quinta-feira, 19 de agosto de 2010

Intimidades (quatro)!!!???

Continuação ...
Ficámos no relato das convicções sociológicas. Vamos dar continuidade, sem antes, fazer uma declaração relevante. Não sou Antropólogo e, como tal, tudo o que escrever está sujeito a erros de análise. Expressarei apenas impressões percepcionadas, sem substrato científico onde se alicerçar.
Em Angola havia uma classe profissional que não foi dispicienda no seu desenvolvimento, para o bem e para o mal. Referimo-nos aos Fazendeiros. Eram empresários, em regra pouco escrupulosos, que adquiriam, gratuitamente do Estado, grandes extensões de terreno fértil e nele construíam o seu "império". A casa grande onde morava o senhor e respectiva família, cercada, normalmente em forma de U, pelos celeiros e armazéns. Num deles existia um comércio onde tudo se transacionava. Comprava-se a preços demasiado baixos e vendia-se caro. Este desiquilibrio fazia com que os trabalhadores estivessem, permanentemente, em dívida. À distância de cerca de um quilómetro alinhavam-se em circulo as cubatas de pau a pique amarrados com sisal, revestidos com barro que secava ao Sol e por cima a cobertura de colmo, para abrigar as famílias de negros, sempre numerosas e jovens. Toda aquela gente trabalhava para o dono da casa grande.
Por sua vez os homens nativos que, também em regra, não gostavam de trabalhar, passavam a vida no Quimbo - o tal círculo de cubatas - com as crianças, bebendo cachaça e fumando folhas de tabaco virgem, que enrolavam depois de estas serem secas ao Sol. As mulheres com os filhos às costas enrolados em panos e bem apertados para não caírem, iam para as "machambas" - havia outras designações para os espaços que tinham a mesma função, consoante a localização geográfica e a etnia -  produzir o milho, a mandioca, a jinguba, a banana e outras frutas tropicais, que eram a base da alimentação da família. Pequena horta à portuguesa, se quisermos. Este trabalho era fundamental para o sustento familiar. Por sua vez, o Homem que, com os bens que as mulheres produziam, iam "comprando" com vacas, porcos e outros animais, mais uma e outra mulher, para ser mais um braço de trabalho, à qual fazia uma larada de filhos e presenteava com panos mais ou menos caros, mais ou menos coloridos, consoante a sua produtividade sazonal. Atente-se que a maioria das culturas produzia três e quatro vezes por ano, consoante a espécie e a fecundidade do terreno e o clima que variava de zona para zona. Também se dedicava à caça dos Gamos, Pacaças e outra caça grossa, com arco e flecha, esta com a ponta envenenada.
Por esta simples descrição fácil será entender que o fazendeiro, salvo raras excepções, que as havia, enriquecia com esta postura social dos indígenas. A par das culturas intensivas que ele próprio produzia, ainda recebia, quase de borla, o produto do trabalho nas machambas.
É subentendível que nada disto pode ser generalizado a um território tão vasto e com tantas diferenças étnicas. Se o Bailundos, os naturais do Sul de Angola eram submissos e trabalhadores, os Quimbundos de Luanda e do Norte eram arrogantes e preguiçosos. Se os Quiocos eram, mais ou menos nómadas e comunicavam entre si por estalidos bocais e não articulavam palavras, os Malanginos eram supersticiosos e ostracizados pelos quimbundos. A estes últimos caracterizava-os uma faceta visível. Quando nasciam, as mães e avós, ainda antes de cortar o cordão umbilical, faziam-lhe inúmeros cortes na cara, com uma lâmina de barbear, para, no seu entender, esconjurar todo o mal, toda a doença, quer física quer espiritual. Este acto bárbaro deixava marcas na cara para toda a vida. Os quimbundos chamavam-lhe "manangambé" o que era uma ofensa inaceitável e que, por norma, era redimida com sangue na ponta de uma faca improvisada, qual lança de guerra. Há também outra etnia, que há muita boa gente que considera angolana, mas não é de todo verdade. São os cabindas. É que o enclave de Cabinda nunca pertenceu a Angola. Era um território independente que, através do Tratado de Simulambuco, o Régulo entregou a Portugal a sua Administração. Logo, não sendo pertença de  Portugal também não o é de Angola. Mas, como o dinheiro tem muita força e Cabinda é um pequeno território mas imensamente rico em Petróleo, Madeiras Preciosas e se situa junto da Foz do Rio Zaire e faz fronteira com o ex-Congo Belga, hoje República Popular do Congo, qualquer tipo de independência poderia ser uma ameaça a Angola e, como tal, o Governo deste país entendeu que o devia anexar sem qualquer consulta popular. A actual ditadura - é preciso dar nome aos bois - que domina Angola não permite que um Povo com identidade própria aceda à auto-determinação e independência, como foi sempre desde séculos imorredouros, aliás como quis e pela qual lutou durante anos, relativamente a Portugal.
Pelo dito fácil será inferir-se que Angola, sendo um País com enormes potencialidades e riquezas naturais não deixa de ter uma das taxas de pobreza mais elevada do Mundo. Isto não branqueia o que os portugueses fizeram em 500 anos de colonização, mas pode afirmar-se, sem receio de errar, que o neo-colonialismo actual, de Americanos, Portugueses, Chineses e da elite governamental não tenha trazido para a maioria da população a maior indigência e abandono. Luanda é hoje uma das cidades mais caras do Mundo, mais que Lisboa. Pobres dos negros que, se ainda estiverem vivos e conheceram a vida antes do 25 de Abril de 1974, terão imensas saudades da exploração de outros tempos.
Em continuação entraremos na década de 60 do século passado. Fica para a próxima crónica.
Continua ...

