhor.
    Bem haja.

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  2. Zé,
    Também eu aqui continuo a lê-lo sofregamente, aprendendo em cada palavra o retrato dessa realidade, mas sobretudo fascinada pela forma como se envolve na escrita, na "história" que partilha.
    Lembro-me do polícia sinaleiro aqui em Castelo Branco quando nos dirigimos para a zona da Sé, veio-me essa imgem à memória. Não sei porquê, talvez pelos seus gestos, de luvas brancas e apito na boca, dava-nos (a mim a aos meus irmãos) sempre vontade de rir :), e claro éramos logo repreendidos (pela minha mãe), para manter o respeito à autoridade, claro! Brincadeiras...

    Gosto muito mesmo de estar aqui a lê-lo! É um prazer!

    Beijinhos
    P.S Aguardo a continuação! :)

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  3. São os nossos percursos de vida que muito se assemelham. Somos beirões da raia. Temos a mesma idade. Partimos para verdadeiros paraísos na terra. Regressámos e até partilhámos a mesma profissão.
    Ainda dizem que não há coincidências.
    Um grande abraço
    Caldeira

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  4. Zé,
    Como diz o primeiro comentador, muito do teu relato é feito com o coração ainda a pulsar, o que se compreende. Aliás, das pessoas que conheço que passaram por África, não há nenhuma que consiga esconder a emoção e a saudade ao falar dela.
    Depois, o teu desfilar de recordações, para além de ser tocante, retrata toda uma época que nos tocou a todos, directa ou indirectamente. Além disso, o que já não é pouco, trata-se do teu tempo de crescimento, de quando te fizeste homem. Só por aí já dá para imaginar a emoção que te vai percorrendo à medida que vais escrevendo...
    Mas, permite-me uma coisa. Não sei como será o resto do teu relato, mas há um pormenor que me chamou a atenção: tu contas a visão do ocidental, com as suas certezas muito características (o que é normal) e fica apenas um esboço da maioria, os tais trabalhadores braçais. Destaco algumas referências que lhes fazes:
    "...mas, sobretudo, com muita força braçal dos nativos, mão de obra barata que valia pouco mais do que alimentação e uns "panos" coloridos onde se enrolavam os próprios e as várias mulheres que cada um tinha. A poligamia, ontem como hoje, faz parte daquele povo.
    "...excepção para os trabalhadores braçais que esses, não só não tinham possibilidades económicas, como não tinham interesse, já que a sua cultura, ou a falta dela, os levava para os batuques nos musseques - mas que eram acessíveis para os restantes trabalhadores."
    Não chegaste a mergulhar na cultura daquele povo anónimo, agarrado à sua ancestralidade?
    Bom, mas os teus relatos, confesso, estão a ultrapassar as expectativas, e cá fico a aguardar por mais, que se deseja o mais breve possível.

    Grande abraço, Zé!

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  5. JB,
    Fico muito grato por continuar a seguir este devaneio. Não sei onde isto vai dar. Vamos tentar dar continuidade até onde a memória nos levar.
    Beijinhos
    Caldeira

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  6. Agostinho, meu amigo. Obrigado por me lembrares a faceta, o lado do indígena, e a respectiva cultura. Tenciono, até onde a memória pode chegar, ir abordando essa vertente Africana dos seus naturais. Digo-te já que não é tarefa fácil. A Diversidade tribal é tão vasta que se corre o risco de, por omissão, faltar ao rigor histórico, sempre imprescindível neste tipo de contos.
    Quero agradecer-te por continuares a ler estas memórias e estas divagações pelo passado.
    Um grande abraço
    Caldeira

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