segunda-feira, 20 de abril de 2020

Estórias de Vida 14


Em meados de Setembro de 1966, numa capelinha afastada do centro urbano, mas não muito longe deste, na presença de cerca de cento e cinquenta convidados que para ali foram transportados por autocarros alugados, presidida pelo Arcipreste da altura, Reverendo Padre Manuel Toscano, realizou-se a cerimónia de casamento entre os nubentes Teresinha e Rainho.
Um dia de felicidade plena se, porventura, há plenitude na felicidade humana enquanto peregrinos neste vale de lágrimas!
Depois de cerimónia, das assinaturas no livro próprio dos registos matrimoniais e das fotografias da praxe - sim, havia um fotógrafo contratado, que veio da sede do distrito e que cobrou 500$00 pelo serviço, uma extravagância cara, mas que valeu a pena, pois deixou umas fantásticas fotografias para memória futura, que o casal guarda com todo o carinho - rumaram à sua aldeia para a “boda”.
A boda eram os comes e bebes para todos os convidados.
O uso e costume era os convidados do noivo irem para a boda do noivo e os convidados da noiva irem para a boda da noiva. Enquanto isso, os noivos iam almoçar a um dos lados e jantar a outro, acompanhados pelos padrinhos de ambos os lados.
Também neste casamento se cumpriu a tradição. Porém, os convidados jovens, solteiros, eram convidados dos dois lados pelo que, ao almoço, se juntaram todos na boda do noivo. Depois de comidos e bem bebidos, de partir do bolo de noiva começaram a verificar-se algumas movimentações, durante o baile, dos jovens amigos.
Começavam a haver, na altura, algumas partidas aos noivos nos automóveis que os conduzissem para fora da aldeia.
Para os que ficava na terra eram as jovens raparigas que se encarregavam, desde tempos muito remotos, de fazer algumas tiranias na cama, para criarem situações embaraçosas na hora de se deitarem.
No nosso caso, como tínhamos um Volkswagen 1300 parado à porta da casa onde decorria o baile, começou a sentir-se que havia segredinhos entre os jovens, rapazes e raparigas, o que nos ia deixando com a pulga atrás da orelha. 
Então, sorrateiramente, com receio justificado, de que os amigos do novo casal fizessem alguma partida que desse brado e mote para as conversas dos dias seguintes, pegaram no carro que o Rainho tinha alugado em Lisboa e partiram para uma Lua-de-mel que teve início na capital de distrito e prosseguiu em Lisboa durante mais oito dias.
Pelas oito horas da manhã do dia 15 de Setembro de 1966 saímos de Castelo Branco rumo a Lisboa. Parámos em Nisa para tomar o pequeno-almoço. Não o tínhamos feito antes porque a Teresinha, naquele tempo, não gostava de comer e quando eu propus que fossemos comer antes de sairmos da cidade ela não quis. Disse não ter vontade. Porventura teria, também, medo de enjoar o que veio a acontecer pouco depois de termos comido. Parámos para ela aliviar e depois retomámos a viagem pela estrada nacional que era miserável, quer em termos de traçado, dimensão e pavimento. Não raro demorava-se mais de cinco horas para se chegar a Lisboa.
A Teresinha, mal retomámos a viagem, adormeceu e, não fora um camião dos bombeiros vir a assinalar a marcha à entrada de Santarém, não sei o que poderia ter acontecido. Também eu adormeci, por segundos, ao volante. Foi um susto que me serviu para parar à saída de Santarém debaixo de uma árvore para dormitar e, assim, me libertar do sono. Também a Teresinha se assustou muito e, nunca mais, até hoje dormiu numa viagem.
A ida para Lisboa em lua-de-mel tinha também algumas obrigações. Desde logo o exame final do estágio nos CTT – Correio, Telefone e Telégrafo de Portugal - que a Teresinha tinha concluído em finais de Agosto. Mas também a confirmação da passagem aérea para ela, que já tinha sido adquirida, mas da qual era necessário resgatar o Bilhete e demais acessórios existentes na altura. Quem viajou naquela época de avião sabe que as companhias ofereciam um saco de viagem muito interessante e muito útil para levar pequenas coisas connosco. A bagagem toda era obrigatório ir no porão.
Para além destas questões de ordem prática havia também o interesse em conhecer melhor a cidade de Lisboa, frequentar alguns espectáculos e cinemas, tudo aquilo que a Teresinha ainda não tinha podido usufruir.
