quarta-feira, 18 de agosto de 2010

Intimidades (três)!!!???

Continuação...
Ficámo-nos pelos 14 anos anos e pelo que isso representava na vida do adolescente que já se considerava, presunçosamente, adulto. É que a sua independência económica permitia tais dislates. Vivendo em casa dos pais, com o amparo, carinho, educação e valores de uma família tradicional, não dependia deles para viver. O seu ordenado mensal, ainda que revertesse para o "bolo" familiar era mais do que o suficiente para si e para as suas extravagâncias. Até se deu ao luxo de tirar a carta de motorizada e adquirir uma, novinha em folha, que era a sua vaidade e a "inveja" de muitos dos seus amigos. Que era mais um apêndice que permitia impressionar umas miúdas, também elas em fase de crescimento e com vontade forte de aventura, o que facilitava umas idas à praia e os (in)consequentes arrufos de hipotéticos namoricos, inocentes e puros, mas gratificantes para ambas as partes. Mas deixemos este assunto para depois. Contaremos algo mais tarde.
Não sei se os meus leitores se aperceberam, no post anterior que, ao referir alguns, poucos, nomes que fizeram parte da nossa vida só o Carlos Cruz era branco (ocidental) como diz o meu amigo Agostinho. Todos os outros e muitos ficaram por referir, eram negros e, nem por isso, menos amigos e menos cúmplices, pelo contrário. Com todos fizemos muitas aprendizagens, nos divertimos, jogando à bola em campo de terra batida, e outras actividades lúdicas e/ou sociais no Bairro Operário.
Crescemos com a cidade. Isto é, devagar mas de forma consolidada. Os anos passavam e a cidade expandia-se para o interior já que o seu início sempre esteve encostado ao mar. Desde a Baía, que já se referiu, passando pela Praia do Bispo, Samba na parte Leste e pela Boavista na parte Oeste. Depois eram as grandes Avenidas lineares, rectas de mais de 5 Quilómetros, com as respectivas transversais, numa quadrícula feita a régua e esquadro, onde coabitavam as vivendas do Bairro do Café, com os Prédios de cinco ou seis pisos, na sua maior parte, com um ou outro "arranha céu" de 12 pisos, ou mais.
Luanda sempre foi linda pela paisagem mas também pelos seres humanos que a habitavam. No Centro da parte mais antiga ficava a Mutamba, paragem obrigatória de todos os autocarros. Que na altura já abraçavam a cidade nos seus percursos. Eram meia dúzia de Linhas: - A da Maianga que, passando pela Samba e Praia do Bispo regressava ao ponto de partida - Mutamba; A de S. Paulo, mais extensa, que percorria toda a avenida Paiva Couceiro até ao Bairro da Cuca com regresso pelo Bairro de Alvalade até à Mutamba; A da Terra Nova que satisfazia as necessidades dos passageiros da Vila Clotilde, Vila Alice e Estrada de Catete, subindo pela Avenida dos Combatentes e regressando pela Rua Coronel Artur de Paiva; A da Baixa que percorria as ruelas mais estreitas da parte velha onde ficava o único Campo de Futebol vedado, com bancadas, "os Coqueiros", passando pelo Baleizão - a melhor casa de gelados que se podia imaginar na altura - que, de tanta qualidade e importância, aglutinou e fez desaparecer a palavra gelado para, em qualquer parte da cidade, quando se queria pedir este delicioso refresco, se solicitar um baleizão; depois viagens mais curtas para a Vila Clotilde e Vila Alice e Alta da Cidade onde ficava o Palácio do Governador Geral e o Paço Episcopal, bairros populosos e já distantes dos Serviços Públicos como a Direcção de Finanças, Câmara Municipal, Notário, Tribunal e outros Serviços.
Uma panorâmica geral deste Centro Urbano, em constante desenvolvimento, tinha vista privilegiada da Fortaleza de S. Miguel, Monumento Quinhentista de onde, conta a lenda, que Salvador Correia terá amedrontado os Holandeses, já ancorados na Baía com os seus barcos de guerra, que queriam tomar Angola, como sua possessão, em época de ocupação pátria Filipina, apenas com inúmeros capacetes militares colocados em paus junto das trincheiras, pois militares era coisa que não havia. Os Holandeses prevendo as dificuldades em tomar Fortaleza "tão bem apetrechada", deram meia volta e lá deixaram em paz, os poucos portugueses abandonados pela mãe pátria, o que convinha a Espanha.
