segunda-feira, 16 de agosto de 2010

Intimidades (um)!!!???

Estávamos na primeira metade da década de 50 do século XX. Uma criança do sexo masculino, acabado de fazer a 4ª classe, com 11 anos de idade incompletos estava, aparentemente, destinado a ser padre ou, pelo menos, a frequentar o Seminário do Verbo Divino. Vicissitudes várias mudaram-lhe o destino - talvez não o destino, mas o percurso de vida - e segue com os seus pais para África. Angola, mais propriamente e Luanda, especificamente.
Um aldeão de gema vai de comboio até Lisboa onde passa, mais ou menos, oito dias a tratar de documentação necessária, mais as vacinas indispensáveis à sobrevivência em clima Tropical.
Na época o País tinha uma Marinha Mercante pujante com duas Grandes Empresas - Companhia Nacional de Navegação e Companhia Colonial de Navegação - com paquetes de grande porte, para transporte de pessoas e mercadorias. Ainda temos na Memória os nomes de Navios como: Angola; Moçambique; Quanza; Santa Maria; Princípe Perfeito, Infante D. Henrique, Vera Cruz, entre outros. Navios que demoravam entre dez a doze dias para Luanda, Angola e 20 a 21, para Lourenço Marques, Moçambique.
Na altura, Lisboa sendo a Capital do País, era uma cidade pequena, onde os transportes públicos se resumiam a autocarros, eléctricos - os amarelos - e uns, poucos, táxis. Automóveis particulares eram raros. Andava-se muito a pé, por aquela cidade e fazia-se o circuito de um quarteirão da Rua Augusta, com a Rua da Conceição, para o Cais da Rocha, Cais de Alcântara e Hospital do Ultramar, na Junqueira e vice-versa.
O rapazinho vivia estes dias numa azáfama alegre e expectante até ao dia de embarque, que aconteceu num dia cinzento, frio e chuvoso - 4 de Fevereiro de 1954, mais precisamente.
O navio, Angola, era enorme e com odores característicos, pouco agradáveis. Uma mistura de combustíveis  com cheiros de comida e de pessoas pouco dadas à higiene pessoal. Ingredientes propícios ao enjoo mal se passava a barra do Tejo e se entrava em Mar Alto. Em contrapartida, o tempo mudava, de repente, para um Sol radioso, deixando uma visão que se perdia no horizonte, de água com uma ondulação que esbatia no casco do navio, fazendo novelos de espuma cristalina. Nada se via além de cardumes de peixes enormes até à Madeira, a pérola do Atlântico de hoje e que, na altura, não passava de uma ilha de pescadores e artesãos. Não tinha cais de acostagem e o Navio ficava ao largo e as pessoas deslocavam-se à Ilha de bote e eram poucos os que se aventuravam. Mais fácil era para os ilhéus se deslocarem até ao navio com as suas rendas e cadeiras de vime para vender aos passageiros.
Passada uma noite e meio dia, para cargas e descargas, lá se largou em direcção a S. Tomé e Príncipe. Dias e dias sem se avistar nada, excepto algumas baleias que, em jeito de competição, se deslocavam junto ao Navio. Os dias corriam devagar, em passeios da proa à popa, de bombordo a estibordo, com refeições conjuntas, em mesas compridas, que mais pareciam casernas de quartéis.
Chegados a S. Tomé, o ritual fora, mais ou menos, idêntico ao da Madeira, excepto que os ilhéus eram negros. Seguem-se mais dois dias de viagem. Depois, avista-se Luanda. Pelas 6 horas da manhã  dá-se de caras com morros de terra vermelha e o navio reduz a velocidade até quase parar. A ansiedade vai-se apoderando de todos. O calor húmido entranha-se na pele e chega-se, ao fim de duas horas, ao Cais de Luanda.
A acostagem tem pormenores que exigem perícia e parecem uma eternidade a todos os passageiros, até que se começa a descer pelas escadas de corda e madeira que são deitadas abaixo do primeiro piso do navio. Dão-se os primeiros abraços e beijos aos que aguardaram a chegada e trata-se da desalfandegagem da bagagem do porão. Até parecia que estávamos num País estrangeiro - se calharam estávamos e nós é que não percebíamos - e rumámos, numa carrinha de caixa aberta, para o centro da cidade, local onde passámos a residir.
Uma nova vida começa aqui. Junto de um tio e de alguns amigos e conterrâneos.
Continua...

5 comentários:

  1. Zé,
    As tuas memórias da época são um autêntico documento do Portugal de 50. Espero ansioso pela continuação.

    Abraço

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  2. Vou continuar, esperando contribuir com as minhas memórias para a história recente deste País.
    Abraço
    caldeira

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  3. Zé,
    Acabei de ler um verdadeiro conto, da vida real!
    Gostei imenso de todos os pormenores com que descreve essa viagem até Luanda! Pareceu-me estar a ver um filme, com fotografias retratadas de forma magnífica, tão real que quase se sente esse frenezin do embarcar e desmbarcar, esses odores, essas cores, esse mar!
    Estou deliciada! Espero ansiosamente a continuação... que promete!!!
    Que bela aventura da vida real!

    Um grande beijinho

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  4. JB,
    Obrigado por ter gostado. Não sendo um filme, nem sequer a uma história, totalmente, verdadeira, porque contém um certo "apimentado" de ficção, é escrita com base em factos reais.
    Aconteceu com muita gente naquela época.
    Vamos continuar a história.
    Bem-Haja.
    Beijinhos
    caldeira

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  5. Zé:
    adorei ler este post.
    afinal temos mais alguma coisa em comum : África/Angola. De formas diferentes, é certo, mas quem passou por lá ficou certamente enfeitiçado.Eu sou de lá há 3 gerações pelo lado materno.:D
    beijo

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