Não sei se já se disse mas nós, até casarmos e, desde os 14 anos de idade, éramos cinéfilos compulsivos. Em Luanda corríamos todos os cinemas e víamos todos os filmes em cartaz e, alguns, até víamos mais do que uma vez.
Fizemos questão de ir ver uma revista com o Raul Solnado no Teatro Vilaret, recém-inaugurado, junto a Picoas. Uma peça interessantíssima mas da qual já não recordo o nome. Mas que estava na Moda em Lisboa já que o Solnado, naquela altura, era um expoente máximo do teatro da comédia em Portugal.
Fomos passar um dia com a Laura, a melhor amiga da Teresinha que, por trabalhar no SNI – Serviço Público muito virado para a propaganda política do regime – não pôde assistir ao casamento. Desde logo resolvemos passar um dia diferente. Apanhámos a Cacilheiro e fomos até Cacilhas almoçar a um dos melhores e mais conceituados restaurantes, o Ginjal. Depois de almoço regressámos a Lisboa e fomos ao cinema e ao fim da noite fomos levar a Laura à casa onde vivia que era de um seu tio.
Um episódio deveras interessante se passou no dia 15 de Setembro à chegada a Lisboa. Como conhecíamos mal a cidade resolvemos estacionar o carro no Campo das Cebolas, um espaço enorme, apenas terraplanado muito próximo do Terreiro do Paço e apanhar um táxi que nos levasse a um hotel na Baixa. O taxista homem bastante simpático, depois de lhe expormos a nossa pretensão resolveu levar-nos até ao Hotel Bragança junto ao Cais do Sodré no início da Rua do Salitre. O tal Hotel onde viveu o Eça de Queirós. Deu-nos por conselho que fossemos lá ver se havia quartos disponíveis antes de retirarmos a bagagem do táxi pois, caso não houvesse levava-nos a outro hotel.
Fui lá eu como é bom de ver. Fui em mangas de camisa, uma triple marfel preta, de veludo, que estava na moda. Barba por fazer de dois dias. Como é expectável, o aspecto não seria dos melhores. E o aspecto era extremamente importante no País naquele tempo. Quem não usasse fato e gravata era mais ou menos labrego.
Dirigi-me à recepção onde um recepcionista, já entradote na idade muito aperaltado, me atendeu. Quando lhe perguntei se tinha disponíveis quartos de casal o senhor, num misto de delicadeza e desconfiança devolveu-me a pergunta assim: “sabe que isto é um hotel?”. De sobrolho franzido respondi-lhe: “eu perguntei-lhe se tinha quartos disponíveis não lhe perguntei que tipo de estabelecimento era”. O senhor não estaria à espera de obter de um jovem de 23 anos e um pouco mal vestido para os padrões ficou muito atrapalhado e respondeu que sim. Então disse-lhe: vou ao táxi buscar as malas e a minha mulher e já volto para fazer efectuarmos os procedimentos normais.
Assim foi e, depois de tudo tratado por um período de oito dias, o senhor para compensar fez questão de me ir mostrar o quarto e levar as malas. Quando chegámos ao quarto dei-lhe uma nota de vinte escudos (20$00) de gorjeta. Abriu muito os olhos, até porque vinte escudos era muito dinheiro naquele tempo, e então desfez-se em amabilidades, que ia mandar servir o jantar no quarto que faria tudo o que nós precisássemos, etc. Rimo-nos muito com a situação mas era a prática num país cinzento onde a servidão era total mas também o abuso dos pequenos poderes e os preconceitos eram o pão nosso de cada dia.
Depois destes dias passados em Lisboa regressámos à aldeia, deste Portugal Profundo que, sem estradas condignas, mais parecia situar-se no fim do mundo, para se viverem mais uns dias em que se sentia a angústia dos pais, dos irmãos e, especialmente, do avô da Teresinha por sentirem a separação, que cada dia que se passava mais se aproximava da sua concretização. Um misto de angústia e inevitabilidade. A separação dos entes queridos, seja temporária ou permanente, causa dano. Machuca o coração.

1 comentário:

  1. Que história de vida, Zé Caldeira! Isso não dava para um livro, dava para vários. E parece-me que ainda há muito que contar até chegares ao ponto em que tivemos os primeiros contactos.
    Volto a repisar: que história de vida, homem!

    Grande abraço

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