Nos arredores da cidade havia uma classe de gente, brancos e negros - mais brancos que negros - que faziam o seu negócio, com os milhares de indígenas que se dirigiam ao seu local de trabalho, quase sempre situado no Centro da Cidade e, para o qual tinham de levar os ingredientes para confeccionar o respectivo almoço, alguns enriquecendo  de forma pouco honesta, a quem,  depreciativamente, toda a gente denominava de "fubeiros". Eram tascas que tudo vendiam: desde a fuba para fazer o pirão, passando pelo peixe seco, o óleo de palma, ginguba (amendoim), açúcar, sal, cachaça (aguardente de cana de açúcar) até aos, já referidos, panos coloridos, para servirem de vestimenta. Normalmente, as compras faziam-se a crédito que eram saldadas consoante os soldos ou salários, eram pagos à semana ou ao mês. A confiança entre o comerciante e o cliente era total. Talvez por isso os nativos quase nunca dispunham de dinheiro, não só porque ganhavam pouco, mas também, porque quando o tinham era para uma batucada na sanzala. Os negros tinham da vida uma filosofia muito própria e muito solidária. Quando um tinha era para todos e quando não havia, não havia para ninguém. Daí que a miséria, sim havia miséria e insalubridade, vida muito parecida com aquela que à época havia em Lisboa, nas barracas da periferia. Mas havia uma outra coisa que era preciosa: - era a alegria permanente. A música fazia parte integrante daquela gente. Umas latas velhas, umas cabaças secas, umas cordas de viola, uns reco-reco, um qualquer tambor, eram o bastante para o cantar e dançar até às tantas. Por isso o absentismo ao trabalho era mais que muito e as consequências eram, igualmente gravosas. As condições de trabalho eram precárias e as remunerações mínimas. Tudo isto fazia uma separação física entre brancos e negros, mais devido às questões económicas do que às questões raciais. Tal como acontece, nos dias de hoje, em todas as partes do Mundo onde há separação entre ricos e pobres, burguesia e trabalhadores indiferenciados. Recordem-se os "bidonvilles" franceses.
Mas falemos de coisas mais alegres. O trabalho, o estudo, o lazer faziam parte do quotidiano. O lazer era sempre à noite e ao fim de semana. Sim porque na altura já havia aquilo que se chamava semana inglesa, que se traduzia na folga de sábado de tarde e no domingo todo o dia. Em Portugal ainda não existia esta modalidade. As idas à praia, ao cinema, ao teatro, aos bailaricos e às rebitas (hoje quizombas) eram frequentes e muitíssimo divertidas, numa mistura racial extremamente saudável e muito, muito gratificante. Fizeram-se grandes amizades, algumas das quais ainda perduram e se manifestam em encontros periódicos, nas diferentes partes do País, com relevância para o Norte, de Aveiro para cima.
Progredia-se na carreira e nas habilitações académicas sendo as últimas causa e consequência da primeira. Crescia o nível de vida, em paralelo com as preocupações sociais. Procurava-se conhecer o regime político e suas condicionantes e conspirava-se de forma inconsequente. Pretendia-se uma Angola livre e independente como propunha Cunha Leal, que fora Governador do Banco de Angola, em 1929, seguido pela assinatura do Acto Colonial por Salazar e que fora um retrocesso. Ideias que foram sempre fermentando e tiveram mais expressão com Norton de Matos em 1949 e mais tarde com Humberto Delgado, em 1958.
O nosso jovem que ainda não podia votar - tinha 15 anos - lá arranjou, clandestinamente, uma lista de Humberto Delgado -  para que o pai, como chefe de família alfabetizado, pudesse votar sem ser obrigado a fazê-lo no Candidato da Situação, o Almirante Américo Tomás.
Ainda temos na memória os sloganes eleitorais permitidos pelo regime: "quereis perder as colónias votai em Arlindo Vicente - candidato civil que desistiu à boca das urnas -; quereis a instabilidade e a ditadura comunista, votai em Humberto Delgado; quereis Ordem Paz e Progresso votai em Américo Tomás". É evidente que para um miúdo, que desde cedo se interessou pelo bem comum e pela política nobre e impoluta, estes sloganes não convenciam e mais acicatavam a curiosidade de saber o que se pretendia. Daí a consulta de livros que constavam do "ÍNDEX" - lista de livros proibidos - mas que havia sempre mão amiga que nos fazia chegar.
Todas estas condições poderiam ter transformado este ser ingénuo num activista político inconsciente. Tal não aconteceu porque Durkeim, sociólogo que nos marcou a existência, nos ensinou, desde cedo, que a consciência colectiva se sobrepõe à consciência individual e nós sempre fomos muito ciosos da nossa consciência individual. Daí nunca aceitar fazer parte de qualquer Partido Político, antes ou depois da revolução (Revolução não, Golpe de Estado) do 25 de Abril de 1974, apesar das muitas insistências, apelos e pressões sofridas durante muitos anos.
A descrição vai longa e necessitamos de a tornar mais sucinta, se não, nunca mais saímos daqui e queremos acatar a sugestão do Agostinho, para darmos a nossa visão da cultura íntrínseca de África e dos africanos que, não são, necessariamente, só os negros. Há muitos brancos com alma africana.
Continuamos depois...