4 comentários:

  1. Zé,

    "Angola, sendo um País com enormes potencialidades e riquezas naturais não deixa de ter uma das taxas de pobreza mais elevada do Mundo." É esta a imagem que quem pouco conhece (como eu) tem na sua mente.
    E é também por isso que estou tão interessada em pormenores que aqui vai oferecendo, e continuo a dizer ao jeito de leitura de livro! :) Com todos os espelhos à vista de toda a gente! :)
    Alguns povos têm realmente uma prática que me aterroriza relacionada com as crenças de se cortarem para afugentar os espíritos maus e os azares na vida futura, acreditando convictamente nessas suas raízes ancestrais. É uma cultura levada ao extremo, penso eu, e que me choca bastante!
    E aqui estou maravilhada continuando ansiosa pela continuação desta alucinante viagem... que também podia intitular-se "Viagens da minha Vida" de José Caldeira... :)
    Não leve a mal estas minhas brincadeiras, porque sempre gostei de brincar com as palavras e, neste caso, é um delícia ler estas suas crónicas, que deveriam sair deste espaço!!!

    Até já, Zé!

    Muitos beijinhos

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  2. Obrigado, mais uma vez pelas palavras e pela brincadeira com as palavras, de que tanto gosta, e que faz primorosamente.
    É verdade o que diz. Angola é um potentado mundial em recursos naturais. Mas tem um "handicap" - pensamento meu - foi delimitado em fronteiras por ocidentais, que nada se preocuparam com as formas de ser e estar dos povos. Repare que disse "povos" e não povo, porque aqule País é uma miscelânea de povos que podem estar unidos politica e geograficamente como um todo único, mas jamais será uma Nação. Tal a diversidade de culturas ancestrais.
    Muitos Beijinhos e bem-haja pelo incentivo.
    Caldeira

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  3. Zé,
    volto depois para ler e comentar. agora venho só avisar que algo o espera no Em@
    beijo

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  4. Desta vez optaste por fazer um enquadramento sociológico, o que só vem enriquecer o teu relato.
    Omito qualquer juízo de valor acerca de costumes e culturas, pois para o observador, creio eu, o que interessa é perceber as raízes.
    Continuo a gostar da tua odisseia, muito participada e muito afectiva, e o que aí vem promete.
    Força, amigo!

    Abraço

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