5 comentários:

  1. Zé,
    Digo-te já que, por norma, nunca leio textos muito extensos na blogosfera. Mas estas tuas narrativas, pelo interesse que despertam, lêem-se num ápice e ficamos sempre, no final, com água na boca.
    A descrição que fazes das coisas é muita rica, cheia de pormenores, e consegues que o leitor consiga "ver" a azáfama da vida de Luanda. Muito bem!
    Cá fico, ansioso, à espera de mais.

    Um grande abraço

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  2. Agostinho,
    Tens razão quanto à extensão dos textos. É defeito meu não ser capaz de ser mais sucinto. Mas sabes que eu coloco-me na posição do leitor, que não tenha nenhum conhecimento daquilo que foi uma vivência, para muitos desconhecida e, por isso, acho que devo pormenorizar.
    Vamos dar continuidade.
    Um grande abraço.
    Caldeira

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  3. Zé,
    Fazes bem em pormenorizar, pois esse aspecto é uma das mais valias do teu relato. Continua a fazê-lo, por favor.

    Abraço

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  4. Zé,

    Continuo maravilhada e absorvida nesta sua história, lendo-a como se lesse um livro do género "Memórias de África" de José Caldeira.
    Fico completamente extasiada com a quantidade de informação que apresenta, com a delícia dos pormenores, com o vocabulário característico dessa terra, com as crenças desse povo que "Quando um tinha era para todos e quando não havia, não havia para ninguém."...
    Continuo a achar preponderante a sua entrega, a sua partilha emocional colocada nas palavras e que se sente deste lado, emoção essa que me faz desejar saber mais e mais..., e que grata fico por me possibilitar alargar o meu horizonte de leitura!

    Que bela forma de viajar!
    Aguardo, aguardo, aguardo a continuação, impacientemente! :)

    Muitos beijinhos

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  5. Muito Obrigado JB pelas palavras simpáticas e encorajadoras. Achei piada ao título que sugeriu. Mas não sou escritor, nunca me atreveria a escrever um livro, com esse ou outro título.
    É sabido que há por aí muito lixo literário nas nossas livrarias mas, felizmnte, eu tenho espelhos em casa e conheço bem as minhas limitações.
    Este tipo de conversa de café é outra história e por isso me atrevo a estes devaneios.
    Mas fico feliz por estar a gostar.
    Vou continuar.
    Muitos beijinhos
    Caldeira

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